main-banner

Jurisprudência


RHC 72074 / MGRECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS2016/0155320-7

Ementa
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIMES DE SONEGAÇÃO FISCAL E APROPRIAÇÃO INDÉBITA TRIBUTÁRIA (LEI N. 8.137/1990, ART. 1º, INC. I, E ART. 2º, INC. II). INÉPCIA DA INICIAL ACUSATÓRIA. PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. DENÚNCIA GENÉRICA NÃO EVIDENCIADA. DEMONSTRADA A MÍNIMA CORRELAÇÃO DOS FATOS DELITUOSOS COM A ATIVIDADE DO ACUSADO. JUSTA CAUSA. LASTRO PROBATÓRIO MÍNIMO EVIDENCIADO. PROCESSO CRIMINAL INSTRUÍDO COM BASE EM DADOS DECORRENTES COMPARTILHAMENTO DE DADOS FINANCEIROS DAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS COM A AUTORIDADE FISCAL. AUSÊNCIA DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO FISCAL PARA FINS PENAIS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. RECURSO DESPROVIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Cumpre esclarecer que a jurisprudência dos tribunais superiores admite o trancamento do inquérito policial ou de ação penal, excepcionalmente, nas hipóteses em que se constata, sem o revolvimento de matéria fático-probatória, a ausência de indícios de autoria e de prova da materialidade, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade, o que não se observa neste caso. Precedentes. 2. A conduta de inadimplir o crédito tributário, de per si, pode não constitui crime. Caso o sujeito passivo declare todos os fatos geradores à Administração Tributária, conforme periodicidade exigida em lei, cumpra as obrigações tributárias acessórias e mantenha a escrituração contábil regular, não há falar em sonegação fiscal (Lei n. 8137/1990, art. 1º), mas mero inadimplemento, passível de execução fiscal. Os crimes contra a ordem tributária, exceto o de apropriação indébita tributária e previdenciária, além do inadimplemento, pressupõe a ocorrência de alguma forma de fraude, que poderá ser consubstanciada em omissão de declaração, falsificação material ou ideológica, a utilização de documentos material ou ideologicamente falsos, simulação, entre outros meios. 3. A alegação de inépcia da denúncia deve ser analisada de acordo com os requisitos exigidos pelos arts. 41 do CPP e 5º, LV, da CF/1988. Portanto, a peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias, de maneira a individualizar o quanto possível a conduta imputada, bem como sua tipificação, com vistas a viabilizar a persecução penal e o contraditório pelo réu. Precedentes. 4. In concreto, a inicial acusatória preenche os requisitos exigidos pelo art. 41 do CPP, porquanto descreve detalhadamente os elementos essenciais da conduta do réu, ora recorrente, nos termos do art. 1º, inciso I, e do art. 2º, inciso II, ambos da Lei n. 8.137/1990. O dominus litis subsume as condutas do réu aos tipos em tela, indicando tanto o inadimplemento do crédito tributário, como a fraude, para caracterizar a sonegação fiscal. Nos termos da exordial acusatória, na condição de único administrador, teria recorrente suprimido tributos federais, mediante a apresentação de declaração de imposto de renda da pessoa jurídica - DIPJ 2008, referente ao ano-calendário de 2007, com os valores relativos à receita bruta zerados, tendo, ainda, omitido-se no ano-calendário de 2008, deixando de apresentar as diversas declarações fiscais acessórias. 5. Pontue-se a necessária distinção conceitual entre denúncia geral e genérica, essencial para aferir a regularidade da peça acusatória no âmbito das infrações de autoria coletiva, em especial nos crimes societários (ou de gabinete), que são aqueles cometidos por presentantes (administradores, diretores ou quaisquer outros membros integrantes de órgão diretivo, sejam sócios ou não) da pessoa jurídica, em concurso de pessoas. A denúncia genérica caracteriza-se pela imputação de vários fatos típicos, genericamente, a integrantes da pessoa jurídica, sem delimitar, minimamente, qual dos denunciados teria agido de tal ou qual maneira. Patente, pois, que a criptoimputação da denúncia genérica vulnera os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, bem como a norma extraída do art. 8º, 2, "b" e "c", da Convenção Americana de Direitos Humanos e do art. 41 do CPP, haja vista a indevida obstaculização do direito conferido ao acusado de preparar dignamente sua defesa. 6. Imprescindível explicitar o liame do fato descrito com a pessoa do denunciado, malgrado a desnecessidade da pormenorização das condutas, até pelas comuns limitações de elementos de informações angariados nos crimes societários, por ocasião do oferecimento da denúncia, sob pena de inviabilizar a persecução penal nesses crimes. A acusação deve correlacionar com o mínimo de concretude os fatos delituosos com a atividade do acusado, não sendo suficiente a condição de sócio da sociedade, sob pena de responsabilização objetiva. 7. Nos termos da denúncia, o Parquet não se limitou a transcrever trechos dos tipos penais imputados e indicar simplesmente a condição de administrador do recorrente, tendo efetivamente descrito os atos fraudulentos utilizados para a realização da evasão fiscal, bem como a retenção indevida do IRPF descontado dos trabalhadores. Outrossim, vinculou concretamente, com verossimilhança, as condutas descritas às funções ordinariamente exercidas por um administrador, a fortiori, diante da conclusão do dominus litis no sentido de ser o recorrente único administrador de fato e de direito da sociedade empresária Crown Processamento de Dados Ltda., posteriormente transformada em sociedade anônima, sob a denominação Crown Processamento de Dados S/A, tendo sido o recorrente eleito diretor presidente. 8. A denúncia foi instruída com elementos de informação capazes de provar a materialidade dos crimes tributários em questão, tendo apontado inícios suficientes de autoria ao réu, ora recorrente. A Representação Fiscal para fins Penais (e-STJ, fls. 378/392) aponta a materialidade de sonegação fiscal, e não mero inadimplemento. Consta que o recorrente não atendeu sistematicamente às intimações da Receita Federal, embaraçando a fiscalização de possíveis omissões de receitas tributáveis, razão pela qual foram solicitadas informações às instituições financeiras para instruir o competente procedimento administrativo fiscal. Apurou-se o débito tributário de R$ 8.203.914,42 (oito milhões, duzentos e três mil, novecentos e quatorze reais e quarenta e dois centavos). A partir das informações decorrentes do compartilhamento do sigilo bancário (e-STJ, fls. 501-1749), diversos documentos apontam a existência de grande volume de movimentações de recursos financeiros nos anos de 2007 e de 2008, período em que houve, em tese, fornecimento incorreto de receita (receita zero), e ausência de declarações de rendas tributáveis da pessoa jurídica. 9. No que toca aos indícios de autoria, a 6ª alteração contratual (e-STJ, fls. 81-85), em especial os itens 5.2 a 5.4 (e-STJ, fl. 83), aponta expressamente ser o recorrente o único administrador, cabendo exclusivamente a ele presentar ativa e passivamente a sociedade, bem como utilizar a denominação social. Outrossim, a sócia Crown Holding e aquisições Ltda., cujo presentante era o recorrente, detinha 99% (noventa e nove por cento) do capital social da sociedade Crown Processamento de Dados Ltda.; por outro lado, o sócio minoritário, Aluísio Mol de Freitas, detinha simbólicos 1% (um por cento) do capital social, artifício comumente utilizado pelos efetivos empresários individuais simularem a existência de uma sociedade, com o fim de gozar da limitação de responsabilidade conferida às sociedades empresárias. Mais do que isso, os depoimentos de Saul Vaz da Silva Nato e Aluísio Mol de Freitas (e-STJ, fls. 72-79) confirmam que o recorrente era efetivamente o único administrador da sociedade. 10. Diante das circunstâncias narradas, não se pode vislumbrar conclusão diversa senão a existência, ao menos, de indícios de que o recorrente teria efetivamente sonegado pagamento de tributos. Ressalte-se que os indícios de autoria imputados não implicam sua condenação antecipada, o que indicaria inarredável ilegalidade. Muito pelo contrário, o órgão ministerial, diante da materialidade do crime e dos indícios de autoria, ao promover a denúncia, mostrou-se cumpridor do desiderato da obrigatoriedade da ação penal pública incondicionada. 11. A Lei Complementar 105/01 regulamenta a intimidade e vida privada relativas às informações bancárias dos indivíduos, reafirmando ser o sigilo bancário a regra a ser seguida pelas instituições financeiras, consoante afirma art. 1º da referida Lei. Entrementes, quando indispensáveis ao êxito do lançamento tributário, o art. 6º possibilita o acesso de dados bancários do sujeito passivo tributário pelo Fisco, por meio de requisição de informação de movimentação financeira (RMF), para identificação por meio de legítima atividade fiscalizatória, do patrimônio, dos rendimentos e das atividades econômicas, vedando-se, contudo, a divulgação dessas informações, com o fim de resguardar a intimidade e a vida íntima do correntista. Trata-se, pois, de verdadeiro compartilhamento sigiloso de informações bancárias de instituições financeiras para à Administração Tributária, motivo pelo qual não há falar em quebra de sigilo, mas mera transferência desse sigilo, cuja violação acarreta sanção penal ao responsável (LC 105/01, art. 10). 12. Malgrado esta Corte admita o intercâmbio de informações entre as instituições financeiras e a autoridade fiscal para fins de constituição do crédito tributário, isso não significa que o dominus litis possa utilizar-se de tais dados para que seja deflagrada ação penal, porquanto representa verdadeira quebra de sigilo constitucional, inserida em reserva de jurisdição, e não mero compartilhamento de informações. Como cediço, o sigilo bancário, garantido no art. 5º da Constituição da República, somente pode ser suprimido por ordem judicial devidamente fundamentada, nos termos do artigo 93, inciso IX, da Constituição. Nesse sentido é a jurisprudência deste Tribunal, que firmou o entendimento que é imprescindível prévia autorização judicial da representação fiscal para fins penais, caso contenha dados bancários sigilosos, devidamente compartilhados com a autoridade fiscal para consecução do lançamento fiscal. 13. Verifica-se que a representação fiscal para fins penais que subsidiou a denúncia policial baseou-se, entre outros dados, na análise das movimentações financeiras da sociedade empresária Crown Processamento de Dados S/A, obtidas por RMF pela autoridade fiscal, o que, como visto, não é admitido pelo ordenamento jurídico pátrio. Trata-se, pois, de evidente prova ilícita produzida em desfavor do réu, o que revela o constrangimento ilegal a que está submetido. 14. O reconhecimento da ilegalidade da quebra do sigilo bancário sem prévia autorização judicial para fins penais, entrementes, não enseja, de per si, o trancamento da persecução penal, porquanto as peças processuais acostadas aos autos não permitem aferir se haveria ou não outras provas hábeis a justificar a instauração do procedimento inquisitorial, ou mesmo o oferecimento de denúncia. 15. Recurso desprovido. Ordem concedida de ofício, apenas para determinar o desentranhamento dos autos do processo criminal todas as provas decorrentes da quebra do sigilo bancário do recorrente sem autorização judicial. (RHC 72.074/MG, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 06/10/2016, DJe 19/10/2016)
Acórdão
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso e conceder "Habeas Corpus" de ofício, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Joel Ilan Paciornik, Felix Fischer, Jorge Mussi e Reynaldo Soares da Fonseca votaram com o Sr. Ministro Relator. Sustentaram oralmente: Dr. Marcos Vidigal de Freitas Crissiuma (p/recte) e Ministério Público Federal.

Data do Julgamento : 06/10/2016
Data da Publicação : DJe 19/10/2016
Órgão Julgador : T5 - QUINTA TURMA
Relator(a) : Ministro RIBEIRO DANTAS (1181)
Referência legislativa : LEG:FED LEI:008137 ANO:1990 ART:00001LEG:FED DEL:003689 ANO:1941***** CPP-41 CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ART:00041LEG:FED CFB:****** ANO:1988***** CF-1988 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ART:00005 INC:00055 ART:00093 INC:00009LEG:INT CVC:****** ANO:1969***** CADH CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS ART:00008 ITEM:00002 LET:B LET:CLEG:FED LCP:000105 ANO:2001 ART:00001 ART:00006 PAR:ÚNICO
Veja : (TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL - CARÁTER EXCEPCIONAL - REQUISITOS) STJ - RHC 58872-PE, RHC 46299-SP, HC 294833-SC STF - RHC-AgRg 125787, HC 108168(INÉPCIA DA DENÚNCIA - REQUISITOS) STJ - RHC 56111-PA, RHC 58872-PE, RHC 28236-PR(INÉPCIA DA DENÚNCIA - CRIMES SOCIETÁRIOS - INDIVIDUALIZAÇÃO DACONDUTA) STF - HC 128031, INQ 3644, HC 118891, HC 122450 STJ - HC 139064-PE, AgRg no AREsp 537771-SP, AgRg no AREsp 537770-SP, RHC 43399-PA(DADOS BANCÁRIOS SIGILOSOS - OBTENÇÃO PELO FISCO) STF - ADI 2390-DF STJ - AgRg no RHC 63057-SP, RHC 59875-DF(INFORMATIVO 815), ADI 2386-DF, ADI 2397-DF, ADI 2859-DF(DADOS BANCÁRIOS SIGILOSOS - OBTENÇÃO PELO FISCO - FINS PENAIS -AUTORIZAÇÃO JUDICIAL) STJ - RHC 42332-PR, RHC 52067-DF, RHC 47030-DF
Mostrar discussão