REsp 1309972 / SPRECURSO ESPECIAL2012/0020945-1
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DICOTOMIA TRADICIONAL.
AQUILIANA E CONTRATUAL. REFORMULAÇÃO. RESPONSABILIDADE PELA QUEBRA DA CONFIANÇA. ORIGEM NA CONFIANÇA CRIADA. EXPECTATIVA LEGÍTIMA DE DETERMINADO COMPORTAMENTO. RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL.
INEXISTÊNCIA DE CONTRATO FORMAL SUPERADA PELA REPETIÇÃO DE ATOS.
JUIZ COMO PERITO DOS PERITOS. COORDENAÇÃO DAS PROVAS. ART. 130 DO CPC/1973.
1. Tradicionalmente, a responsabilidade civil divide-se em responsabilidade civil stricto sensu (delitual ou aquiliana) e a responsabilidade contratual (negocial ou obrigacional), segundo a origem do dever descumprido, contrato ou delito, critério que, apesar de conferir segurança jurídica, mereceu aperfeiçoamentos, à luz da sistemática atual do Código Civil, dos microssistemas de direito privado e da Constituição Federal.
2. Seguindo essa tendência natural, doutrina e jurisprudência vêm se valendo de um terceiro fundamento de responsabilidade, que não se vincula a uma prestação delineada pelas partes, nem mesmo vincula indivíduos aleatoriamente ligados pela violação de um dever genérico de abstenção, qual seja a responsabilidade pela confiança.
3. A responsabilidade pela confiança é autônoma em relação à responsabilidade contratual e à extracontratual, constituindo-se em um terceiro fundamento ou 'terceira pista' (dritte Spur) da responsabilidade civil, tendo caráter subsidiário: onde houver o dano efetivo, requisito essencial para a responsabilidade civil e não for possível obter uma solução satisfatória pelos caminhos tradicionais da responsabilidade, a teoria da confiança será a opção válida.
4. A teoria da confiança ingressa no vácuo existente entre as responsabilidades contratual e extracontratual e seu reconhecimento se fundamenta principalmente no fato de que o sujeito que dá origem à confiança de outrem e, após, frustra-a, deve responder, em certas circunstâncias, pelos danos causados dessa frustração. A defraudação da confiança constitui o verdadeiro fundamento da obrigação de indenizar.
5. A responsabilidade fundada na confiança visa à proteção de interesses que transcendem o indivíduo, ditada sempre pela regra universal da boa-fé, sendo imprescindível a quaisquer negociações o respeito às situações de confiança criadas, estas consideradas objetivamente, cotejando-as com aquilo que é costumeiro no tráfico social.
6. A responsabilidade pela quebra da confiança possui a mesma ratio da responsabilidade pré-contratual, cuja aplicação já fora reconhecida pelo STJ (REsp 1051065/AM, REsp 1367955/SP). O ponto que as aproxima é o fato de uma das partes gerar na outra uma expectativa legítima de determinado comportamento, que, após, não se concretiza. O ponto que as diferencia é o fato de, na responsabilidade pré-contratual, a formalização de um contrato ser o escopo perseguido por uma das partes, enquanto que na responsabilidade pela confiança, o contrato, em sentido estrito, não será, ao menos necessariamente, o objetivo almejado.
7. No caso dos autos, ainda que não se discuta a existência de um contrato formal de compra e venda entre as partes ou de qualquer outra natureza, impossível negar a existência de relação jurídica comercial entre as empresas envolvidas, uma vez que a IBM portou-se, desde o início das tratativas, como negociante, com a apresentação de seu projeto, e enquanto titular deste, repassando à Radiall as especificações técnicas do produto a ser fabricado, assim como as condições do negócio. 8. Com efeito, por mais que inexista contrato formal, o direito deve proteger o vínculo que se forma pela repetição de atos que tenham teor jurídico, pelo simples e aqui tantas vezes repetido motivo: protege-se a confiança depositada por uma das partes na conduta de seu parceiro negocial.
9. Mostrou-se, de fato, incontroverso que os investimentos realizados pela recorrente, para a produção das peças que serviriam ao computador de bordo de titularidade da recorrida, foram realizados nos termos das relações que se verificaram no início das tratativas entre essas empresas, fatos a respeito dos quais concordam os julgadores de origem.
10. Ademais, ressalta claramente dos autos que a própria recorrida estipulou quais os modelos de conectores deveriam ser produzidos pela recorrente e em que quantidade, vindo, após certo tempo, repentina e de maneira surpreendente, a alterar as especificações técnicas daquelas peças, tornando inúteis as já produzidas.
11. O ordenamento processual pátrio consagra o juiz como o perito dos peritos e a ele a lei atribui a tarefa de dar a resposta à controvérsia apresentada em juízo, não importando a que ramo do conhecimento diga respeito. Essa a lição que se extrai do artigo 130 do CPC de 1973, que atribuiu ao juiz a função de ordenar e coordenar as provas a serem produzidas, conforme a utilidade e a necessidade, a postulação do autor e a resistência do réu, podendo determinar a realização de perícia, quando necessária a assessoria técnica para auxiliá-lo no deslinde da questão alvo (arts. 145, 421, 431-B do CPC).
12. Assim, a solução apresentada à controvérsia deve ser fruto do convencimento do Juiz, com base nas informações colhidas no conjunto probatório disponível nos autos, não estando restrito a uma e qualquer prova, especificamente.
13. Recurso especial parcialmente provido, para reconhecer a responsabilidade solidária da IBM - Brasil pelo ressarcimento dos danos materiais (danos emergentes e lucros cessantes) à recorrente.
(REsp 1309972/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27/04/2017, DJe 08/06/2017)
Ementa
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DICOTOMIA TRADICIONAL.
AQUILIANA E CONTRATUAL. REFORMULAÇÃO. RESPONSABILIDADE PELA QUEBRA DA CONFIANÇA. ORIGEM NA CONFIANÇA CRIADA. EXPECTATIVA LEGÍTIMA DE DETERMINADO COMPORTAMENTO. RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL.
INEXISTÊNCIA DE CONTRATO FORMAL SUPERADA PELA REPETIÇÃO DE ATOS.
JUIZ COMO PERITO DOS PERITOS. COORDENAÇÃO DAS PROVAS. ART. 130 DO CPC/1973.
1. Tradicionalmente, a responsabilidade civil divide-se em responsabilidade civil stricto sensu (delitual ou aquiliana) e a responsabilidade contratual (negocial ou obrigacional), segundo a origem do dever descumprido, contrato ou delito, critério que, apesar de conferir segurança jurídica, mereceu aperfeiçoamentos, à luz da sistemática atual do Código Civil, dos microssistemas de direito privado e da Constituição Federal.
2. Seguindo essa tendência natural, doutrina e jurisprudência vêm se valendo de um terceiro fundamento de responsabilidade, que não se vincula a uma prestação delineada pelas partes, nem mesmo vincula indivíduos aleatoriamente ligados pela violação de um dever genérico de abstenção, qual seja a responsabilidade pela confiança.
3. A responsabilidade pela confiança é autônoma em relação à responsabilidade contratual e à extracontratual, constituindo-se em um terceiro fundamento ou 'terceira pista' (dritte Spur) da responsabilidade civil, tendo caráter subsidiário: onde houver o dano efetivo, requisito essencial para a responsabilidade civil e não for possível obter uma solução satisfatória pelos caminhos tradicionais da responsabilidade, a teoria da confiança será a opção válida.
4. A teoria da confiança ingressa no vácuo existente entre as responsabilidades contratual e extracontratual e seu reconhecimento se fundamenta principalmente no fato de que o sujeito que dá origem à confiança de outrem e, após, frustra-a, deve responder, em certas circunstâncias, pelos danos causados dessa frustração. A defraudação da confiança constitui o verdadeiro fundamento da obrigação de indenizar.
5. A responsabilidade fundada na confiança visa à proteção de interesses que transcendem o indivíduo, ditada sempre pela regra universal da boa-fé, sendo imprescindível a quaisquer negociações o respeito às situações de confiança criadas, estas consideradas objetivamente, cotejando-as com aquilo que é costumeiro no tráfico social.
6. A responsabilidade pela quebra da confiança possui a mesma ratio da responsabilidade pré-contratual, cuja aplicação já fora reconhecida pelo STJ (REsp 1051065/AM, REsp 1367955/SP). O ponto que as aproxima é o fato de uma das partes gerar na outra uma expectativa legítima de determinado comportamento, que, após, não se concretiza. O ponto que as diferencia é o fato de, na responsabilidade pré-contratual, a formalização de um contrato ser o escopo perseguido por uma das partes, enquanto que na responsabilidade pela confiança, o contrato, em sentido estrito, não será, ao menos necessariamente, o objetivo almejado.
7. No caso dos autos, ainda que não se discuta a existência de um contrato formal de compra e venda entre as partes ou de qualquer outra natureza, impossível negar a existência de relação jurídica comercial entre as empresas envolvidas, uma vez que a IBM portou-se, desde o início das tratativas, como negociante, com a apresentação de seu projeto, e enquanto titular deste, repassando à Radiall as especificações técnicas do produto a ser fabricado, assim como as condições do negócio. 8. Com efeito, por mais que inexista contrato formal, o direito deve proteger o vínculo que se forma pela repetição de atos que tenham teor jurídico, pelo simples e aqui tantas vezes repetido motivo: protege-se a confiança depositada por uma das partes na conduta de seu parceiro negocial.
9. Mostrou-se, de fato, incontroverso que os investimentos realizados pela recorrente, para a produção das peças que serviriam ao computador de bordo de titularidade da recorrida, foram realizados nos termos das relações que se verificaram no início das tratativas entre essas empresas, fatos a respeito dos quais concordam os julgadores de origem.
10. Ademais, ressalta claramente dos autos que a própria recorrida estipulou quais os modelos de conectores deveriam ser produzidos pela recorrente e em que quantidade, vindo, após certo tempo, repentina e de maneira surpreendente, a alterar as especificações técnicas daquelas peças, tornando inúteis as já produzidas.
11. O ordenamento processual pátrio consagra o juiz como o perito dos peritos e a ele a lei atribui a tarefa de dar a resposta à controvérsia apresentada em juízo, não importando a que ramo do conhecimento diga respeito. Essa a lição que se extrai do artigo 130 do CPC de 1973, que atribuiu ao juiz a função de ordenar e coordenar as provas a serem produzidas, conforme a utilidade e a necessidade, a postulação do autor e a resistência do réu, podendo determinar a realização de perícia, quando necessária a assessoria técnica para auxiliá-lo no deslinde da questão alvo (arts. 145, 421, 431-B do CPC).
12. Assim, a solução apresentada à controvérsia deve ser fruto do convencimento do Juiz, com base nas informações colhidas no conjunto probatório disponível nos autos, não estando restrito a uma e qualquer prova, especificamente.
13. Recurso especial parcialmente provido, para reconhecer a responsabilidade solidária da IBM - Brasil pelo ressarcimento dos danos materiais (danos emergentes e lucros cessantes) à recorrente.
(REsp 1309972/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27/04/2017, DJe 08/06/2017)Acórdão
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta
Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos
votos e das notas taquigráficas, por unanimidade, dar parcial
provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro
Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti
(Presidente), Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram com o
Sr. Ministro Relator.
Data do Julgamento
:
27/04/2017
Data da Publicação
:
DJe 08/06/2017
Órgão Julgador
:
T4 - QUARTA TURMA
Relator(a)
:
Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO (1140)
Informações adicionais
:
"[...] toda a moldura fático-probatória apresentada acima,
alcançada a partir dos relatos ofertados pelas decisões proferidas
na instância de origem incumbida de analisar as provas, permite
assinalar que este Superior Tribunal está autorizado a dizer se
esses fatos são capazes de caracterizar a responsabilidade da
empresa mãe, IBM Brasil, pelos prejuízos suportados pela fabricante
de determinada peça de produto por ela projetado.
Sendo assim, não merece respaldo qualquer alegação de
incidência da Súmula 7 ao julgamento que se inicia, pois que não se
trata a hipótese de revolvimento de contexto fático-probatório, mas,
aqui sim, de verdadeira revaloração jurídica do acervo apresentado
pelas instâncias ordinárias".
Referência legislativa
:
LEG:FED LEI:005869 ANO:1973***** CPC-73 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973 ART:00130 ART:00436LEG:FED ENU:****** ANO:2006***** ENCV4(CJF)ENUNCIADO DA QUARTA JORNADA DE DIREITO CIVIL NUM:00362 NUM:00363LEG:FED LEI:010406 ANO:2002***** CC-02 CÓDIGO CIVIL DE 2002 ART:00422LEG:FED SUM:****** ANO:********* SUM(STJ) SÚMULA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SUM:000007
Veja
:
(RESPONSABILIDADE - QUEBRA DA CONFIANÇA) STF - ADI 4429(RESPONSABILIDADE - CRIAÇÃO DE EXPECTATIVA LEGÍTIMA - PREJUÍZOMATERIAL) STJ - REsp 1051065-AM, REsp 1367955-SP(PROVAS - EXAME PERICIAL - VALORAÇÃO DA PROVA - PERSUASÃO RACIONAL) STF - RHC 120052
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