TJCE 0005758-61.2015.8.06.0140
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DOIS HOMICÍDIOS QUALIFICADOS POR MOTIVO TORPE, RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU A DEFESA DAS VÍTIMAS E FEMINICÍDIO. PRONÚNCIA. PRELIMINAR DE NULIDADE DECORRENTE DE EXCESSO DE LINGUAGEM. REJEIÇÃO. DECISÃO VERGASTADA QUE NÃO ADENTROU AO MÉRITO DA CAUSA.
1. Preliminarmente, sustenta o recorrente que a decisão de pronúncia encontra-se eivada de nulidade, por excesso de linguagem, vez que ao seu ver o magistrado de piso fez análise de mérito em relação à autoria do delito, invadindo a competência do Conselho de Sentença.
2. Ocorre que, ao contrário do que alega a defesa, a decisão proferida não coloca em perigo a imparcialidade dos jurados, estando o decisum em conformidade com as determinações do art. 413 do Código de Processo Penal, sem qualquer juízo de valor acerca do mérito acusatório por parte do juízo a quo, o qual foi comedido na análise dos fatos, sempre utilizando palavras e expressões que indicassem a ausência de certeza acerca da autoria, das qualificadoras e do crime conexo (palavras como supostamente e em tese), não havendo que se falar em nulidade a ser reconhecida neste ponto. Precedentes. Preliminar rejeitada.
MÉRITO. PEDIDO DE IMPRONÚNCIA. NÃO ACOLHIMENTO. EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA HÁBEIS A JUSTIFICAR A REMESSA DO CASO AO CONSELHO DE SENTENÇA.
3. Compulsando os autos, extrai-se que existem indícios suficientes de autoria em desfavor do réu, produzidos tanto durante o inquérito quanto em juízo, a exemplo de laudos periciais que apontaram para a presença de chumbo no short do acusado e para o fato de que pelo menos um dos projéteis encontrados no local do crime percorreu o cano do revólver de propriedade do recorrente, bem como de depoimentos de testemunhas que estavam dentro da casa de veraneio onde se deram os fatos, além de alguns dos interrogatórios do próprio réu em inquérito, quando assumiu a prática delitiva.
4. De certo, há versão em sentido contrário, como as alegações do próprio réu, prestadas em juízo, no sentido de que não matou as vítimas e que só assumiu a prática dos fatos porque foi coagido pelos policiais e pela Delegada. Contudo, existindo dúvida, medida que se impõe é a apreciação do caso pelo Tribunal do Júri, juízo competente para processar e julgar o feito, já que neste momento vigora o princípio in dubio pro societate. Precedentes.
5. Importante que se diga que a tese defensiva de que a confissão realizada em inquérito decorreu de coação não se encontra, neste momento, isenta de dúvida, não havendo indubitável certeza da suposta agressão ou tortura psicológica efetivada pelos policiais, principalmente porque o acusado estava acompanhado de advogado em algumas das vezes em que confessou a prática do crime. Desta forma, não há razão para desconsiderar, neste momento, a confissão do agente como um dos indícios da autoria delitiva. Ademais, a regularidade da confissão ou eventual vício que tenha ensejado a assunção da responsabilidade pelo réu serão observados pelo Conselho de Sentença, que é o órgão constitucionalmente competente para analisar as provas colhidas e dar a cada uma delas o grau de importância que achar devido.
6. A defesa procura rechaçar os indícios de autoria apresentados pelo magistrado ao pronunciar o acusado, atacando a credibilidade dos citados elementos. Contudo, mais uma vez, ressalte-se que o fato que deve ser discutido por meio deste recurso é a presença ou não dos aludidos indícios de autoria, os quais, como visto, existem. A conclusão acerca da idoneidade e da força probatória dos mesmos, por sua vez, só será feita pelo Tribunal do Júri, não podendo o magistrado a quo ou este órgão ad quem adentrar nesta seara.
PEDIDO DE DECOTE DAS QUALIFICADORAS. IMPOSSIBILIDADE. PRESENÇA DE INDÍCIOS DA OCORRÊNCIA DAS MESMAS. NECESSIDADE, CONTUDO, DE RECONHECER, DE OFÍCIO, NULIDADE QUANTO À DE TORPEZA IMPUTADA AO CRIME QUE VITIMOU A CRIANÇA JADE, POR AFRONTA À CORRELAÇÃO.
7. Subsidiariamente, a defesa requer o decote das qualificadoras reconhecidas em sede de pronúncia. Porém, é sabido que de acordo com entendimento dos Tribunais Superiores, só pode haver o decote das qualificadoras, neste momento processual, se restar comprovado, de forma inequívoca e insofismável, que as mesmas seriam manifestamente improcedentes, o que não ocorreu no presente caso, vez que existem indícios suficientes de que, pelo menos em parte, elas podem ter restado configuradas.
8. Sobre o recurso que impossibilitou a defesa das vítimas, tem-se que conforme afirmado em trecho da pronúncia e nas manifestações acusatórias, os laudos periciais indicam que a vítima Adriana foi morta com um tiro na parte de trás da cabeça, o que poderia indicar que a mesma estava de costas quando foi atingida. Da mesma forma, o orifício de entrada do projétil deflagrado contra a ofendida Jade estava na região torácica posterior, o que também poderia indicar que a mesma estava deitada de costas no berço, dormindo, circunstâncias estas que, de certo, teriam o condão de impossibilitar eventual reação defensiva por parte das vítimas. Precedentes e doutrina.
9. Mencione-se que a alegação defensiva de que levar em consideração a distância dos disparos e o fato de as vítimas estarem de costas, possivelmente dormindo, para configurar a qualificadora em comento acarretaria analogia in malam partem, não merece prosperar para fins de decotá-la, já que o artigo 121, §2º, IV do Código Penal permite a realização de interpretação analógica (e não analogia) quando dispõe que será qualificado o homicídio cometido à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.
10. No que tange à qualificadora do feminicídio, também entende-se que existem indícios da sua ocorrência, restando impossibilitada eventual retirada neste momento. Diz-se isto porque os fatos, em tese, ocorreram no contexto da violência doméstica e familiar, tendo a denúncia relatado que o réu supostamente desferiu disparos contra sua esposa e uma de suas filhas. Assim, ao contrário do que a defesa afirma, não se exige que o delito tenha sido motivado apenas por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, podendo haver a incidência da qualificadora se estivermos diante da circunstância objetiva de crime cometido com violência doméstica e familiar, conforme art. 121, §2º, VI c/c §2º-A, I. Precedentes e doutrina.
11. Sobre a qualificadora de motivo torpe relacionada à vítima Adriana, ainda que a defesa afirme que a mesma seria improcedente porque eventual dificuldade financeira nunca foi motivo de discussão entre o casal, fato é que existem depoimentos de pessoas que afirmam o contrário, como por exemplo a testemunha Ana Paula Moura Pessoa de Carvalho, irmã de Adriana, que relatou a existência de desavenças motivadas principalmente por questões financeiras. Some-se a isso a alegação do próprio réu, em um de seus interrogatórios em inquérito, no sentido de que antes do crime teria discutido com a vítima porque ela queria que ele aceitasse um emprego que oferecia melhor salário. Assim, existindo indícios da presença das supramencionadas qualificadoras, deve o caso ser analisado pelo Conselho de Sentença, órgão competente para dirimir a demanda, já que nesta fase, repita-se, incide o princípio in dubio pro societate.
12. Em giro diverso, no que diz respeito a qualificadora de motivo torpe no delito praticado contra a vítima Jade, tem-se que a denúncia utilizou como argumento o fato de que a vítima dormia no momento do crime e de que era uma criança de 08 (oito) meses, símbolo de pureza. Contudo o magistrado de piso, ao prolatar sentença de pronúncia, sustentou que a qualificadora de motivo torpe decorreu da possível rejeição que o acusado tinha com a filha, tanto por ela ser entrave à vida conjugal quanto em razão de o mesmo ter desejado um filho do sexo masculino. Verifica-se, portanto, que a pronúncia admitiu a qualificadora de torpeza quanto à vítima Jade por fato que não foi narrado na denúncia, sem ter ocorrido aditamento da peça neste aspecto, havendo, por conseguinte, afronta à correlação.
13. Como se sabe, o mencionado princípio da correlação entre a peça acusatória e a sentença representa, no sistema processual penal, uma das mais importantes garantias ao acusado, porquanto descreve balizas para a prolação da decisão, ao dispor que deve haver precisa correspondência entre a conduta imputada ao réu e o que foi reconhecido pelo julgador. No júri, tal assume um contorno próprio, no sentido de que a pronúncia também deve estar de acordo com os fatos narrados na denúncia, pois é ela que limitará o julgamento a ser realizado pelo Conselho de Sentença.
14. Assim medida que se impõe é a anulação do decisum apenas no que tange à qualificadora prevista no art. 121, § 2º, inciso I do CPP quanto ao homicídio praticado contra a vítima Jade Pessoa de Carvalho Moraes, por afronta ao princípio da correlação, uma vez que os fundamentos utilizados pelo juízo de piso divergem dos apresentados na denúncia, devendo ser seguido o correto procedimento do art. 384 do Código de Processo Penal. Precedentes.
PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. CRIME CONEXO. PEDIDO DE DECOTE. INVIABILIDADE. COMPETÊNCIA DO JÚRI PARA ANALISAR A PROCEDÊNCIA OU NÃO DA IMPUTAÇÃO.
15. Por fim, a defesa insurge-se ainda quanto ao crime conexo de porte ilegal de arma de fogo, pois afirma que o porte de arma com registro vencido não configura crime, mas mero ilícito administrativo. Ademais, aduz que deveria ser aplicado no caso concreto o princípio da consunção, ficando o porte de arma (crime-meio) absorvido pelo homicídio (crime-fim).
16. Ab initio, sobre a alegação de que o porte de arma de fogo com registro vencido seria infração administrativa e não ilícito penal, impende ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça, em recente julgado, ressaltou a possibilidade do reconhecimento da tipicidade do delito do art. 14 da Lei 10.826/2003 em casos como o da espécie. Assim, havendo indícios de que não se trata de caso de patente atipicidade da conduta, inviável a retirada do crime conexo neste momento, cabendo a análise do Júri acerca da procedência ou não da imputação. Precedentes.
17. Ademais, ainda que a defesa sustente a tese de aplicabilidade do princípio da consunção, entende-se que aferir se o crime de homicídio qualificado absorve ou não o delito de porte irregular de arma de fogo depende de atenta análise do contexto fático em que ocorreu o ilícito penal, a fim de averiguar o nexo de causalidade entre os crimes, bem como se os desígnios existentes eram ou não autônomos. Assim, tal análise fática deve ser realizada pelo Tribunal do Júri, juiz natural dos crimes dolosos contra a vida e os crimes conexos.
18. Impende ressaltar, ademais, que, no juízo de pronúncia, conforme escol doutrina e jurisprudência pátria, não cabe ao magistrado fazer qualquer análise sobre a infração conexa, devendo esta seguir a mesma sorte da infração principal (quais sejam, os homicídios qualificados), corroborando a necessidade de encaminhamento do pleito ao Conselho de Sentença. Precedentes.
19. Pronunciado o réu e admitida a acusação referente ao crime doloso contra a vida, necessário se faz remeter a análise do feito, por inteiro, ao Conselho de Sentença, competente para julgar no presente caso não só o homicídio, mas também o crime conexo a ele, pois o órgão estudará a dinâmica dos fatos e concluirá se os delitos foram ou não cometidos no mesmo contexto.
RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO, MANTENDO-SE A PRONÚNCIA DO ACUSADO, REJEITANDO AINDA A PRELIMINAR ARGUIDA PELA DEFESA. DE OFÍCIO, RECONHECIDA NULIDADE APENAS NO TOCANTE À QUALIFICADORA DE MOTIVO TORPE REFERENTE AO HOMICÍDIO PRATICADO CONTRA JADE PESSOA DE CARVALHO MORAES, POR AFRONTA À CORRELAÇÃO.
ACORDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de recurso em sentido estrito nº 0005758-61.2015.8.06.0140, ACORDAM os desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, à unanimidade e em parcial consonância com o parecer ministerial, em conhecer do recurso para negar-lhe provimento, afastando ainda a preliminar arguida. De ofício, fica reconhecida nulidade por afronta à correlação quanto ao acolhimento da qualificadora de motivo torpe imputada ao homicídio de Jade Pessoa de Carvalho Moraes, tudo em conformidade com o voto do Relator.
Fortaleza, 1 de agosto de 2017.
DESEMBARGADOR MÁRIO PARENTE TEÓFILO NETO
Relator
Ementa
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DOIS HOMICÍDIOS QUALIFICADOS POR MOTIVO TORPE, RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU A DEFESA DAS VÍTIMAS E FEMINICÍDIO. PRONÚNCIA. PRELIMINAR DE NULIDADE DECORRENTE DE EXCESSO DE LINGUAGEM. REJEIÇÃO. DECISÃO VERGASTADA QUE NÃO ADENTROU AO MÉRITO DA CAUSA.
1. Preliminarmente, sustenta o recorrente que a decisão de pronúncia encontra-se eivada de nulidade, por excesso de linguagem, vez que ao seu ver o magistrado de piso fez análise de mérito em relação à autoria do delito, invadindo a competência do Conselho de Sentença.
2. Ocorre que, ao contrário do que alega a defesa, a decisão proferida não coloca em perigo a imparcialidade dos jurados, estando o decisum em conformidade com as determinações do art. 413 do Código de Processo Penal, sem qualquer juízo de valor acerca do mérito acusatório por parte do juízo a quo, o qual foi comedido na análise dos fatos, sempre utilizando palavras e expressões que indicassem a ausência de certeza acerca da autoria, das qualificadoras e do crime conexo (palavras como supostamente e em tese), não havendo que se falar em nulidade a ser reconhecida neste ponto. Precedentes. Preliminar rejeitada.
MÉRITO. PEDIDO DE IMPRONÚNCIA. NÃO ACOLHIMENTO. EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA HÁBEIS A JUSTIFICAR A REMESSA DO CASO AO CONSELHO DE SENTENÇA.
3. Compulsando os autos, extrai-se que existem indícios suficientes de autoria em desfavor do réu, produzidos tanto durante o inquérito quanto em juízo, a exemplo de laudos periciais que apontaram para a presença de chumbo no short do acusado e para o fato de que pelo menos um dos projéteis encontrados no local do crime percorreu o cano do revólver de propriedade do recorrente, bem como de depoimentos de testemunhas que estavam dentro da casa de veraneio onde se deram os fatos, além de alguns dos interrogatórios do próprio réu em inquérito, quando assumiu a prática delitiva.
4. De certo, há versão em sentido contrário, como as alegações do próprio réu, prestadas em juízo, no sentido de que não matou as vítimas e que só assumiu a prática dos fatos porque foi coagido pelos policiais e pela Delegada. Contudo, existindo dúvida, medida que se impõe é a apreciação do caso pelo Tribunal do Júri, juízo competente para processar e julgar o feito, já que neste momento vigora o princípio in dubio pro societate. Precedentes.
5. Importante que se diga que a tese defensiva de que a confissão realizada em inquérito decorreu de coação não se encontra, neste momento, isenta de dúvida, não havendo indubitável certeza da suposta agressão ou tortura psicológica efetivada pelos policiais, principalmente porque o acusado estava acompanhado de advogado em algumas das vezes em que confessou a prática do crime. Desta forma, não há razão para desconsiderar, neste momento, a confissão do agente como um dos indícios da autoria delitiva. Ademais, a regularidade da confissão ou eventual vício que tenha ensejado a assunção da responsabilidade pelo réu serão observados pelo Conselho de Sentença, que é o órgão constitucionalmente competente para analisar as provas colhidas e dar a cada uma delas o grau de importância que achar devido.
6. A defesa procura rechaçar os indícios de autoria apresentados pelo magistrado ao pronunciar o acusado, atacando a credibilidade dos citados elementos. Contudo, mais uma vez, ressalte-se que o fato que deve ser discutido por meio deste recurso é a presença ou não dos aludidos indícios de autoria, os quais, como visto, existem. A conclusão acerca da idoneidade e da força probatória dos mesmos, por sua vez, só será feita pelo Tribunal do Júri, não podendo o magistrado a quo ou este órgão ad quem adentrar nesta seara.
PEDIDO DE DECOTE DAS QUALIFICADORAS. IMPOSSIBILIDADE. PRESENÇA DE INDÍCIOS DA OCORRÊNCIA DAS MESMAS. NECESSIDADE, CONTUDO, DE RECONHECER, DE OFÍCIO, NULIDADE QUANTO À DE TORPEZA IMPUTADA AO CRIME QUE VITIMOU A CRIANÇA JADE, POR AFRONTA À CORRELAÇÃO.
7. Subsidiariamente, a defesa requer o decote das qualificadoras reconhecidas em sede de pronúncia. Porém, é sabido que de acordo com entendimento dos Tribunais Superiores, só pode haver o decote das qualificadoras, neste momento processual, se restar comprovado, de forma inequívoca e insofismável, que as mesmas seriam manifestamente improcedentes, o que não ocorreu no presente caso, vez que existem indícios suficientes de que, pelo menos em parte, elas podem ter restado configuradas.
8. Sobre o recurso que impossibilitou a defesa das vítimas, tem-se que conforme afirmado em trecho da pronúncia e nas manifestações acusatórias, os laudos periciais indicam que a vítima Adriana foi morta com um tiro na parte de trás da cabeça, o que poderia indicar que a mesma estava de costas quando foi atingida. Da mesma forma, o orifício de entrada do projétil deflagrado contra a ofendida Jade estava na região torácica posterior, o que também poderia indicar que a mesma estava deitada de costas no berço, dormindo, circunstâncias estas que, de certo, teriam o condão de impossibilitar eventual reação defensiva por parte das vítimas. Precedentes e doutrina.
9. Mencione-se que a alegação defensiva de que levar em consideração a distância dos disparos e o fato de as vítimas estarem de costas, possivelmente dormindo, para configurar a qualificadora em comento acarretaria analogia in malam partem, não merece prosperar para fins de decotá-la, já que o artigo 121, §2º, IV do Código Penal permite a realização de interpretação analógica (e não analogia) quando dispõe que será qualificado o homicídio cometido à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.
10. No que tange à qualificadora do feminicídio, também entende-se que existem indícios da sua ocorrência, restando impossibilitada eventual retirada neste momento. Diz-se isto porque os fatos, em tese, ocorreram no contexto da violência doméstica e familiar, tendo a denúncia relatado que o réu supostamente desferiu disparos contra sua esposa e uma de suas filhas. Assim, ao contrário do que a defesa afirma, não se exige que o delito tenha sido motivado apenas por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, podendo haver a incidência da qualificadora se estivermos diante da circunstância objetiva de crime cometido com violência doméstica e familiar, conforme art. 121, §2º, VI c/c §2º-A, I. Precedentes e doutrina.
11. Sobre a qualificadora de motivo torpe relacionada à vítima Adriana, ainda que a defesa afirme que a mesma seria improcedente porque eventual dificuldade financeira nunca foi motivo de discussão entre o casal, fato é que existem depoimentos de pessoas que afirmam o contrário, como por exemplo a testemunha Ana Paula Moura Pessoa de Carvalho, irmã de Adriana, que relatou a existência de desavenças motivadas principalmente por questões financeiras. Some-se a isso a alegação do próprio réu, em um de seus interrogatórios em inquérito, no sentido de que antes do crime teria discutido com a vítima porque ela queria que ele aceitasse um emprego que oferecia melhor salário. Assim, existindo indícios da presença das supramencionadas qualificadoras, deve o caso ser analisado pelo Conselho de Sentença, órgão competente para dirimir a demanda, já que nesta fase, repita-se, incide o princípio in dubio pro societate.
12. Em giro diverso, no que diz respeito a qualificadora de motivo torpe no delito praticado contra a vítima Jade, tem-se que a denúncia utilizou como argumento o fato de que a vítima dormia no momento do crime e de que era uma criança de 08 (oito) meses, símbolo de pureza. Contudo o magistrado de piso, ao prolatar sentença de pronúncia, sustentou que a qualificadora de motivo torpe decorreu da possível rejeição que o acusado tinha com a filha, tanto por ela ser entrave à vida conjugal quanto em razão de o mesmo ter desejado um filho do sexo masculino. Verifica-se, portanto, que a pronúncia admitiu a qualificadora de torpeza quanto à vítima Jade por fato que não foi narrado na denúncia, sem ter ocorrido aditamento da peça neste aspecto, havendo, por conseguinte, afronta à correlação.
13. Como se sabe, o mencionado princípio da correlação entre a peça acusatória e a sentença representa, no sistema processual penal, uma das mais importantes garantias ao acusado, porquanto descreve balizas para a prolação da decisão, ao dispor que deve haver precisa correspondência entre a conduta imputada ao réu e o que foi reconhecido pelo julgador. No júri, tal assume um contorno próprio, no sentido de que a pronúncia também deve estar de acordo com os fatos narrados na denúncia, pois é ela que limitará o julgamento a ser realizado pelo Conselho de Sentença.
14. Assim medida que se impõe é a anulação do decisum apenas no que tange à qualificadora prevista no art. 121, § 2º, inciso I do CPP quanto ao homicídio praticado contra a vítima Jade Pessoa de Carvalho Moraes, por afronta ao princípio da correlação, uma vez que os fundamentos utilizados pelo juízo de piso divergem dos apresentados na denúncia, devendo ser seguido o correto procedimento do art. 384 do Código de Processo Penal. Precedentes.
PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. CRIME CONEXO. PEDIDO DE DECOTE. INVIABILIDADE. COMPETÊNCIA DO JÚRI PARA ANALISAR A PROCEDÊNCIA OU NÃO DA IMPUTAÇÃO.
15. Por fim, a defesa insurge-se ainda quanto ao crime conexo de porte ilegal de arma de fogo, pois afirma que o porte de arma com registro vencido não configura crime, mas mero ilícito administrativo. Ademais, aduz que deveria ser aplicado no caso concreto o princípio da consunção, ficando o porte de arma (crime-meio) absorvido pelo homicídio (crime-fim).
16. Ab initio, sobre a alegação de que o porte de arma de fogo com registro vencido seria infração administrativa e não ilícito penal, impende ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça, em recente julgado, ressaltou a possibilidade do reconhecimento da tipicidade do delito do art. 14 da Lei 10.826/2003 em casos como o da espécie. Assim, havendo indícios de que não se trata de caso de patente atipicidade da conduta, inviável a retirada do crime conexo neste momento, cabendo a análise do Júri acerca da procedência ou não da imputação. Precedentes.
17. Ademais, ainda que a defesa sustente a tese de aplicabilidade do princípio da consunção, entende-se que aferir se o crime de homicídio qualificado absorve ou não o delito de porte irregular de arma de fogo depende de atenta análise do contexto fático em que ocorreu o ilícito penal, a fim de averiguar o nexo de causalidade entre os crimes, bem como se os desígnios existentes eram ou não autônomos. Assim, tal análise fática deve ser realizada pelo Tribunal do Júri, juiz natural dos crimes dolosos contra a vida e os crimes conexos.
18. Impende ressaltar, ademais, que, no juízo de pronúncia, conforme escol doutrina e jurisprudência pátria, não cabe ao magistrado fazer qualquer análise sobre a infração conexa, devendo esta seguir a mesma sorte da infração principal (quais sejam, os homicídios qualificados), corroborando a necessidade de encaminhamento do pleito ao Conselho de Sentença. Precedentes.
19. Pronunciado o réu e admitida a acusação referente ao crime doloso contra a vida, necessário se faz remeter a análise do feito, por inteiro, ao Conselho de Sentença, competente para julgar no presente caso não só o homicídio, mas também o crime conexo a ele, pois o órgão estudará a dinâmica dos fatos e concluirá se os delitos foram ou não cometidos no mesmo contexto.
RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO, MANTENDO-SE A PRONÚNCIA DO ACUSADO, REJEITANDO AINDA A PRELIMINAR ARGUIDA PELA DEFESA. DE OFÍCIO, RECONHECIDA NULIDADE APENAS NO TOCANTE À QUALIFICADORA DE MOTIVO TORPE REFERENTE AO HOMICÍDIO PRATICADO CONTRA JADE PESSOA DE CARVALHO MORAES, POR AFRONTA À CORRELAÇÃO.
ACORDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de recurso em sentido estrito nº 0005758-61.2015.8.06.0140, ACORDAM os desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, à unanimidade e em parcial consonância com o parecer ministerial, em conhecer do recurso para negar-lhe provimento, afastando ainda a preliminar arguida. De ofício, fica reconhecida nulidade por afronta à correlação quanto ao acolhimento da qualificadora de motivo torpe imputada ao homicídio de Jade Pessoa de Carvalho Moraes, tudo em conformidade com o voto do Relator.
Fortaleza, 1 de agosto de 2017.
DESEMBARGADOR MÁRIO PARENTE TEÓFILO NETO
Relator
Data do Julgamento
:
01/08/2017
Data da Publicação
:
01/08/2017
Classe/Assunto
:
Recurso em Sentido Estrito / Homicídio Qualificado
Órgão Julgador
:
1ª Câmara Criminal
Relator(a)
:
MARIO PARENTE TEÓFILO NETO
Comarca
:
Paracuru
Comarca
:
Paracuru
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