TJAL 0095460-05.2008.8.02.0001
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. PREFEITO MUNICIPAL, ACUSADO DE, NA CONDIÇÃO DE PRESIDENTE DA COOPERATIVA AGROPECUÁRIA MAJOR IZIDORO LTDA. CAMILA, JUNTO COM O ENTÃO DIRETOR FINANCEIRO DA PESSOA JURÍDICA, HAVER PRATICADO OS DELITOS DE: (A) DUPLICATA SIMULADA ART. 172, CP; (B) APROPRIAÇÃO INDÉBITA ART. 168, CP, E; (C) ESTELIONATO ART. 171, CP, TODOS EM DESFAVOR DE EMPRESA DE FOMENTO MERCANTIL (FACTORING). PRELIMINAR DE NULIDADE DA AÇÃO PENAL, DECORRENTE DA AUSÊNCIA DE SUPERVISÃO DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE ALAGOAS NAS INVESTIGAÇÕES CONTRA O PREFEITO DURANTE O INQUÉRITO POLICIAL. DECISÃO PROFERIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA QUESTÃO DE ORDEM NO INQ. 2411, QUE NÃO DECLAROU INADMISSÍVEIS AS PROVAS COLHIDAS DURANTE A INVESTIGAÇÃO DEFLAGRADA SEM SUPERVISÃO DA CORTE COMPETENTE. FORMALIDADE QUE ATINE AO FORO ESPECIAL POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO, E NÃO TEM POR ESCOPO A PROTEÇÃO DE QUALQUER DIREITO INDIVIDUAL DA PESSOA DO INVESTIGADO. INAPLICABILIDADE DA TEORIA DAS PROVAS ILEGAIS AO CASO DE DESRESPEITO DA REGRA CONSTITUCIONAL IMPLÍCITA QUE DEMANDA A SUPERVISÃO/AUTORIZAÇÃO DO TRIBUNAL COMPETENTE NO CURSO DAS INVESTIGAÇÕES CONTRA DETENTOR DE PRERROGATIVA ESPECIAL. GARANTIA QUE DEVE SER REQUERIDA EM MOMENTO PRÓPRIO, RESTANDO PREJUDICADA APÓS INSTAURADA A AÇÃO PENAL. MÉRITO. (A) CRIME DE DUPLICATA SIMULADA. FRAUDE CONFIGURADA QUANDO HÁ O SAQUE DE DUPLICATAS RELATIVAS A CONTRATOS DE COMPRA E VENDA PARA "ENTREGA FUTURA". MATERIALIDADE DO DELITO CONFIGURADA, PELA COMPROVAÇÃO DE QUE NÃO HAVIA LASTRO PARA A EMISSÃO DAS DUPLICATAS DISCUTIDAS. EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE DO EX-DIRETOR FINANCEIRO DA COOPERATIVA, QUE ASSINOU AS DUPLICATAS, PELA PRESCRIÇÃO. RÉU MAIOR DE 70 (SETENTA) ANOS, PRAZO PRESCRICIONAL REDUZIDO PELA METADE. RESPONSABILIDADE PENAL DO EX-PRESIDENTE DA COOPERATIVA, ATUAL PREFEITO MUNICIPAL DE BELO MONTE. ACERVO PROBATÓRIO DOS AUTOS QUE ATESTA QUE, A DESPEITO DE NÃO HAVER ASSINADO AS CÁRTULAS, O RÉU TINHA CIÊNCIA E ANUÍA COM A EMISSÃO DAS DUPLICATAS SEM LASTRO. (B) CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA. AUSÊNCIA DE PROVAS DE QUE OS RÉUS TENHAM SE APROPRIADO DE VERBAS DEPOSITADAS EM FAVOR DA COOPERATIVA. ABSOLVIÇÃO, COM FULCRO NO ART. 386, V, DO CPP. (C) CRIME DE ESTELIONATO. NÃO COMPROVAÇÃO DO DOLO, TAMPOUCO DE QUE A SUPOSTA VÍTIMA FOI INDUZIDA OU MANTIDA EM ERRO. INCOMPATIBILIDADE DA ACUSAÇÃO COM AS CORRIQUEIRAS OPERAÇÕES DE CESSÃO DE DUPLICATAS SEM ACEITE E SEM COMPROVAÇÃO DE ENTREGA DAS MERCADORIAS, TOLERADAS PELA VÍTIMA, BEM COMO COM A FLEXIBILIDADE QUE SE DEMONSTROU QUE, IN CASU, O CONTRATO DE FOMENTO MERCANTIL POSSUÍA. PRESTAÇÃO DE GARANTIAS CAMBIAL E FIDEJUSSÓRIA PELOS RÉUS, ANTES MESMO DA PRÁTICA DO SUPOSTO ESTELIONATO, QUE SE AFIGURA COM O DOLO DE LESAR A VÍTIMA, PORQUE TAL CONDUTA ACARRETARIA PREJUÍZO AOS PRÓPRIOS RÉUS. DANO QUE FOI RESOLVIDO NA SEARA CÍVEL. ABSOLVIÇÃO, COM FULCRO NO ART. 386, V, DO CPP. DENÚNCIA JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. DECISÃO POR MAIORIA.
1. PRELIMINAR DE NULIDADE DA AÇÃO PENAL, DIANTE DA FALTA DE SUPERVISÃO DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE ALAGOAS NAS INVESTIGAÇÕES CONTRA O PREFEITO DURANTE O INQUÉRITO POLICIAL.
1.1. Não houve a supervisão judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas no curso do inquérito policial que antecedeu esta ação penal. Quando da instauração do inquérito policial, em março de 2009, Antônio Avânio Feitosa já exercia o primeiro ano de seu mandato como Prefeito do Município de Belo Monte, entretanto, o inquérito transcorreu sem a ciência desta Corte. É com fulcro na constatação de que não houve a supervisão desta Corte que a Defesa sustenta que a ação penal seria de todo nula, sustentando-se, ao que parece, na teoria dos frutos da árvore envenenada, a fim de arguir a ilegalidade de todo o contexto probatório colhido na fase investigativa. Olvidam, contudo, que a ação penal, hoje, já se encontra iniciada, amadurecida e com a instrução concluída, bem como deixaram de demonstrar a ocorrência de qualquer prejuízo concreto aos acusados.
1.2. O Supremo Tribunal Federal, quando julgou a referida Questão de Ordem no Inquérito n.º 2411, no ano de 2007, se posicionou no sentido de que a iniciativa no procedimento investigatório em desfavor de detentor de foro especial por prerrogativa de função deve ser atribuída ao Ministério Público, sob a supervisão do Relator no Tribunal, de modo que não está a autoridade policial legitimada a instaurar de ofício o inquérito policial para apuração dos fatos. Inobstante, inexiste precedente do STF que haja declarado a ilegalidade da prova colhida em sede inquisitorial, ou que haja determinado o desentranhamento de provas colhidas durante investigações realizadas sem a autorização daquela Corte Suprema. Na QO-Inq. n.º 2411 o STF decidiu exclusivamente que o investigado que detenha foro especial teria direito a pugnar pela anulação de seu indiciamento formal pela autoridade policial. Nada se disse acerca da ilicitude ou ilegitimidade da prova colhida, e tampouco se reputou nulo quaisquer atos processuais. Apenas, houve determinação de que o indiciamento fosse anulado, bem como de que todas as peças fossem remetidas à Procuradoria-Geral da República.
1.3. A autorização que se exige que seja conferida pelo Tribunal competente para fins de deflagração de investigação contra detentor de foro especial por prerrogativa de função se destina a fins próprios, restritos e peculiares, objetivando "evitar eventuais excessos por parte da Polícia Judiciária, no sentido de se vislumbrar - conforme no excerto do ofício acima transcrito -, inclusive, e independentemente do controle jurisdicional deste Tribunal a pretensão jurídica de instauração, 'ex officio', dos referidos inquéritos originários" (Ministro Gilmar Mendes, Relator da Questão de Ordem no Inquérito n.º 2411).
1.4. Toda a discussão travada aqui se relaciona com a temática das provas ilegais, bem como com as limitações que são impostas ao Estado na colheita de material probatório. É certo que "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos" (Constituição Federal, art. 5º, LVI), sendo que essas provas, "obtidas em violação a normas constitucionais ou legais", devem ser "desentranhadas do processo" (Código de Processo Penal, art. 157, com a Redação dada pela Lei n. 11.690/2008). No Processo Penal de um Estado Democrático de Direito, não se pode permitir que a verdade seja perseguida a qualquer preço, de maneira que ainda que seja em prejuízo da descoberta da verdade, a defesa de um processo justo e condizente com o respeito aos direitos e garantias fundamentais não permite que sejam utilizadas em um processo provas obtidas por meios ilícitos.
1.5. O Supremo Tribunal Federal, na Questão de Ordem no Inquérito Originário n.º 2411 não decidiu pela ilegalidade das provas colhidas pela autoridade policial em investigação deflagrada contra autoridade detentora de foro especial, somente em virtude de não ter havido supervisão judicial do Tribunal competente, até porque o referido Inquérito Originário n.º 2411 correu desde o início sob a supervisão da Suprema Corte. Exigir-se que uma investigação contra autoridade detentora de foro especial corra sob a supervisão judicial do Tribunal competente para julgá-la é completamente diferente de declarar-se a ilegalidade, ilegitimidade ou ilicitude da prova colhida pela autoridade policial sem a supervisão judicial do Tribunal competente. A tese defendida pelo Supremo Tribunal Federal na Questão de Ordem no Inquérito n.º 2411 não deságua no argumento encartado em precedente do Superior Tribunal de Justiça e deste Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, e aventado pela Defesa.
1.6. Inexiste, seja na Constituição, seja no Código de Processo Penal, qualquer regra expressa que determine que as investigações contra autoridade que detenha foro especial corram mediante supervisão judicial. Tal norma foi extraída da Constituição por interpretação jurisprudencial. Os bens jurídicos constitucionalmente garantidos, cuja proteção é visada pela teoria das provas ilegais, ao entender como ilícitas as provas colhidas com violação de direito material, não se referem ao foro especial por prerrogativa de função, mas sim à intimidade, privacidade, inviolabilidade do domicílio, inviolabilidade do sigilo de correspondência e das telecomunicações, integridade física e moral do preso, bem como à vedação de tortura ou tratamento desumano ou degradante. Essas é que são garantias fundamentais, liberdades individuais no sentido mais puro da expressão, que não podem ser confundidas com o foro especial, mesmo porque este visa à proteção da função ocupada, e não da pessoa.
1.7 É cediço que a jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída não no interesse da pessoa do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os Tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do Tribunal de superior hierarquia é bilateral, garantia contra e a favor do acusado (RCL n.º 473, Rel. Min. Victor Nunes Leal, DJ de 06/06/1962).
1.8 Sendo o foro especial uma prerrogativa do CARGO, e não da PESSOA, não há problema em se admitir a legalidade da prova colhida sem supervisão judicial, sobretudo, quando o próprio Tribunal competente admitiu a denúncia formulada pelo acusador também competente. Dito de outro modo, o próprio Tribunal que seria o competente para supervisionar a atuação policial está reconhecendo, agora, que há justa causa para a ação penal. Não se pode falar em ilegalidade, ilicitude ou ilegitimidade da prova colhida pela autoridade policial, tendo em vista que não foi violada qualquer regra de direito material fundamental, penal, processual penal ou constitucional, quando da colheita de tal prova, porque não ocorreu violação à privacidade, à intimidade e tampouco ao sigilo das correspondências, dos dados e comunicações do Prefeito. Houve apenas mera irregularidade no ato que ordenou a instauração do inquérito, porque iniciadas as investigações sem autorização do Tribunal de Justiça. Tal irregularidade resta inquestionavelmente superada quando há o recebimento, pelo juízo competente, da denúncia formulada pela autoridade também competente contra o investigado.
1.9. A conclusão que daí se retira é a de que, por não se tratar de ilegalidade, ilicitude ou ilegitimidade da prova colhida, o direito do detentor de foro privilegiado de se insurgir contra a instauração de inquérito policial sem a autorização do Tribunal competente para julgá-lo, embora existente, apenas pode ser exercido enquanto não for instaurada a ação penal pelo mesmo Tribunal. E assim o é justamente em razão da máxima geral que vigora em todo e qualquer processo, representada pelo brocardo pas de nullité sans grief, que encarta a ideia de que não pode haver declaração de nulidade sem que haja demonstração do prejuízo que esta acarreta.
1.10. Há mera irregularidade no fato de ter o inquérito policial corrido sem a autorização do Tribunal competente, a qual resta suprida pelo fato de que as provas colhidas durante as investigações foram ratificadas pela Procuradoria Geral de Justiça quando do oferecimento da denúncia, e reconhecidas como indícios da prática delitiva quando a denúncia foi recebida pelo mesmo Tribunal, o qual reconheceu haver justa causa para o início da ação penal. Reitere-se que não houve violação a qualquer garantia, direito ou liberdade do indivíduo, mas apenas o desatendimento de regra constitucional implícita relativa à prerrogativa de foro especial, a qual é destinada à função ocupada, e não à pessoa que a ocupa, in casu, o Prefeito Antônio Avânio Feitosa, que não sofreu nenhum prejuízo advindo da inobservância de tal regra.
1.11. Aqui, cabe trazer à baila o brocardo latino, a saber, iura non sucurrit dormientibus, ou o direito não socorre a quem dorme. Na medida em que, como também já dito, enquanto era mero investigado, o ora réu Antônio Avânio Feitosa jamais se insurgiu contra a condução da investigação, pela autoridade policial, sem autorização da Corte Estadual, mas apenas em sede de alegações finais veio a se irresignar contra fato passado bem após a oferta e recebimento da denúncia . A demora em sua alegação acarreta, ao menos, a necessidade de que se desincumba do ônus de demonstrar, comprovadamente, a existência de prejuízo decorrente da suposta nulidade, mesmo após o endosso das provas pela Procuradoria Geral de Justiça e por este próprio Tribunal, bem como depois de haver sido garantido ao réu o contraditório e a ampla defesa em sede judicial, com a produção de vasta quantidade de provas documentais e testemunhais.
1.12 PRELIMINAR REJEITADA.
2. MÉRITO
2.1 DUPLICATAS SIMULADAS
2.1.1. A Defesa jamais negou, mas, contrariamente, afirmou em todas as oportunidades que lhe foram conferidas, que todas as duplicatas, acostadas às fls. 65/72, eram correspondentes a contratos de compra e venda para "futuras entregas", fato que seria de total conhecimento da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., sendo que a Cooperativa CAMILA, quando sob a gestão dos réus, jamais se eximiu de honrar tais compromissos.
2.1.2. Há que se ter em mente que, diferentemente dos cheques e das notas promissórias, as duplicatas são títulos CAUSAIS, que, como tal, apenas podem ser sacadas (emitidas) para a documentação de um negócio jurídico preestabelecido pelas normas jurídicas que a disciplinam.
2.1.3. Deve ser firmada a impossibilidade de saque de duplicatas "para entrega futura", ou seja, relativas a operações de compra e venda que ainda não ocorreram, tese cuja aceitação acarretaria a quebra da ordem sistemática que preestabeleceu o legislador, cujos contornos estão definidos de forma hermética em lei, de modo que sua ruptura acarretaria o esvaziamento de toda a confiança (e, por conseguinte, do crédito) que dá suporte a toda e qualquer relação cambial.
2.1.4. A Lei n.º 5.474/1968 estabelece uma ordem que deve ser invariavelmente seguida: (1) contrato, (2) extração da fatura, com discriminação da entrega das mercadorias e, só então, (3) saque da duplicata. O que se tem, portanto, é que, quando os réus defendem a possibilidade de saque de duplicatas relativas a contratos de compra e venda para entregas futuras, estão eles mesmos se reservando um "direito", inexistente, de gozar, no âmbito das relações cambiais, de um crédito que ainda não existe.
2.1.5. A fatura não consubstancia apenas o documento que dá conta do negócio jurídico firmado entre o sacador (emitente, credor) da duplicata e o sacado (aceitante, devedor), mas é também o documento no qual consta a declaração de que houve a entrega da mercadoria vendida, ou a prestação do serviço contratado, razão pela qual só pode ser extraída depois da mencionada entrega.
2.1.6. Somente após a entrega dos bens ao respectivo comprador é que pode haver a extração da fatura, e, consequentemente, da duplicata. Tal conclusão decorre do próprio art. 1º da Lei das Duplicatas, que prescreve que o prazo para que seja extraída a fatura somente começa a fluir após a "data da entrega ou despacho das mercadorias". Apenas após a extração da fatura, com a declaração do vendedor de que as mercadorias foram entregues ao comprador, é que será possível (mas não obrigatório), o saque da duplicata.
2.1.7. Pelos documentos constantes dos autos, resta comprovado que, efetivamente, as duplicatas indicadas na Denúncia não foram emitidas com relação a uma operação de compra e venda em que tenha havido a efetiva entrega de mercadoria. O próprio réu Antônio Farias de Arruda reconhece e afirma que a Cooperativa costumava vender sua "produção futura", e, a fim de obter dinheiro, negociava duplicatas com as Factorings mediante contrato de fomento mercantil, em sistema que, alega, funcionava normalmente, tanto que "até 28/04/2008 nenhum cliente se negou a receber os boletos bancários, nem arguiu [questionou] a entrega dos títulos das mercadorias".
2.1.8. Não há dúvida, pois, que resta caracterizada a materialidade do delito de duplicata simulada, tipificado no art. 172 do Código Penal.
2.1.9. É irrefutável, portanto, a participação de Antônio Farias de Arruda no saque das duplicatas, em virtude da presença de sua assinatura em cada um dos títulos, somada à sua confissão de que sacou as duplicatas, embora não as considerasse ilícitas, bem como ao fato de que as empresas sacadas contranotificaram a vítima Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., corroborando a inexistência de contrato de compra e venda referente às duplicatas. Verifica-se, portanto, a concorrência de Antônio Farias de Arruda para prática do delito previsto no art. 172 do Código Penal Brasileiro. Inobstante, in casu, sua responsabilidade penal é elidida em virtude da extinção de sua punibilidade decorrente da prescrição da pretensão punitiva, porque se verifica que o réu Antônio Farias de Arruda possui hoje 76 (setenta e seis) anos, de modo que, nos termos do art. 115 do Código Penal, faz jus à redução do prazo prescricional pela metade, pois, na data do julgamento, contava com mais de 70 (setenta) anos de idade. Assim, para ele, a pretensão punitiva estatal relativa ao crime de duplicata simulada prescreve em 04 (quatro) anos.
2.1.10. Por outro lado, o réu Antônio Avânio Feitosa não assinou nenhuma das duplicatas objeto da imputação do crime de duplicata simulada, mas apenas firmou, com a Atlântida Factoring, o contrato de fomento mercantil acostado às fls. 56/63, figurando como fiador do negócio jurídico.
2.1.11. A consequência advinda do fato de que Antônio Avânio Feitosa não assinou os títulos de crédito discutidos, mas apenas o contrato de fomento mercantil, enquanto fiador, é a de que o reconhecimento de sua responsabilidade criminal pelo fato discutido é mais complexo do que o foi quanto ao corréu Antônio Farias de Arruda. Isso porque a autoria material do delito não lhe pode ser atribuída, uma vez que não praticou, materialmente, a conduta de emissão da duplicata, sendo que o sujeito ativo do delito, como regra, é exatamente quem expede a duplicata fictícia ou falsa. Resta-lhe, portanto, a eventual atribuição da autoria intelectual do delito.
2.1.12. A circunstância objetiva de ser o indivíduo ocupante de cargo de direção ou de administração na pessoa jurídica, não é suficiente para comprovar sua concorrência na prática do ato discutido. In casu, efetivamente, a mera constatação de que, à época dos fatos, o réu Antônio Avânio Feitosa era o Presidente da Cooperativa Agropecuária Major Izidoro Ltda. CAMILA, é insuficiente para ensejar sua condenação pela prática do delito de duplicata simulada (art. 172 do CP), cuja prática já foi reconhecida nos autos. Inobstante, saliento que não é esse o único elemento constante dos autos que aponta para a inequívoca conclusão de que o aludido réu tinha, sim, ciência do saque das duplicatas sem lastro. O próprio encadeamento dos fatos indica tal conclusão.
2.1.13. O fato de que o réu Antônio Avânio Feitosa tinha conhecimento que Etério, preposto da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., comparecia à sede da Cooperativa Agropecuária Major Izidoro Ltda. CAMILA, a fim de fiscalizar a existência e a posterior entrega dos produtos, indica exatamente que o aludido réu sabia, sim, que as duplicatas negociadas eram emitidas sem lastro. É que, se a negociação apenas ocorresse com relação às duplicatas sacadas após a regular entrega do produto vendido, sequer haveria mercadoria cuja existência e entrega pudessem ser conferidas pelo preposto da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda. Destarte, logicamente, se o então Presidente da Cooperativa Agropecuária Major Izidoro Ltda. CAMILA, e atual Prefeito Municipal de Belo Monte, Antônio Avânio Feitosa, sabia da presença de Etério nas instalações da cooperativa que geria, indubitavelmente, também tinha conhecimento que as duplicatas estavam sendo sacadas e negociadas sem lastro.
2.1.14. Há depoimentos de diversas testemunhas que fazem prova de que o réu sabia da emissão das duplicatas sem lastro e anuía com tal prática, de modo que não resta dúvida de que a negativa de autoria foi a tese escolhida pela defesa como forma de escape, ante a constatação de que a materialidade do delito restaria comprovada. Assim, uma vez que, efetivamente, as assinaturas de Antônio Avânio Feitosa não constam dos títulos de crédito (ao contrário do que ocorre no caso de Antônio Arruda de Farias, quanto ao qual a negativa de autoria se afiguraria ainda mais disparatada), o fundamento de defesa mais passível de acolhimento por esta Corte seria a afirmação de que o réu Antônio Avânio Feitosa não concorreu para o delito.
2.1.15. Contudo, não é o que se constata da análise minudente dos autos, a qual leva à plena convicção de que o ex-presidente da Cooperativa Agropecuária Major Izidoro Ltda. CAMILA, e atual Prefeito Municipal de Belo Monte, Antônio Avânio Feitosa, tinha ciência e anuiu com a prática de emissão de duplicatas sem lastro, porque fundadas em negócios não concluídos, de sorte que deve ele ser responsabilizado pelo delito em questão.
2.1.16. Não é despiciendo ressaltar que a responsabilidade penal do réu Antônio Avânio Feitosa pela prática do crime em espeque em nada é elidida pelo fato de que este posteriormente reparou o dano causado pelo delito, sendo que tal fato deve ser utilizado, apenas, como causa de diminuição da pena em virtude do arrependimento posterior. Isso porque o crime de duplicata simulada previsto no art. 172 do Código Penal é delito de mera conduta, o qual não depende do advento de um resultado danoso para sua caracterização, sendo que a norma penal que o tipifica sequer traz a previsão de um resultado.
2.2. APROPRIAÇÃO INDÉBITA
2.2.1. No ponto, o teor da denúncia demonstra que a acusação gira em torno da primeira hipótese, na medida em que argumenta-se que os réus teriam tomado para si verbas pertencentes à Cooperativa, e que se destinavam ao pagamento de dívida contraída perante a Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda.
2.2.2. A dívida fora contraída pela negociação de 04 (quatro) duplicatas que, diferentemente das duplicatas acostadas às fls. 65/72, corresponderam, de fato, a mercadorias entregues à aludida empresa, fato que sequer foi discutido nos autos.
2.2.3. Inobstante, tal qual as 08 (oito) duplicatas de fls. 65/72, as duplicatas sacadas em desfavor da Nestlé Brasil Ltda., não possuem aceite da sacada, porque não estão assinadas por representante desta. Tal fato implica na constatação de que a Cooperativa CAMILA não apresentou à Nestlé Brasil Ltda., as duplicatas contra ela sacadas e, desse modo, jamais poderia promover a execução das duplicatas de fls. 98/101, a fim de proceder a cobrança do débito decorrente daquelas vendas, porque a assinatura do sacado é exigida para a configuração da responsabilidade cambiária do devedor.
2.2.4. Quando escoado o prazo para pagamento, vez que este não ocorreu, a Atlântida Factoring Mercantil Ltda., enviou notificação extrajudicial à Nestlé Brasil Ltda., a fim de adverti-la de que os títulos seriam levados a protesto (fls. 107/108). Respaldada pelo fato de que sequer havia aceitado aquelas duplicatas, a Nestlé Brasil Ltda., informou que as obrigações já tinham sido adimplidas, através de "depósito bancário em conta corrente da Cooperativa". Toda a lógica reveste a conduta da suposta sacada, na medida em que, não tendo dado o aceite nas duplicatas, que sequer lhe foram apresentadas, não poderia ser por elas responsabilizada em eventual execução das duplicatas de fls. 98/101, máxime porque já havia pago os débitos referentes às transações travadas com a Cooperativa sacadora, mediante depósito do valor diretamente na conta desta.
2.2.5. Os fatos narrados na peça acusatória não atacam a omissão da Cooperativa CAMILA em repassar os valores, mas dizem respeito à suposta conduta dos réus Antônio Avânio Feitosa e Antônio Farias de Arruda de, enquanto pessoas físicas, haverem se apropriado dos valores que estavam depositados na conta corrente de Cooperativa, lesando esta, e, indiretamente, a Factoring credora dos títulos. Tal acusação, inobstante, jamais encontrou suporte na prova dos autos, ainda que minimamente, nem em provas documentais, e tampouco no depoimento de testemunhas. O mero inadimplemento das 04 (quatro) duplicatas sacadas contra Nestlé Brasil Ltda., e cedidas onerosamente à Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., não leva à presunção de que a verba destinada ao pagamento foi desviada para o patrimônio dos denunciados. O inadimplemento de débitos por empresas é fato comum, quase que inerente ao mercado empresarial, seja tal fato devido a dificuldades financeiras, a desorganização ou a qualquer outro motivo. Isso não significa, contudo, que houve apropriação indébita dos gestores em virtude do inadimplemento das duplicatas cedidas, máxime quando a denúncia, no que concerne à dita conduta, não narra nada além do referido inadimplemento, sem indicar como a apropriação indébita teria ocorrido. A acusação deveria haver demonstrado, com provas suficientes, o aludido locupletamento de Antônio Avânio Feitosa e Antônio Farias de Arruda no que diz respeito aos valores que se encontravam depositados na conta da Cooperativa CAMILA e, no entanto, não alcançou tal objetivo durante toda a instrução probatória, embora tal prova fosse plenamente factível, caso o fato efetivamente houvesse ocorrido. Mesmo as testemunhas mais críticas ao comportamento do réu Antônio Avânio Feitosa enquanto gestor, João Tenório Rodrigues e José Almeida de Oliveira, não conseguiram demonstrar nada além de meras suspeitas.
2.2.6. Ainda que a denúncia seja interpretada no sentido de reconhecer que a acusação diz respeito à conduta dos réus de, enquanto diretores ou gestores da Cooperativa, haverem feito com que esta pessoa jurídica se apropriasse de verba com destinação previamente vinculada ao pagamento das obrigações que haviam sido contraídas perante a Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., não haveria tipicidade da conduta com o delito previsto no art. 168 do Código Penal. O dinheiro efetivamente pertencia à Cooperativa. Ora, assim sendo, não há como se entender por configurada a apropriação indébita, porque se tratou de coisa própria, e o crime consiste na tomada para si da coisa alheia de que se é lícito possuidor ou detentor.
2.2.7. Inexiste, portanto, responsabilidade dos réus pelo delito de apropriação indébita, seja enquanto pessoas físicas, seja enquanto gestores da pessoa jurídica Cooperativa Agropecuária Major Izidoro Ltda.
2.3 ESTELIONATO
2.3.1. A narrativa fática do crime de estelionato agrega-se diretamente ao relato das demais condutas delituosas, a saber, duplicata simulada e apropriação indébita, acrescentando o elemento subjetivo do dolo de lesar especificamente a Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., no intuito de obter vantagem financeira em desfavor dessa empresa.
2.3.2. O cômputo dos autos deixa evidente que no saque das duplicatas de fls. 65/72 e fls. 98/101 não houve intenção dos réus de lesar a vítima. Tal conclusão pode ser extraída do depoimento do próprio sócio-gerente da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., Sr. Efigênio de Almeida Neto, como também do conjunto de provas obtidas durante a instrução do feito.
2.3.3. A vítima, representada por seu proprietário, mencionado no parágrafo anterior, aceitou voluntariamente adquirir as 12 (doze) duplicatas sobre as quais versa a presente ação penal (fls. 65/72 e 98/101), mesmo estando todas elas SEM ACEITE e SEM COMPROVANTE DE ENTREGA DAS MERCADORIAS. Não há dúvida de que, mesmo com toda a relação de confiança que possuía com a Cooperativa CAMILA, a vítima sabia ou deveria saber que jamais possuiria direito de executar as duplicatas que adquiria, porque, sendo estas títulos de crédito causais, apenas seriam exequíveis se houvessem sido aceitas pelas empresas indicadas como sacadas, o que não ocorreu no caso, em que nem sequer o comprovante de entrega das mercadorias acompanhava as duplicatas. Por outro lado, os e-mails, cujas cópias foram acostadas às fls. 945/954, demonstram a existência de grande flexibilidade no contrato de fomento mercantil existente entre a Cooperativa CAMILA e a vítima, porque versam sobre a substituição de títulos, que já haviam sido cedidos por outros, com valores e sacados diversos, havendo ainda o controle de mercadorias a serem entregues. Sinteticamente, a Atlântida Factoring tinha plena consciência de que estava adquirindo duplicatas que não haviam sido aceitas, bem como de que tais títulos apenas possuiriam liquidez plena caso houvesse efetiva entrega futura de mercadorias por isso mesmo fiscalizava essa entrega.
2.3.4. A Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., se acautelou apenas através do contrato de fiança assinado pelo réu Antônio Avânio Feitosa e por José Almeida de Oliveira, acostado às fls. 56/63, em que ambos os subscritores colocaram os respectivos patrimônios pessoais à disposição das dívidas da Cooperativa, contraídas perante a Factoring, e do endosse dos títulos de crédito por Antônio Farias de Arruda, que apôs sua assinatura no verso de cada uma das cártulas.
2.3.5. O fato de que os réus garantiram as dívidas com seus próprios patrimônios (mediante contrato de fiança Antônio Avânio Feitosa e endosso das duplicatas - Antônio Farias de Arruda) torna ilógica a acusação de estelionato, porque jamais poderiam auferir vantagem ilícita com o saque das duplicatas sem lastro ou com o não pagamento da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., já que responderiam (como, de fato, um deles, Antônio Avânio Feitosa, respondeu) com seus patrimônios pela insolvência.
2.3.6. O próprio sócio-gerente da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., como visto, concordava em adquirir as duplicatas sem aceite e sem que fosse comprovada a entrega da mercadoria, por acreditar na possibilidade de renegociação dos títulos com os réus, de sorte que a reiteração dessa prática pela empresa vítima, também, torna insustentável qualquer alegação de dolo destinado ao cometimento de estelionato por parte dos réus, pura e simplesmente porque a vítima jamais foi induzida ou mantida em erro, porque sempre teve ciência e tolerou as condições de negociação, apenas resolvendo buscar a Justiça quando a Cooperativa CAMILA não pôde mais honrar os compromissos assumidos.
2.3.7. Sedimente-se, por derradeiro, que o crime de estelionato se rege pelo binômio vantagem ilícita/prejuízo alheio, de maneira que o agente deve praticar conduta dolosa destinada à concreção do tipo penal, ou seja, à obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio. In casu, resta manifestamente ausente a intenção de causar prejuízo à Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., porque este viria ( e, de fato, veio, para um deles), acompanhado de prejuízo também para os réus. Tampouco há, portanto, materialidade do delito de estelionato, pelo que tal acusação não merece ser julgada procedente.
3. CONCLUSÃO
Denúncia julgada PARCIALMENTE PROCEDENTE para: a) condenar o réu Antônio Avânio Feitosa, em razão da prática do crime de duplicata simulada, previsto no art. 172 do Código Penal Brasileiro, à pena privativa de liberdade de 01 (um) ano e 08 (oito) meses de detenção, em regime inicial aberto, a qual substituo por pena restritiva de direitos de prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas e por pena de multa, quantificada, de acordo com a dosimetria já realizada, em 60 (sessenta) dias-multa, cada um correspondente a 1/4 (um quarto) do salário mínimo vigente ao tempo do fato, com correção monetária, forte no art. 49, § 2º, c/c art. 60 do CPB; b) julgar improcedentes os demais pedidos formulados, a fim de: (1) declarar a prescrição da pretensão punitiva, quanto ao réu Antônio Farias de Arruda, pela prática do crime de saque de duplicata simulada, previsto no art. 172, caput, do Código Penal; (2) absolver os réus Antônio Avânio Feitosa e Antônio Farias de Arruda das acusações de apropriação indébita e de estelionato narradas na denúncia (CPB, arts. 168 e 171), com fulcro no art. 386, V, do Código de Processo Penal, nos termos do voto do relator designado. DECISÃO POR MAIORIA.
Ementa
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. PREFEITO MUNICIPAL, ACUSADO DE, NA CONDIÇÃO DE PRESIDENTE DA COOPERATIVA AGROPECUÁRIA MAJOR IZIDORO LTDA. CAMILA, JUNTO COM O ENTÃO DIRETOR FINANCEIRO DA PESSOA JURÍDICA, HAVER PRATICADO OS DELITOS DE: (A) DUPLICATA SIMULADA ART. 172, CP; (B) APROPRIAÇÃO INDÉBITA ART. 168, CP, E; (C) ESTELIONATO ART. 171, CP, TODOS EM DESFAVOR DE EMPRESA DE FOMENTO MERCANTIL (FACTORING). PRELIMINAR DE NULIDADE DA AÇÃO PENAL, DECORRENTE DA AUSÊNCIA DE SUPERVISÃO DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE ALAGOAS NAS INVESTIGAÇÕES CONTRA O PREFEITO DURANTE O INQUÉRITO POLICIAL. DECISÃO PROFERIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA QUESTÃO DE ORDEM NO INQ. 2411, QUE NÃO DECLAROU INADMISSÍVEIS AS PROVAS COLHIDAS DURANTE A INVESTIGAÇÃO DEFLAGRADA SEM SUPERVISÃO DA CORTE COMPETENTE. FORMALIDADE QUE ATINE AO FORO ESPECIAL POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO, E NÃO TEM POR ESCOPO A PROTEÇÃO DE QUALQUER DIREITO INDIVIDUAL DA PESSOA DO INVESTIGADO. INAPLICABILIDADE DA TEORIA DAS PROVAS ILEGAIS AO CASO DE DESRESPEITO DA REGRA CONSTITUCIONAL IMPLÍCITA QUE DEMANDA A SUPERVISÃO/AUTORIZAÇÃO DO TRIBUNAL COMPETENTE NO CURSO DAS INVESTIGAÇÕES CONTRA DETENTOR DE PRERROGATIVA ESPECIAL. GARANTIA QUE DEVE SER REQUERIDA EM MOMENTO PRÓPRIO, RESTANDO PREJUDICADA APÓS INSTAURADA A AÇÃO PENAL. MÉRITO. (A) CRIME DE DUPLICATA SIMULADA. FRAUDE CONFIGURADA QUANDO HÁ O SAQUE DE DUPLICATAS RELATIVAS A CONTRATOS DE COMPRA E VENDA PARA "ENTREGA FUTURA". MATERIALIDADE DO DELITO CONFIGURADA, PELA COMPROVAÇÃO DE QUE NÃO HAVIA LASTRO PARA A EMISSÃO DAS DUPLICATAS DISCUTIDAS. EXTINÇÃO DE PUNIBILIDADE DO EX-DIRETOR FINANCEIRO DA COOPERATIVA, QUE ASSINOU AS DUPLICATAS, PELA PRESCRIÇÃO. RÉU MAIOR DE 70 (SETENTA) ANOS, PRAZO PRESCRICIONAL REDUZIDO PELA METADE. RESPONSABILIDADE PENAL DO EX-PRESIDENTE DA COOPERATIVA, ATUAL PREFEITO MUNICIPAL DE BELO MONTE. ACERVO PROBATÓRIO DOS AUTOS QUE ATESTA QUE, A DESPEITO DE NÃO HAVER ASSINADO AS CÁRTULAS, O RÉU TINHA CIÊNCIA E ANUÍA COM A EMISSÃO DAS DUPLICATAS SEM LASTRO. (B) CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA. AUSÊNCIA DE PROVAS DE QUE OS RÉUS TENHAM SE APROPRIADO DE VERBAS DEPOSITADAS EM FAVOR DA COOPERATIVA. ABSOLVIÇÃO, COM FULCRO NO ART. 386, V, DO CPP. (C) CRIME DE ESTELIONATO. NÃO COMPROVAÇÃO DO DOLO, TAMPOUCO DE QUE A SUPOSTA VÍTIMA FOI INDUZIDA OU MANTIDA EM ERRO. INCOMPATIBILIDADE DA ACUSAÇÃO COM AS CORRIQUEIRAS OPERAÇÕES DE CESSÃO DE DUPLICATAS SEM ACEITE E SEM COMPROVAÇÃO DE ENTREGA DAS MERCADORIAS, TOLERADAS PELA VÍTIMA, BEM COMO COM A FLEXIBILIDADE QUE SE DEMONSTROU QUE, IN CASU, O CONTRATO DE FOMENTO MERCANTIL POSSUÍA. PRESTAÇÃO DE GARANTIAS CAMBIAL E FIDEJUSSÓRIA PELOS RÉUS, ANTES MESMO DA PRÁTICA DO SUPOSTO ESTELIONATO, QUE SE AFIGURA COM O DOLO DE LESAR A VÍTIMA, PORQUE TAL CONDUTA ACARRETARIA PREJUÍZO AOS PRÓPRIOS RÉUS. DANO QUE FOI RESOLVIDO NA SEARA CÍVEL. ABSOLVIÇÃO, COM FULCRO NO ART. 386, V, DO CPP. DENÚNCIA JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. DECISÃO POR MAIORIA.
1. PRELIMINAR DE NULIDADE DA AÇÃO PENAL, DIANTE DA FALTA DE SUPERVISÃO DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE ALAGOAS NAS INVESTIGAÇÕES CONTRA O PREFEITO DURANTE O INQUÉRITO POLICIAL.
1.1. Não houve a supervisão judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas no curso do inquérito policial que antecedeu esta ação penal. Quando da instauração do inquérito policial, em março de 2009, Antônio Avânio Feitosa já exercia o primeiro ano de seu mandato como Prefeito do Município de Belo Monte, entretanto, o inquérito transcorreu sem a ciência desta Corte. É com fulcro na constatação de que não houve a supervisão desta Corte que a Defesa sustenta que a ação penal seria de todo nula, sustentando-se, ao que parece, na teoria dos frutos da árvore envenenada, a fim de arguir a ilegalidade de todo o contexto probatório colhido na fase investigativa. Olvidam, contudo, que a ação penal, hoje, já se encontra iniciada, amadurecida e com a instrução concluída, bem como deixaram de demonstrar a ocorrência de qualquer prejuízo concreto aos acusados.
1.2. O Supremo Tribunal Federal, quando julgou a referida Questão de Ordem no Inquérito n.º 2411, no ano de 2007, se posicionou no sentido de que a iniciativa no procedimento investigatório em desfavor de detentor de foro especial por prerrogativa de função deve ser atribuída ao Ministério Público, sob a supervisão do Relator no Tribunal, de modo que não está a autoridade policial legitimada a instaurar de ofício o inquérito policial para apuração dos fatos. Inobstante, inexiste precedente do STF que haja declarado a ilegalidade da prova colhida em sede inquisitorial, ou que haja determinado o desentranhamento de provas colhidas durante investigações realizadas sem a autorização daquela Corte Suprema. Na QO-Inq. n.º 2411 o STF decidiu exclusivamente que o investigado que detenha foro especial teria direito a pugnar pela anulação de seu indiciamento formal pela autoridade policial. Nada se disse acerca da ilicitude ou ilegitimidade da prova colhida, e tampouco se reputou nulo quaisquer atos processuais. Apenas, houve determinação de que o indiciamento fosse anulado, bem como de que todas as peças fossem remetidas à Procuradoria-Geral da República.
1.3. A autorização que se exige que seja conferida pelo Tribunal competente para fins de deflagração de investigação contra detentor de foro especial por prerrogativa de função se destina a fins próprios, restritos e peculiares, objetivando "evitar eventuais excessos por parte da Polícia Judiciária, no sentido de se vislumbrar - conforme no excerto do ofício acima transcrito -, inclusive, e independentemente do controle jurisdicional deste Tribunal a pretensão jurídica de instauração, 'ex officio', dos referidos inquéritos originários" (Ministro Gilmar Mendes, Relator da Questão de Ordem no Inquérito n.º 2411).
1.4. Toda a discussão travada aqui se relaciona com a temática das provas ilegais, bem como com as limitações que são impostas ao Estado na colheita de material probatório. É certo que "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos" (Constituição Federal, art. 5º, LVI), sendo que essas provas, "obtidas em violação a normas constitucionais ou legais", devem ser "desentranhadas do processo" (Código de Processo Penal, art. 157, com a Redação dada pela Lei n. 11.690/2008). No Processo Penal de um Estado Democrático de Direito, não se pode permitir que a verdade seja perseguida a qualquer preço, de maneira que ainda que seja em prejuízo da descoberta da verdade, a defesa de um processo justo e condizente com o respeito aos direitos e garantias fundamentais não permite que sejam utilizadas em um processo provas obtidas por meios ilícitos.
1.5. O Supremo Tribunal Federal, na Questão de Ordem no Inquérito Originário n.º 2411 não decidiu pela ilegalidade das provas colhidas pela autoridade policial em investigação deflagrada contra autoridade detentora de foro especial, somente em virtude de não ter havido supervisão judicial do Tribunal competente, até porque o referido Inquérito Originário n.º 2411 correu desde o início sob a supervisão da Suprema Corte. Exigir-se que uma investigação contra autoridade detentora de foro especial corra sob a supervisão judicial do Tribunal competente para julgá-la é completamente diferente de declarar-se a ilegalidade, ilegitimidade ou ilicitude da prova colhida pela autoridade policial sem a supervisão judicial do Tribunal competente. A tese defendida pelo Supremo Tribunal Federal na Questão de Ordem no Inquérito n.º 2411 não deságua no argumento encartado em precedente do Superior Tribunal de Justiça e deste Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, e aventado pela Defesa.
1.6. Inexiste, seja na Constituição, seja no Código de Processo Penal, qualquer regra expressa que determine que as investigações contra autoridade que detenha foro especial corram mediante supervisão judicial. Tal norma foi extraída da Constituição por interpretação jurisprudencial. Os bens jurídicos constitucionalmente garantidos, cuja proteção é visada pela teoria das provas ilegais, ao entender como ilícitas as provas colhidas com violação de direito material, não se referem ao foro especial por prerrogativa de função, mas sim à intimidade, privacidade, inviolabilidade do domicílio, inviolabilidade do sigilo de correspondência e das telecomunicações, integridade física e moral do preso, bem como à vedação de tortura ou tratamento desumano ou degradante. Essas é que são garantias fundamentais, liberdades individuais no sentido mais puro da expressão, que não podem ser confundidas com o foro especial, mesmo porque este visa à proteção da função ocupada, e não da pessoa.
1.7 É cediço que a jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída não no interesse da pessoa do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os Tribunais de maior categoria tenham mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do Tribunal de superior hierarquia é bilateral, garantia contra e a favor do acusado (RCL n.º 473, Rel. Min. Victor Nunes Leal, DJ de 06/06/1962).
1.8 Sendo o foro especial uma prerrogativa do CARGO, e não da PESSOA, não há problema em se admitir a legalidade da prova colhida sem supervisão judicial, sobretudo, quando o próprio Tribunal competente admitiu a denúncia formulada pelo acusador também competente. Dito de outro modo, o próprio Tribunal que seria o competente para supervisionar a atuação policial está reconhecendo, agora, que há justa causa para a ação penal. Não se pode falar em ilegalidade, ilicitude ou ilegitimidade da prova colhida pela autoridade policial, tendo em vista que não foi violada qualquer regra de direito material fundamental, penal, processual penal ou constitucional, quando da colheita de tal prova, porque não ocorreu violação à privacidade, à intimidade e tampouco ao sigilo das correspondências, dos dados e comunicações do Prefeito. Houve apenas mera irregularidade no ato que ordenou a instauração do inquérito, porque iniciadas as investigações sem autorização do Tribunal de Justiça. Tal irregularidade resta inquestionavelmente superada quando há o recebimento, pelo juízo competente, da denúncia formulada pela autoridade também competente contra o investigado.
1.9. A conclusão que daí se retira é a de que, por não se tratar de ilegalidade, ilicitude ou ilegitimidade da prova colhida, o direito do detentor de foro privilegiado de se insurgir contra a instauração de inquérito policial sem a autorização do Tribunal competente para julgá-lo, embora existente, apenas pode ser exercido enquanto não for instaurada a ação penal pelo mesmo Tribunal. E assim o é justamente em razão da máxima geral que vigora em todo e qualquer processo, representada pelo brocardo pas de nullité sans grief, que encarta a ideia de que não pode haver declaração de nulidade sem que haja demonstração do prejuízo que esta acarreta.
1.10. Há mera irregularidade no fato de ter o inquérito policial corrido sem a autorização do Tribunal competente, a qual resta suprida pelo fato de que as provas colhidas durante as investigações foram ratificadas pela Procuradoria Geral de Justiça quando do oferecimento da denúncia, e reconhecidas como indícios da prática delitiva quando a denúncia foi recebida pelo mesmo Tribunal, o qual reconheceu haver justa causa para o início da ação penal. Reitere-se que não houve violação a qualquer garantia, direito ou liberdade do indivíduo, mas apenas o desatendimento de regra constitucional implícita relativa à prerrogativa de foro especial, a qual é destinada à função ocupada, e não à pessoa que a ocupa, in casu, o Prefeito Antônio Avânio Feitosa, que não sofreu nenhum prejuízo advindo da inobservância de tal regra.
1.11. Aqui, cabe trazer à baila o brocardo latino, a saber, iura non sucurrit dormientibus, ou o direito não socorre a quem dorme. Na medida em que, como também já dito, enquanto era mero investigado, o ora réu Antônio Avânio Feitosa jamais se insurgiu contra a condução da investigação, pela autoridade policial, sem autorização da Corte Estadual, mas apenas em sede de alegações finais veio a se irresignar contra fato passado bem após a oferta e recebimento da denúncia . A demora em sua alegação acarreta, ao menos, a necessidade de que se desincumba do ônus de demonstrar, comprovadamente, a existência de prejuízo decorrente da suposta nulidade, mesmo após o endosso das provas pela Procuradoria Geral de Justiça e por este próprio Tribunal, bem como depois de haver sido garantido ao réu o contraditório e a ampla defesa em sede judicial, com a produção de vasta quantidade de provas documentais e testemunhais.
1.12 PRELIMINAR REJEITADA.
2. MÉRITO
2.1 DUPLICATAS SIMULADAS
2.1.1. A Defesa jamais negou, mas, contrariamente, afirmou em todas as oportunidades que lhe foram conferidas, que todas as duplicatas, acostadas às fls. 65/72, eram correspondentes a contratos de compra e venda para "futuras entregas", fato que seria de total conhecimento da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., sendo que a Cooperativa CAMILA, quando sob a gestão dos réus, jamais se eximiu de honrar tais compromissos.
2.1.2. Há que se ter em mente que, diferentemente dos cheques e das notas promissórias, as duplicatas são títulos CAUSAIS, que, como tal, apenas podem ser sacadas (emitidas) para a documentação de um negócio jurídico preestabelecido pelas normas jurídicas que a disciplinam.
2.1.3. Deve ser firmada a impossibilidade de saque de duplicatas "para entrega futura", ou seja, relativas a operações de compra e venda que ainda não ocorreram, tese cuja aceitação acarretaria a quebra da ordem sistemática que preestabeleceu o legislador, cujos contornos estão definidos de forma hermética em lei, de modo que sua ruptura acarretaria o esvaziamento de toda a confiança (e, por conseguinte, do crédito) que dá suporte a toda e qualquer relação cambial.
2.1.4. A Lei n.º 5.474/1968 estabelece uma ordem que deve ser invariavelmente seguida: (1) contrato, (2) extração da fatura, com discriminação da entrega das mercadorias e, só então, (3) saque da duplicata. O que se tem, portanto, é que, quando os réus defendem a possibilidade de saque de duplicatas relativas a contratos de compra e venda para entregas futuras, estão eles mesmos se reservando um "direito", inexistente, de gozar, no âmbito das relações cambiais, de um crédito que ainda não existe.
2.1.5. A fatura não consubstancia apenas o documento que dá conta do negócio jurídico firmado entre o sacador (emitente, credor) da duplicata e o sacado (aceitante, devedor), mas é também o documento no qual consta a declaração de que houve a entrega da mercadoria vendida, ou a prestação do serviço contratado, razão pela qual só pode ser extraída depois da mencionada entrega.
2.1.6. Somente após a entrega dos bens ao respectivo comprador é que pode haver a extração da fatura, e, consequentemente, da duplicata. Tal conclusão decorre do próprio art. 1º da Lei das Duplicatas, que prescreve que o prazo para que seja extraída a fatura somente começa a fluir após a "data da entrega ou despacho das mercadorias". Apenas após a extração da fatura, com a declaração do vendedor de que as mercadorias foram entregues ao comprador, é que será possível (mas não obrigatório), o saque da duplicata.
2.1.7. Pelos documentos constantes dos autos, resta comprovado que, efetivamente, as duplicatas indicadas na Denúncia não foram emitidas com relação a uma operação de compra e venda em que tenha havido a efetiva entrega de mercadoria. O próprio réu Antônio Farias de Arruda reconhece e afirma que a Cooperativa costumava vender sua "produção futura", e, a fim de obter dinheiro, negociava duplicatas com as Factorings mediante contrato de fomento mercantil, em sistema que, alega, funcionava normalmente, tanto que "até 28/04/2008 nenhum cliente se negou a receber os boletos bancários, nem arguiu [questionou] a entrega dos títulos das mercadorias".
2.1.8. Não há dúvida, pois, que resta caracterizada a materialidade do delito de duplicata simulada, tipificado no art. 172 do Código Penal.
2.1.9. É irrefutável, portanto, a participação de Antônio Farias de Arruda no saque das duplicatas, em virtude da presença de sua assinatura em cada um dos títulos, somada à sua confissão de que sacou as duplicatas, embora não as considerasse ilícitas, bem como ao fato de que as empresas sacadas contranotificaram a vítima Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., corroborando a inexistência de contrato de compra e venda referente às duplicatas. Verifica-se, portanto, a concorrência de Antônio Farias de Arruda para prática do delito previsto no art. 172 do Código Penal Brasileiro. Inobstante, in casu, sua responsabilidade penal é elidida em virtude da extinção de sua punibilidade decorrente da prescrição da pretensão punitiva, porque se verifica que o réu Antônio Farias de Arruda possui hoje 76 (setenta e seis) anos, de modo que, nos termos do art. 115 do Código Penal, faz jus à redução do prazo prescricional pela metade, pois, na data do julgamento, contava com mais de 70 (setenta) anos de idade. Assim, para ele, a pretensão punitiva estatal relativa ao crime de duplicata simulada prescreve em 04 (quatro) anos.
2.1.10. Por outro lado, o réu Antônio Avânio Feitosa não assinou nenhuma das duplicatas objeto da imputação do crime de duplicata simulada, mas apenas firmou, com a Atlântida Factoring, o contrato de fomento mercantil acostado às fls. 56/63, figurando como fiador do negócio jurídico.
2.1.11. A consequência advinda do fato de que Antônio Avânio Feitosa não assinou os títulos de crédito discutidos, mas apenas o contrato de fomento mercantil, enquanto fiador, é a de que o reconhecimento de sua responsabilidade criminal pelo fato discutido é mais complexo do que o foi quanto ao corréu Antônio Farias de Arruda. Isso porque a autoria material do delito não lhe pode ser atribuída, uma vez que não praticou, materialmente, a conduta de emissão da duplicata, sendo que o sujeito ativo do delito, como regra, é exatamente quem expede a duplicata fictícia ou falsa. Resta-lhe, portanto, a eventual atribuição da autoria intelectual do delito.
2.1.12. A circunstância objetiva de ser o indivíduo ocupante de cargo de direção ou de administração na pessoa jurídica, não é suficiente para comprovar sua concorrência na prática do ato discutido. In casu, efetivamente, a mera constatação de que, à época dos fatos, o réu Antônio Avânio Feitosa era o Presidente da Cooperativa Agropecuária Major Izidoro Ltda. CAMILA, é insuficiente para ensejar sua condenação pela prática do delito de duplicata simulada (art. 172 do CP), cuja prática já foi reconhecida nos autos. Inobstante, saliento que não é esse o único elemento constante dos autos que aponta para a inequívoca conclusão de que o aludido réu tinha, sim, ciência do saque das duplicatas sem lastro. O próprio encadeamento dos fatos indica tal conclusão.
2.1.13. O fato de que o réu Antônio Avânio Feitosa tinha conhecimento que Etério, preposto da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., comparecia à sede da Cooperativa Agropecuária Major Izidoro Ltda. CAMILA, a fim de fiscalizar a existência e a posterior entrega dos produtos, indica exatamente que o aludido réu sabia, sim, que as duplicatas negociadas eram emitidas sem lastro. É que, se a negociação apenas ocorresse com relação às duplicatas sacadas após a regular entrega do produto vendido, sequer haveria mercadoria cuja existência e entrega pudessem ser conferidas pelo preposto da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda. Destarte, logicamente, se o então Presidente da Cooperativa Agropecuária Major Izidoro Ltda. CAMILA, e atual Prefeito Municipal de Belo Monte, Antônio Avânio Feitosa, sabia da presença de Etério nas instalações da cooperativa que geria, indubitavelmente, também tinha conhecimento que as duplicatas estavam sendo sacadas e negociadas sem lastro.
2.1.14. Há depoimentos de diversas testemunhas que fazem prova de que o réu sabia da emissão das duplicatas sem lastro e anuía com tal prática, de modo que não resta dúvida de que a negativa de autoria foi a tese escolhida pela defesa como forma de escape, ante a constatação de que a materialidade do delito restaria comprovada. Assim, uma vez que, efetivamente, as assinaturas de Antônio Avânio Feitosa não constam dos títulos de crédito (ao contrário do que ocorre no caso de Antônio Arruda de Farias, quanto ao qual a negativa de autoria se afiguraria ainda mais disparatada), o fundamento de defesa mais passível de acolhimento por esta Corte seria a afirmação de que o réu Antônio Avânio Feitosa não concorreu para o delito.
2.1.15. Contudo, não é o que se constata da análise minudente dos autos, a qual leva à plena convicção de que o ex-presidente da Cooperativa Agropecuária Major Izidoro Ltda. CAMILA, e atual Prefeito Municipal de Belo Monte, Antônio Avânio Feitosa, tinha ciência e anuiu com a prática de emissão de duplicatas sem lastro, porque fundadas em negócios não concluídos, de sorte que deve ele ser responsabilizado pelo delito em questão.
2.1.16. Não é despiciendo ressaltar que a responsabilidade penal do réu Antônio Avânio Feitosa pela prática do crime em espeque em nada é elidida pelo fato de que este posteriormente reparou o dano causado pelo delito, sendo que tal fato deve ser utilizado, apenas, como causa de diminuição da pena em virtude do arrependimento posterior. Isso porque o crime de duplicata simulada previsto no art. 172 do Código Penal é delito de mera conduta, o qual não depende do advento de um resultado danoso para sua caracterização, sendo que a norma penal que o tipifica sequer traz a previsão de um resultado.
2.2. APROPRIAÇÃO INDÉBITA
2.2.1. No ponto, o teor da denúncia demonstra que a acusação gira em torno da primeira hipótese, na medida em que argumenta-se que os réus teriam tomado para si verbas pertencentes à Cooperativa, e que se destinavam ao pagamento de dívida contraída perante a Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda.
2.2.2. A dívida fora contraída pela negociação de 04 (quatro) duplicatas que, diferentemente das duplicatas acostadas às fls. 65/72, corresponderam, de fato, a mercadorias entregues à aludida empresa, fato que sequer foi discutido nos autos.
2.2.3. Inobstante, tal qual as 08 (oito) duplicatas de fls. 65/72, as duplicatas sacadas em desfavor da Nestlé Brasil Ltda., não possuem aceite da sacada, porque não estão assinadas por representante desta. Tal fato implica na constatação de que a Cooperativa CAMILA não apresentou à Nestlé Brasil Ltda., as duplicatas contra ela sacadas e, desse modo, jamais poderia promover a execução das duplicatas de fls. 98/101, a fim de proceder a cobrança do débito decorrente daquelas vendas, porque a assinatura do sacado é exigida para a configuração da responsabilidade cambiária do devedor.
2.2.4. Quando escoado o prazo para pagamento, vez que este não ocorreu, a Atlântida Factoring Mercantil Ltda., enviou notificação extrajudicial à Nestlé Brasil Ltda., a fim de adverti-la de que os títulos seriam levados a protesto (fls. 107/108). Respaldada pelo fato de que sequer havia aceitado aquelas duplicatas, a Nestlé Brasil Ltda., informou que as obrigações já tinham sido adimplidas, através de "depósito bancário em conta corrente da Cooperativa". Toda a lógica reveste a conduta da suposta sacada, na medida em que, não tendo dado o aceite nas duplicatas, que sequer lhe foram apresentadas, não poderia ser por elas responsabilizada em eventual execução das duplicatas de fls. 98/101, máxime porque já havia pago os débitos referentes às transações travadas com a Cooperativa sacadora, mediante depósito do valor diretamente na conta desta.
2.2.5. Os fatos narrados na peça acusatória não atacam a omissão da Cooperativa CAMILA em repassar os valores, mas dizem respeito à suposta conduta dos réus Antônio Avânio Feitosa e Antônio Farias de Arruda de, enquanto pessoas físicas, haverem se apropriado dos valores que estavam depositados na conta corrente de Cooperativa, lesando esta, e, indiretamente, a Factoring credora dos títulos. Tal acusação, inobstante, jamais encontrou suporte na prova dos autos, ainda que minimamente, nem em provas documentais, e tampouco no depoimento de testemunhas. O mero inadimplemento das 04 (quatro) duplicatas sacadas contra Nestlé Brasil Ltda., e cedidas onerosamente à Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., não leva à presunção de que a verba destinada ao pagamento foi desviada para o patrimônio dos denunciados. O inadimplemento de débitos por empresas é fato comum, quase que inerente ao mercado empresarial, seja tal fato devido a dificuldades financeiras, a desorganização ou a qualquer outro motivo. Isso não significa, contudo, que houve apropriação indébita dos gestores em virtude do inadimplemento das duplicatas cedidas, máxime quando a denúncia, no que concerne à dita conduta, não narra nada além do referido inadimplemento, sem indicar como a apropriação indébita teria ocorrido. A acusação deveria haver demonstrado, com provas suficientes, o aludido locupletamento de Antônio Avânio Feitosa e Antônio Farias de Arruda no que diz respeito aos valores que se encontravam depositados na conta da Cooperativa CAMILA e, no entanto, não alcançou tal objetivo durante toda a instrução probatória, embora tal prova fosse plenamente factível, caso o fato efetivamente houvesse ocorrido. Mesmo as testemunhas mais críticas ao comportamento do réu Antônio Avânio Feitosa enquanto gestor, João Tenório Rodrigues e José Almeida de Oliveira, não conseguiram demonstrar nada além de meras suspeitas.
2.2.6. Ainda que a denúncia seja interpretada no sentido de reconhecer que a acusação diz respeito à conduta dos réus de, enquanto diretores ou gestores da Cooperativa, haverem feito com que esta pessoa jurídica se apropriasse de verba com destinação previamente vinculada ao pagamento das obrigações que haviam sido contraídas perante a Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., não haveria tipicidade da conduta com o delito previsto no art. 168 do Código Penal. O dinheiro efetivamente pertencia à Cooperativa. Ora, assim sendo, não há como se entender por configurada a apropriação indébita, porque se tratou de coisa própria, e o crime consiste na tomada para si da coisa alheia de que se é lícito possuidor ou detentor.
2.2.7. Inexiste, portanto, responsabilidade dos réus pelo delito de apropriação indébita, seja enquanto pessoas físicas, seja enquanto gestores da pessoa jurídica Cooperativa Agropecuária Major Izidoro Ltda.
2.3 ESTELIONATO
2.3.1. A narrativa fática do crime de estelionato agrega-se diretamente ao relato das demais condutas delituosas, a saber, duplicata simulada e apropriação indébita, acrescentando o elemento subjetivo do dolo de lesar especificamente a Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., no intuito de obter vantagem financeira em desfavor dessa empresa.
2.3.2. O cômputo dos autos deixa evidente que no saque das duplicatas de fls. 65/72 e fls. 98/101 não houve intenção dos réus de lesar a vítima. Tal conclusão pode ser extraída do depoimento do próprio sócio-gerente da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., Sr. Efigênio de Almeida Neto, como também do conjunto de provas obtidas durante a instrução do feito.
2.3.3. A vítima, representada por seu proprietário, mencionado no parágrafo anterior, aceitou voluntariamente adquirir as 12 (doze) duplicatas sobre as quais versa a presente ação penal (fls. 65/72 e 98/101), mesmo estando todas elas SEM ACEITE e SEM COMPROVANTE DE ENTREGA DAS MERCADORIAS. Não há dúvida de que, mesmo com toda a relação de confiança que possuía com a Cooperativa CAMILA, a vítima sabia ou deveria saber que jamais possuiria direito de executar as duplicatas que adquiria, porque, sendo estas títulos de crédito causais, apenas seriam exequíveis se houvessem sido aceitas pelas empresas indicadas como sacadas, o que não ocorreu no caso, em que nem sequer o comprovante de entrega das mercadorias acompanhava as duplicatas. Por outro lado, os e-mails, cujas cópias foram acostadas às fls. 945/954, demonstram a existência de grande flexibilidade no contrato de fomento mercantil existente entre a Cooperativa CAMILA e a vítima, porque versam sobre a substituição de títulos, que já haviam sido cedidos por outros, com valores e sacados diversos, havendo ainda o controle de mercadorias a serem entregues. Sinteticamente, a Atlântida Factoring tinha plena consciência de que estava adquirindo duplicatas que não haviam sido aceitas, bem como de que tais títulos apenas possuiriam liquidez plena caso houvesse efetiva entrega futura de mercadorias por isso mesmo fiscalizava essa entrega.
2.3.4. A Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., se acautelou apenas através do contrato de fiança assinado pelo réu Antônio Avânio Feitosa e por José Almeida de Oliveira, acostado às fls. 56/63, em que ambos os subscritores colocaram os respectivos patrimônios pessoais à disposição das dívidas da Cooperativa, contraídas perante a Factoring, e do endosse dos títulos de crédito por Antônio Farias de Arruda, que apôs sua assinatura no verso de cada uma das cártulas.
2.3.5. O fato de que os réus garantiram as dívidas com seus próprios patrimônios (mediante contrato de fiança Antônio Avânio Feitosa e endosso das duplicatas - Antônio Farias de Arruda) torna ilógica a acusação de estelionato, porque jamais poderiam auferir vantagem ilícita com o saque das duplicatas sem lastro ou com o não pagamento da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., já que responderiam (como, de fato, um deles, Antônio Avânio Feitosa, respondeu) com seus patrimônios pela insolvência.
2.3.6. O próprio sócio-gerente da Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., como visto, concordava em adquirir as duplicatas sem aceite e sem que fosse comprovada a entrega da mercadoria, por acreditar na possibilidade de renegociação dos títulos com os réus, de sorte que a reiteração dessa prática pela empresa vítima, também, torna insustentável qualquer alegação de dolo destinado ao cometimento de estelionato por parte dos réus, pura e simplesmente porque a vítima jamais foi induzida ou mantida em erro, porque sempre teve ciência e tolerou as condições de negociação, apenas resolvendo buscar a Justiça quando a Cooperativa CAMILA não pôde mais honrar os compromissos assumidos.
2.3.7. Sedimente-se, por derradeiro, que o crime de estelionato se rege pelo binômio vantagem ilícita/prejuízo alheio, de maneira que o agente deve praticar conduta dolosa destinada à concreção do tipo penal, ou seja, à obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio. In casu, resta manifestamente ausente a intenção de causar prejuízo à Atlântida Factoring Fomento Mercantil Ltda., porque este viria ( e, de fato, veio, para um deles), acompanhado de prejuízo também para os réus. Tampouco há, portanto, materialidade do delito de estelionato, pelo que tal acusação não merece ser julgada procedente.
3. CONCLUSÃO
Denúncia julgada PARCIALMENTE PROCEDENTE para: a) condenar o réu Antônio Avânio Feitosa, em razão da prática do crime de duplicata simulada, previsto no art. 172 do Código Penal Brasileiro, à pena privativa de liberdade de 01 (um) ano e 08 (oito) meses de detenção, em regime inicial aberto, a qual substituo por pena restritiva de direitos de prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas e por pena de multa, quantificada, de acordo com a dosimetria já realizada, em 60 (sessenta) dias-multa, cada um correspondente a 1/4 (um quarto) do salário mínimo vigente ao tempo do fato, com correção monetária, forte no art. 49, § 2º, c/c art. 60 do CPB; b) julgar improcedentes os demais pedidos formulados, a fim de: (1) declarar a prescrição da pretensão punitiva, quanto ao réu Antônio Farias de Arruda, pela prática do crime de saque de duplicata simulada, previsto no art. 172, caput, do Código Penal; (2) absolver os réus Antônio Avânio Feitosa e Antônio Farias de Arruda das acusações de apropriação indébita e de estelionato narradas na denúncia (CPB, arts. 168 e 171), com fulcro no art. 386, V, do Código de Processo Penal, nos termos do voto do relator designado. DECISÃO POR MAIORIA.
Data do Julgamento
:
30/08/2016
Data da Publicação
:
27/09/2016
Classe/Assunto
:
Ação Penal - Procedimento Ordinário / Apropriação indébita
Órgão Julgador
:
Tribunal Pleno
Relator(a)
:
Des. Fábio José Bittencourt Araújo
Comarca
:
Maceió
Comarca
:
Maceió
Mostrar discussão