REsp 1410732 / RNRECURSO ESPECIAL2013/0198039-6
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. PRAIA. PROPRIEDADE DA UNIÃO.
ARTS. 3°, 6°, § 2°, E 10 DA LEI 7.661/1988. ARTS. 5°, 10 E 11, § 4°, DA LEI 9.636/1998. BARRACA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO DA SECRETARIA DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO. PROTEÇÃO DA PAISAGEM. MUDANÇAS CLIMÁTICAS.
FEDERALISMO COOPERATIVO AMBIENTAL. ART. 4° DA LEI COMPLEMENTAR 140/2011. LICENÇA URBANÍSTICO-AMBIENTAL. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. DETENÇÃO ILÍCITA E NÃO POSSE. PRECARIEDADE.
DEMOLIÇÃO. SÚMULA 7/STJ.
HISTÓRICO DA DEMANDA 1. O Tribunal a quo, em ação reivindicatória e com suporte em elementos fático-probatórios, consignou que o particular edificou barraca, com finalidade comercial, na Praia de Cacimbinhas, Município de Tibau do Sul-RN, sem autorização da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), tendo sido verificada ainda a precariedade das condições sanitárias do empreendimento, razões pelas quais manteve a ordem de demolição.
ZONA COSTEIRA 2. Com especial ênfase, nosso Direito protege a Zona Costeira, território que alberga ecossistemas acossados por atividades antrópicas diretas e, mais recentemente, por efeitos deletérios e implacáveis das mudanças climáticas. Trata-se de espaço em que habitat de inúmeras espécies da flora e da fauna ameaçadas de extinção - muitas delas endêmicas, por se encontrarem aqui e em nenhum outro lugar do Planeta - coexiste com ricos sítios históricos e paisagens naturais extraordinárias, exaltadas por brasileiros e estrangeiros. Um inestimável patrimônio nacional e da humanidade que vem sofrendo constante e irrefreável degradação desde o primeiro momento da colonização portuguesa, acentuada nas últimas décadas por conta de desmatamento e especulação imobiliária, além de insensibilidade, desídia e cumplicidade do Poder Público.
3. Atento ao valor transcendental e à gravidade das agressões à Zona Costeira, o legislador prescreveu, em vasto conjunto de normas constitucionais e infraconstitucionais, um intrincado microssistema jurídico próprio e peculiar que, apesar de pouco conhecido e aplicado de modo errático, deve ser observado pelo administrador e pelo juiz, em tudo que se refira a ações ou omissões que ameacem praias, recifes, parcéis e bancos de algas, ilhas costeiras e oceânicas, sistemas fluviais, estuarinos e lagunares, baías e enseadas, promontórios, costões e grutas marinhas, restingas, dunas, cordões arenosos, florestas litorâneas, manguezais, pradarias submersas, além de outras Áreas de Preservação Permanente, como falésias, e monumentos do patrimônio natural, histórico, paleontológico, espeleológico, arqueológico, étnico, cultural e paisagístico (art. 3° da Lei 7.661/1988).
4. Acima de tudo em casos de empreendimento de larga escala (como estrada e avenida, loteamento, porto, marina ou resort), ou daqueles que, por qualquer razão, possam colocar em risco processos ecológicos protegidos ou a paisagem (hipótese de espigões e multiplicidade de barracas), a ocupação e a exploração de áreas de praia e ecossistemas da Zona Costeira demandam elaboração de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (art. 6°, § 2°, da Lei 7.661/1988).
Impõe-se tal medida inclusive quando o motivo para a ação governamental for, retirando uns, deixando outros, organizar o caos urbanístico caracterizado pela privatização ilícita de espaços que, pela Constituição e por lei, são públicos.
DOMÍNIO DA UNIÃO 5. Na esfera da competência de implementação comum (art. 23, parágrafo único, da Constituição de 1988) e legitimados sob o manto do federalismo cooperativo ambiental e de políticas de descentralização (art. 4° da Lei Complementar 140/2011), a União, os Estados e os Municípios podem e devem colaborar, de forma a evitarem conflitos entre si e ampliarem a eficácia e a eficiência de suas ações administrativas. Contudo, eventuais delegação, convênio, consórcio público ou acordo entre essas entidades não atribuem a órgão estadual ou municipal autoridade para, sponte sua, no âmbito de licenciamento e fiscalização ambientais, a qualquer título dispor, direta ou indiretamente, de áreas de domínio federal.
6. Se o bem é da União, nulas a licença e a autorização urbanístico-ambientais outorgadas pelo Município ou Estado sem prévia consulta e, em seguida, anuência expressa e inequívoca do titular do domínio (art. 5° da Lei 9.636/1998). Em tais circunstâncias, a expedição de atos pelo gestor municipal ou estadual caracteriza improbidade administrativa.
7. Constatada a ocupação ilícita, no caso de bens da União, deverá o órgão competente "imitir-se sumariamente na posse do imóvel, cancelando-se as inscrições eventualmente realizadas", sem prejuízo de cobrança de "indenização" pelo uso indevido (art. 10 da Lei 9.636/1998).
8. Embora de domínio federal, incumbe, solidariamente, à União, aos Estados e aos Municípios a obrigação de protegerem as praias, decorrência do dever de, em conjunto, zelarem "pela manutenção das áreas de preservação ambiental, das necessárias à proteção dos ecossistemas naturais e de uso comum do povo, independentemente da celebração de convênio para esse fim" (art. 11, § 4°, da Lei 9.636/1998).
PAISAGEM 9. Na percepção do mundo ao seu redor, o ser humano é antes de tudo produto e refém do sentido da visão, daí ser lógico ao Direito, no trato de questões afeitas ao campo histórico e paisagístico, incorporar o universo das impressões colhidas pelo olhar e tocar.
Conquanto a proteção jurídica da Zona Costeira não se faça, nem se deva fazer, apenas pela lente reducionista da estética, o certo é que a paisagem representa um dos valores centrais a inspirar a atuação do legislador, do administrador e do juiz. Nos ordenamentos contemporâneos, o elemento paisagístico - quer natural, quer artificial - ganha posição de bem jurídico culturalmente apreciado, legalmente individualizado, judicialmente garantido e temporalmente expandido ao agregar a perspectiva das gerações futuras.
10. Assim como sucede quando se depara com outros predicados e contingências intangíveis da vida humana (nascimento, morte, vergonha, dor, amor, ódio, honestidade, risco), igualmente alvos de normatividade e portadores de alta carga subjetiva ou psicológica, o Poder Judiciário não se deve furtar a enfrentar, entre os grandes dilemas existenciais da atualidade, o chamamento à proteção da paisagem e do belo, pois o próprio legislador se encarregou de reconhecer o fenômeno da "poluição estética" (art. 3°, III, "d", da Lei 6.938/1981).
11. Claro, a estética paisagística hodierna vai além da noção clássica de belo natural - romântica, materialista, elitista e obediente a certo simetrismo de convenções oficiais - ao abraçar a robustez da diversidade biológica e de outros atributos complexos da Natureza que, por serem imperceptíveis a olho nu ou pelo não especialista, mais do que "vistos" são apenas "sentidos" ou mesmo "imaginados". Um tipo de contentamento individual e social derivado não tanto do fisicamente presenciar ou apalpar, mas da experiência de simplesmente saber existirem, de maneira incógnita, no caos-harmonia dos surpreendentes e ainda misteriosos processos ecológicos que sustentam a vida na Terra.
12. No mais, inviável analisar as teses defendidas no Recurso Especial - principalmente a de que o bem não teria sido corretamente demarcado nem individualizado -, pois buscam afastar as premissas fáticas estabelecidas pelo Tribunal de origem. Incidência da Súmula 7/STJ.
13. Recurso Especial não provido.
(REsp 1410732/RN, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/10/2013, DJe 13/12/2016)
Ementa
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. PRAIA. PROPRIEDADE DA UNIÃO.
ARTS. 3°, 6°, § 2°, E 10 DA LEI 7.661/1988. ARTS. 5°, 10 E 11, § 4°, DA LEI 9.636/1998. BARRACA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO DA SECRETARIA DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO. PROTEÇÃO DA PAISAGEM. MUDANÇAS CLIMÁTICAS.
FEDERALISMO COOPERATIVO AMBIENTAL. ART. 4° DA LEI COMPLEMENTAR 140/2011. LICENÇA URBANÍSTICO-AMBIENTAL. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. DETENÇÃO ILÍCITA E NÃO POSSE. PRECARIEDADE.
DEMOLIÇÃO. SÚMULA 7/STJ.
HISTÓRICO DA DEMANDA 1. O Tribunal a quo, em ação reivindicatória e com suporte em elementos fático-probatórios, consignou que o particular edificou barraca, com finalidade comercial, na Praia de Cacimbinhas, Município de Tibau do Sul-RN, sem autorização da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), tendo sido verificada ainda a precariedade das condições sanitárias do empreendimento, razões pelas quais manteve a ordem de demolição.
ZONA COSTEIRA 2. Com especial ênfase, nosso Direito protege a Zona Costeira, território que alberga ecossistemas acossados por atividades antrópicas diretas e, mais recentemente, por efeitos deletérios e implacáveis das mudanças climáticas. Trata-se de espaço em que habitat de inúmeras espécies da flora e da fauna ameaçadas de extinção - muitas delas endêmicas, por se encontrarem aqui e em nenhum outro lugar do Planeta - coexiste com ricos sítios históricos e paisagens naturais extraordinárias, exaltadas por brasileiros e estrangeiros. Um inestimável patrimônio nacional e da humanidade que vem sofrendo constante e irrefreável degradação desde o primeiro momento da colonização portuguesa, acentuada nas últimas décadas por conta de desmatamento e especulação imobiliária, além de insensibilidade, desídia e cumplicidade do Poder Público.
3. Atento ao valor transcendental e à gravidade das agressões à Zona Costeira, o legislador prescreveu, em vasto conjunto de normas constitucionais e infraconstitucionais, um intrincado microssistema jurídico próprio e peculiar que, apesar de pouco conhecido e aplicado de modo errático, deve ser observado pelo administrador e pelo juiz, em tudo que se refira a ações ou omissões que ameacem praias, recifes, parcéis e bancos de algas, ilhas costeiras e oceânicas, sistemas fluviais, estuarinos e lagunares, baías e enseadas, promontórios, costões e grutas marinhas, restingas, dunas, cordões arenosos, florestas litorâneas, manguezais, pradarias submersas, além de outras Áreas de Preservação Permanente, como falésias, e monumentos do patrimônio natural, histórico, paleontológico, espeleológico, arqueológico, étnico, cultural e paisagístico (art. 3° da Lei 7.661/1988).
4. Acima de tudo em casos de empreendimento de larga escala (como estrada e avenida, loteamento, porto, marina ou resort), ou daqueles que, por qualquer razão, possam colocar em risco processos ecológicos protegidos ou a paisagem (hipótese de espigões e multiplicidade de barracas), a ocupação e a exploração de áreas de praia e ecossistemas da Zona Costeira demandam elaboração de Estudo Prévio de Impacto Ambiental (art. 6°, § 2°, da Lei 7.661/1988).
Impõe-se tal medida inclusive quando o motivo para a ação governamental for, retirando uns, deixando outros, organizar o caos urbanístico caracterizado pela privatização ilícita de espaços que, pela Constituição e por lei, são públicos.
DOMÍNIO DA UNIÃO 5. Na esfera da competência de implementação comum (art. 23, parágrafo único, da Constituição de 1988) e legitimados sob o manto do federalismo cooperativo ambiental e de políticas de descentralização (art. 4° da Lei Complementar 140/2011), a União, os Estados e os Municípios podem e devem colaborar, de forma a evitarem conflitos entre si e ampliarem a eficácia e a eficiência de suas ações administrativas. Contudo, eventuais delegação, convênio, consórcio público ou acordo entre essas entidades não atribuem a órgão estadual ou municipal autoridade para, sponte sua, no âmbito de licenciamento e fiscalização ambientais, a qualquer título dispor, direta ou indiretamente, de áreas de domínio federal.
6. Se o bem é da União, nulas a licença e a autorização urbanístico-ambientais outorgadas pelo Município ou Estado sem prévia consulta e, em seguida, anuência expressa e inequívoca do titular do domínio (art. 5° da Lei 9.636/1998). Em tais circunstâncias, a expedição de atos pelo gestor municipal ou estadual caracteriza improbidade administrativa.
7. Constatada a ocupação ilícita, no caso de bens da União, deverá o órgão competente "imitir-se sumariamente na posse do imóvel, cancelando-se as inscrições eventualmente realizadas", sem prejuízo de cobrança de "indenização" pelo uso indevido (art. 10 da Lei 9.636/1998).
8. Embora de domínio federal, incumbe, solidariamente, à União, aos Estados e aos Municípios a obrigação de protegerem as praias, decorrência do dever de, em conjunto, zelarem "pela manutenção das áreas de preservação ambiental, das necessárias à proteção dos ecossistemas naturais e de uso comum do povo, independentemente da celebração de convênio para esse fim" (art. 11, § 4°, da Lei 9.636/1998).
PAISAGEM 9. Na percepção do mundo ao seu redor, o ser humano é antes de tudo produto e refém do sentido da visão, daí ser lógico ao Direito, no trato de questões afeitas ao campo histórico e paisagístico, incorporar o universo das impressões colhidas pelo olhar e tocar.
Conquanto a proteção jurídica da Zona Costeira não se faça, nem se deva fazer, apenas pela lente reducionista da estética, o certo é que a paisagem representa um dos valores centrais a inspirar a atuação do legislador, do administrador e do juiz. Nos ordenamentos contemporâneos, o elemento paisagístico - quer natural, quer artificial - ganha posição de bem jurídico culturalmente apreciado, legalmente individualizado, judicialmente garantido e temporalmente expandido ao agregar a perspectiva das gerações futuras.
10. Assim como sucede quando se depara com outros predicados e contingências intangíveis da vida humana (nascimento, morte, vergonha, dor, amor, ódio, honestidade, risco), igualmente alvos de normatividade e portadores de alta carga subjetiva ou psicológica, o Poder Judiciário não se deve furtar a enfrentar, entre os grandes dilemas existenciais da atualidade, o chamamento à proteção da paisagem e do belo, pois o próprio legislador se encarregou de reconhecer o fenômeno da "poluição estética" (art. 3°, III, "d", da Lei 6.938/1981).
11. Claro, a estética paisagística hodierna vai além da noção clássica de belo natural - romântica, materialista, elitista e obediente a certo simetrismo de convenções oficiais - ao abraçar a robustez da diversidade biológica e de outros atributos complexos da Natureza que, por serem imperceptíveis a olho nu ou pelo não especialista, mais do que "vistos" são apenas "sentidos" ou mesmo "imaginados". Um tipo de contentamento individual e social derivado não tanto do fisicamente presenciar ou apalpar, mas da experiência de simplesmente saber existirem, de maneira incógnita, no caos-harmonia dos surpreendentes e ainda misteriosos processos ecológicos que sustentam a vida na Terra.
12. No mais, inviável analisar as teses defendidas no Recurso Especial - principalmente a de que o bem não teria sido corretamente demarcado nem individualizado -, pois buscam afastar as premissas fáticas estabelecidas pelo Tribunal de origem. Incidência da Súmula 7/STJ.
13. Recurso Especial não provido.
(REsp 1410732/RN, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/10/2013, DJe 13/12/2016)Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima
indicadas, acordam os Ministros da SEGUNDA Turma do Superior
Tribunal de Justiça: "A Turma, por unanimidade, negou provimento ao
recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)."
Os Srs. Ministros Og Fernandes, Mauro Campbell Marques (Presidente),
Eliana Calmon e Humberto Martins votaram com o Sr. Ministro Relator.
Data do Julgamento
:
17/10/2013
Data da Publicação
:
DJe 13/12/2016
Órgão Julgador
:
T2 - SEGUNDA TURMA
Relator(a)
:
Ministro HERMAN BENJAMIN (1132)
Referência legislativa
:
LEG:FED SUM:****** ANO:********* SUM(STJ) SÚMULA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA SUM:000007
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