STF HC 82424 / RS - RIO GRANDE DO SUL HABEAS CORPUS
HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO.
RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM
DENEGADA.
1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros
"fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias"
contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada
pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas
de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º,
XLII).
2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos
crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não
pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional
de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa.
3. Raça humana.
Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma
humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja
pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por
quaisquer outras características físicas, visto que todos se
qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre
os seres humanos. Na essência são todos iguais.
4. Raça e racismo.
A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de
conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o
racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito
segregacionista.
5. Fundamento do núcleo do pensamento do
nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças
distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta,
características suficientes para justificar a segregação e o
extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais
definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob
os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que
por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos
princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana,
baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua
pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e
imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de
densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento
infraconstitucional e constitucional do País.
6. Adesão do Brasil a
tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam
quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções
entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça,
cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na
pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos
a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo.
7. A
Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa
natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de
imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam,
verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua
prática.
8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos
etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou
biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional
do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição
Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e
sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o
real sentido e alcance da norma.
9. Direito comparado. A exemplo do
Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado
moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento
legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação
racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara
dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos
Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções
àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com
grupos humanos que simbolizem a prática de racismo.
10. A edição
e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que
buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo
regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos
incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa
inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação
ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas
conseqüências históricas dos atos em que se baseiam.
11. Explícita
conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto
dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma
raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e
geneticamente menor e pernicioso.
12. Discriminação que, no caso,
se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus,
que configura ato ilícito de prática de racismo, com as
conseqüências gravosas que o acompanham.
13. Liberdade de
expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta.
Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode
abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que
implicam ilicitude penal.
14. As liberdades públicas não são
incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica,
observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF,
artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de
liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao
racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em
salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra
a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e
da igualdade jurídica.
15. "Existe um nexo estreito entre a
imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar
termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo
da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito
democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios
que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se
apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos
repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre
iguais por motivos raciais de torpeza inominável.
16. A ausência
de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave
para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a
reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência
jurídica e histórica não mais admitem.
Ordem denegada.
Ementa
HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO.
RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM
DENEGADA.
1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros
"fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias"
contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada
pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas
de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º,
XLII).
2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos
crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não
pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional
de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa.
3. Raça humana.
Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma
humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja
pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por
quaisquer outras características físicas, visto que todos se
qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre
os seres humanos. Na essência são todos iguais.
4. Raça e racismo.
A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de
conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o
racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito
segregacionista.
5. Fundamento do núcleo do pensamento do
nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças
distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta,
características suficientes para justificar a segregação e o
extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais
definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob
os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que
por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos
princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana,
baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua
pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e
imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de
densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento
infraconstitucional e constitucional do País.
6. Adesão do Brasil a
tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam
quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções
entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça,
cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na
pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos
a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo.
7. A
Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa
natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de
imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam,
verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua
prática.
8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos
etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou
biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional
do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição
Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e
sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o
real sentido e alcance da norma.
9. Direito comparado. A exemplo do
Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado
moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento
legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação
racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara
dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos
Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções
àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com
grupos humanos que simbolizem a prática de racismo.
10. A edição
e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que
buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo
regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos
incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa
inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação
ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas
conseqüências históricas dos atos em que se baseiam.
11. Explícita
conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto
dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma
raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e
geneticamente menor e pernicioso.
12. Discriminação que, no caso,
se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus,
que configura ato ilícito de prática de racismo, com as
conseqüências gravosas que o acompanham.
13. Liberdade de
expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta.
Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode
abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que
implicam ilicitude penal.
14. As liberdades públicas não são
incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica,
observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF,
artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de
liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao
racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em
salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra
a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e
da igualdade jurídica.
15. "Existe um nexo estreito entre a
imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar
termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo
da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito
democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios
que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se
apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos
repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre
iguais por motivos raciais de torpeza inominável.
16. A ausência
de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave
para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a
reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência
jurídica e histórica não mais admitem.
Ordem denegada.Decisão
Decisão: Após o voto do Senhor Ministro Moreira Alves, Relator, concedendo a ordem para pronunciar a prescrição da pretensão punitiva, pediu vista o Senhor Ministro Maurício Corrêa. Falou pelo paciente o Dr. Werner Cantalício João Becker. Presidência
do
Senhor Ministro Marco Aurélio. Plenário, 12.12.2002.
Decisão: Após o voto do Senhor Ministro Moreira Alves, Relator, concedendo a ordem, e dos votos dos Senhores Ministros Maurício Corrêa e Celso de Mello, este último em antecipação, indeferindo-a, pediu vista o Senhor Ministro Gilmar Mendes. Presidência
do Senhor Ministro Marco Aurélio. Plenário, 09.04.2003.
Decisão: O Tribunal, preliminarmente, por inexistência de previsão regimental, indeferiu o pedido de nova sustentação oral do ilustre advogado do paciente, tendo em vista não se encontrar mais nesta Corte, pela aposentadoria, o Senhor Ministro
Relator. Ausentes, justificadamente, nesta preliminar, os Senhores Ministros Sepúlveda Pertence e Carlos Velloso. Em seguida, após o voto do Senhor Ministro Gilmar Mendes, que indeferia o habeas- corpus, anteciparam os votos os Senhores Ministros
Carlos
Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie e Cezar Peluso, também denegando a ordem, pediu vista o Senhor Ministro Carlos Britto. Não participou da votação o Senhor Ministro Joaquim Barbosa por suceder ao Senhor Ministro Moreira Alves que proferira voto.
Presidência do Senhor Ministro Maurício Corrêa. Plenário, 26.06.2003.
Decisão: O Tribunal, por maioria, resolvendo a questão de ordem, não viu condições de deferimento do habeas-corpus de ofício, vencido o Senhor Ministro Carlos Britto, que entendeu deferi-lo por carência da ação penal por atipicidade de conduta. Votou o
Presidente, o Senhor Ministro Maurício Corrêa. Prosseguindo-se no julgamento, após o voto do Senhor Ministro Carlos Brito, que concedia, ex-officio, a ordem de habeas-corpus para absolver o paciente por falta de tipicidade de conduta, pediu vista dos
autos o Senhor Ministro Marco Aurélio. Não votou o Senhor Ministro Joaquim Barbosa por suceder ao Senhor Ministro Moreira Alves que proferira voto. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Senhor Ministro Nelson Jobim. Plenário, 27.08.2003.
Decisão: O Tribunal, por maioria, indeferiu o habeas-corpus, vencidos os Senhores Ministros Moreira Alves, Relator, e Marco Aurélio, que concediam a ordem para reconhecer a prescrição da pretensão punitiva do delito, e o Senhor Ministro Carlos Britto,
que a concedia, ex-officio, para absolver o paciente por falta de tipicidade de conduta. Redigirá o acórdão o Presidente, o Senhor Ministro Maurício Corrêa. Não votou o Senhor Ministro Joaquim Barbosa por suceder ao Senhor Ministro Moreira Alves que
proferira voto anteriormente. Plenário, 17.09.2003.
Data do Julgamento
:
Relator(a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA
Data da Publicação
:
DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524
Órgão Julgador
:
undefined
Relator(a)
:
Min. MOREIRA ALVES
Parte(s)
:
PACTE. : SIEGFRIED ELLWANGER
IMPTES. : WERNER CANTALÍCIO JOÃO BECKER
COATOR : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
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