TJPI 07.002115-5
PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRELIMINAR DE competência das varas especializadas da fazenda pública do piauí. ações que envolvam interesse de sociedade de economia mista. PRELIMINAR AFASTADA. MÉRITO. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA REGRA DO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM QUE REGE OS CONTRATOS. presença dos requisitos autorizadores da concessão Da medida cautelar pleiteada. Conhecimento e improvimento DO RECURSO.
1. A questão acerca da competência das varas especializadas da Fazenda Pública, para o processamento e julgamento de causas em que se discute interesse de sociedade de economia mista, é resolvida no plano da legislação estadual, que estabelece a organização judiciária da Justiça Estadual, com a distribuição da competência entre múltiplos órgão jurisdicionais – as varas especializadas –, tudo na conformidade de uma série de critérios.
2. A própria Constituição da República, em seu art. 125, caput, determina que “os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição” (art. 125, CF).
3. No mesmo sentido, o Código de Processo Civil, em seu art. 91, estabelece que “a competência em razão do valor e da matéria” é regida pelas “normas de organização judiciária” (art. 91, CPC).
4. Ao tecer comentários acerca das fontes legislativas que definem a competência dos juízos, a doutrina explica que as leis de organização judiciária, por instituírem órgão jurisdicionais, devem também atribuir-lhes a competência respectiva: “Como a instituição dos juízos é atribuição das leis de organização judiciária, inclusive leis estaduais no que se refere às Justiças dos Estados, a elas cabe também definir a competência dos órgãos que instituem (…). (…) Para a competência de juízo em primeiro grau prevalecem as leis estaduais de organização judiciária (infraconstitucionais), que obrigatoriamente partirão da iniciativa do Tribunal de Justiça (ib).”. (Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, vol. I, p. 576 e 577, nº 281).
5. No Estado do Piauí, as normas de organização judiciária, constantes da Lei nº 3.716/1979, instituíam as varas da fazenda pública e outorgavam-lhes a competência para as causas que envolvessem “interesse da Fazenda Estadual, ou da Fazenda Municipal e das entidades autárquicas e paraestatais do Estado e do Município”.
6. Desse modo, a Lei de Organização Judiciária, na conformidade do art. 91 do CPC, regia a competência em razão da matéria, em seu art. 42, inciso II, alínea “b”: “Art. 42. Na Capital, observadas as disposições do artigo 106 do Código de Processo Civil, a competência dos Juízes de Direito, determina-se pelas seguintes normas: […] II – gozam de competência privativa e exclusiva na civil: […] b) o Juiz dos Feitos da Fazenda Pública, quando houver interesse da Fazenda Estadual, ou da Fazenda Municipal e das entidades autárquicas e paraestatais do Estado e do Município;”.
6. Referido dispositivo (o art. 42 da Lei de Organização Judiciária) foi expressamente revogado pelo art. 6º da Lei Complementar Estadual nº 97, de 10.01.2008, verbis: “Art. 6º Ficam revogadas as disposições em contrário, em especial os incisos III-A, IV-A, VIII, IX e X do art. 41 e o art. 42 da Lei Estadual n. 3.716, de 12 de dezembro de 1979, e o artigo 3º, alíneas “a”, “b” e “c”, e parágrafo único, da Lei Estadual nº 5.204, de 07 de agosto de 2001.”.
7. Portanto, atualmente, está revogado o antigo art. 42 da Lei de Organização Judiciária, por expressa disposição do art. 6º da Lei Complementar Estadual nº 97, de 10.01.2008. Ademais, como o dispositivo revogador se referiu ao “art. 42 da Lei Estadual n. 3.716, de 12 de dezembro de 1979”, há de se compreender como revogado a integralidade do art. 42, ante a ausência de qualquer ressalva a parágrafo, inciso ou alínea integrante do artigo revogado. É caso, portanto, de revogação total (ou ab-rogação) do art. 42 da Lei de Organização Judiciária.
8. Assim, a única disposição vigente sobre as varas da fazenda pública na Lei de Organização Judiciária do Estado do Piauí é a do atual art. 41, inciso II, alíneas “a” e “b”, verbis: “Art. 41. As trinta e quatro Varas da Comarca de Teresina, de entrância final, cada uma com um Juiz de Direito, repartem-se em: (…) II – quatro Varas da Fazenda Pública, sendo duas por distribuição, denominadas, numericamente, de 1ª e 2ª, e as 3ª e 4ª Varas, também por distribuição, exclusivas de Execuções Fiscais e demais ações de natureza tributária com a seguinte competência: (…) a) a 3ª Vara da Fazenda Pública possui competência privativa para as execuções e ações de natureza tributária referentes ao Município de Teresina; b) a 4ª Vara da Fazenda Pública possui competência privativa para as execuções e ações de natureza tributária referentes ao Estado do Piauí.”.
9. Portanto, a 1ª e a 2ª varas da fazenda pública ressentem-se de qualquer norma que lhes estabeleça a competência, em decorrência de grave equívoco do legislador. É que a Lei Complementar Estadual nº 97, de 10.01.2008, reorganizou as competência das varas da Comarca de Teresina, concentrando no art. 41 várias disposições antes constantes do antigo art. 42.
10. Então, no afã de revogar todas as disposições em contrário, o legislador, desnecessariamente, o fez de modo expresso, relativamente ao art. 42, provavelmente acreditando que toda a matéria que este dispositivo disciplinava estaria realocada no art. 41, com alterações – o que na verdade não aconteceu. Se o legislador não tivesse incorrido nessa falha, o inciso II, alínea “b” do antigo art. 42 ainda estaria a vigorar, posto que compatível com as novas disposições.
11. Porém, consoante a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu art. 2º, § 1º, “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Assim, tendo a Lei Complementar Estadual nº 97/2008 declarado expressamente a revogação do art. 42 da Lei de Organização Judiciária, é de se considerá-lo revogado.
12. Contudo, aplica-se o art. 42, inciso II, alínea “b”, da Lei de Organização Judiciária, se vigente à época da fixação do órgão jurisdicional competente para o processamento e julgamento da demanda.
13. Se a distribuição da demanda ocorreu anteriormente ao advento da lei revogadora do art. 42 da Lei de Organização Judiciária, aplica-se o art. 42, inciso II, alínea “b”, da Lei de Organização Judiciária.
14. Com a distribuição da demanda, opera-se o fenômeno da prevenção, que nada mais é do que a fixação do órgão jurisdicional competente para o processamento e julgamento da causa (art. 87 do CPC), com a perpetuação da competência (e não da jurisdição).
15. Esta estabilização é regida conforme a legislação aplicável à época, como decorre da velha máxima segundo a qual tempus regit actum, e do art. 87 do CPC, verbis: “Art. 87. Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia.”.
16. Como se pode extrair dessa norma, a perpetuação da competência torna “irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente” (art. 87, CPC), de modo que “tem o efeito de impedir especulações sobre possíveis transferências da causa a outros juízos, depois da propositura, ao sabor da superveniência de diferentes leis determinadoras da competência (…)” (Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, vol. I, p. 651, nº 325).
17. Contudo, ainda do mesmo art. 87 do CPC, se extraem as duas hipóteses excepcionais em que se admite a modificação da competência já perpetuada, quais sejam: i) a supressão do órgão jurisdicional prevento, e ii) alteração da competência em razão da matéria ou da hierarquia. A contrario sensu, infere-se que não há cogitar de modificação da competência, no que diz respeito às varas da fazenda pública, porque, relativamente a elas, i) não ocorreu supressão do órgão jurisdicional prevento, nem ii) se deu alteração da competência em razão da matéria, já que a norma do art. 42 não deu lugar a nenhuma outra, tendo sua revogação dado origem a uma verdadeira lacuna legislativa.
18. De acordo com o art. 42, inciso II, alínea “b”, da Lei de Organização Judiciária, as varas da fazenda pública são competentes para processar e julgar as demandas nas quais estiver em discussão “interesse da Fazenda Estadual, ou da Fazenda Municipal e das entidades autárquicas e paraestatais do Estado e do Município”.
19. Trata-se de critério material (e não pessoal) de distribuição da competência, posto que seu referencial é o interesse discutido no processo, e não propriamente a presença de determinadas pessoas, de per si, na relação jurídica processual.
20. Sociedade de economia mista estadual é figura da administração indireta, com personalidade jurídica de direito privado, que não se subsume no conceito de Fazenda Estadual, posto que, como elucida a doutrina especializada, “(...) o conceito de Fazenda Pública abrange a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas”. Consequentemente, “(...) estão excluídas do conceito de Fazenda Pública as sociedades de economia mista e as empresas públicas”. (Leonardo José Carneiro da Cunha, A Fazenda Pública em Juízo, 2008, p. 18, n° 1.1).
20. As outras duas figuras, cujo interesse faz nascer a competência das varas da fazenda pública na Justiça Estadual do Piauí, são as entidades autárquicas e as entidades paraestatais, conforme o art. 42 da Lei de Organização Judiciária.
21. Sociedades de economia mista não se enquadram como “entidades autárquicas”, que são pessoas de direito público, dotadas de configuração jurídica diversa.
22. O art. 42 da Lei de Organização Judiciária empregou a locução “entidades paraestatais” na acepção adotada por Hely Lopes Meirelles, segundo a qual “entidades paraestatais são pessoas jurídicas de direito privado, cuja criação é autorizada por lei específica, com patrimônio público ou misto, para a realização de atividades, obras ou serviços de interesse coletivo, sob normas e controle do Estado”.
23. Nesta acepção, como observado por Zanella Di Pietro, na locução “entidades paraestatais”, estão compreendidas as empresas públicas, as fundações instituídas pelo Poder Público, os serviços sociais autônomos e, também, as sociedades de economia mista.
24. Ora, para fins de interpretação do art. 42 da Lei de Organização Judiciária, tomar a expressão “entidades paraestatais” na acepção segundo a qual estariam incluídas naquela categoria apenas os serviços sociais autônomos, redundaria em um absurdo. A figuras como SESI, SESC, SENAI, etc., seria dada a prerrogativa do julgamento das causas de seu interesse pelas varas da fazenda pública; mas o mesmo não valeria para as sociedades de economia mista, nem para as empresas públicas, cujo patrimônio é composto por capital público.
25. Como se vê, as sociedades de economia mista se subsumem a uma das figuras elencadas no art. 42, inciso II, alínea “b”, da Lei de Organização Judiciária, enquadrando-se como “entidades paraestatais”.
26. Preliminar de incompetência do juízo prolator da decisão recorrida afastada, nos termos do art. 42 da Lei de Organização Judiciária do Estado do Piauí, para reconhecer a ausência, na decisão agravada, de qualquer vício decorrente da competência do órgão que a exarou.
27. A posição contraditória assumida por uma das partes contratantes, ao não cumprir a sua parte na avença, e, ao mesmo tempo, impor multa à outra parte pelo decumprimento contratual, é vedada pela teoria do venire contra factum proprium, que se reporta à vedação de vir contra fato próprio que incute expectativa de efeitos a outrem de boa-fé.
28. Dessa forma, aquele que adere a uma determinada forma de proceder não pode opor-se às conseqüências dela resultantes, ao adotar posições contraditórias, em decorrência das expectativas legítimas que emergem para a outra parte. Nesta hipótese, o contratante assume um determinado comportamento o qual é posteriormente contrariado por outro. A respeito, Nelson Nery Junior:
"Venire contra factum proprium. A locução ‘venire contra factum proprium’ traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente (Menezes Cordeiro, Boa-fé, p. 743). ‘Venire contra factum proprium’ postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro - factum proprium- é, porém, contrariado pelo segundo. Esta fórmula provoca, à partida, reações afectivas que devem ser evitadas (Menezes Cordeiro, Boa-fé, p. 745). A proibição de venire contra factum proprium traduz a vocação ética, psicológica e social da regra ‘pacta sunt servanda’ para a juspositividade (Menezes Cordeiro, Boa-fé, p. 751)."( Nelson Nery Júnior. Código Civil Anotado, 2003, p. 236)
29. Recurso conhecido e improvido.
(TJPI | Agravo de Instrumento Nº 07.002115-5 | Relator: Des. Francisco Antônio Paes Landim Filho | 3ª Câmara Especializada Cível | Data de Julgamento: 07/03/2012 )
Ementa
PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRELIMINAR DE competência das varas especializadas da fazenda pública do piauí. ações que envolvam interesse de sociedade de economia mista. PRELIMINAR AFASTADA. MÉRITO. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA REGRA DO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM QUE REGE OS CONTRATOS. presença dos requisitos autorizadores da concessão Da medida cautelar pleiteada. Conhecimento e improvimento DO RECURSO.
1. A questão acerca da competência das varas especializadas da Fazenda Pública, para o processamento e julgamento de causas em que se discute interesse de sociedade de economia mista, é resolvida no plano da legislação estadual, que estabelece a organização judiciária da Justiça Estadual, com a distribuição da competência entre múltiplos órgão jurisdicionais – as varas especializadas –, tudo na conformidade de uma série de critérios.
2. A própria Constituição da República, em seu art. 125, caput, determina que “os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição” (art. 125, CF).
3. No mesmo sentido, o Código de Processo Civil, em seu art. 91, estabelece que “a competência em razão do valor e da matéria” é regida pelas “normas de organização judiciária” (art. 91, CPC).
4. Ao tecer comentários acerca das fontes legislativas que definem a competência dos juízos, a doutrina explica que as leis de organização judiciária, por instituírem órgão jurisdicionais, devem também atribuir-lhes a competência respectiva: “Como a instituição dos juízos é atribuição das leis de organização judiciária, inclusive leis estaduais no que se refere às Justiças dos Estados, a elas cabe também definir a competência dos órgãos que instituem (…). (…) Para a competência de juízo em primeiro grau prevalecem as leis estaduais de organização judiciária (infraconstitucionais), que obrigatoriamente partirão da iniciativa do Tribunal de Justiça (ib).”. (Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, vol. I, p. 576 e 577, nº 281).
5. No Estado do Piauí, as normas de organização judiciária, constantes da Lei nº 3.716/1979, instituíam as varas da fazenda pública e outorgavam-lhes a competência para as causas que envolvessem “interesse da Fazenda Estadual, ou da Fazenda Municipal e das entidades autárquicas e paraestatais do Estado e do Município”.
6. Desse modo, a Lei de Organização Judiciária, na conformidade do art. 91 do CPC, regia a competência em razão da matéria, em seu art. 42, inciso II, alínea “b”: “Art. 42. Na Capital, observadas as disposições do artigo 106 do Código de Processo Civil, a competência dos Juízes de Direito, determina-se pelas seguintes normas: […] II – gozam de competência privativa e exclusiva na civil: […] b) o Juiz dos Feitos da Fazenda Pública, quando houver interesse da Fazenda Estadual, ou da Fazenda Municipal e das entidades autárquicas e paraestatais do Estado e do Município;”.
6. Referido dispositivo (o art. 42 da Lei de Organização Judiciária) foi expressamente revogado pelo art. 6º da Lei Complementar Estadual nº 97, de 10.01.2008, verbis: “Art. 6º Ficam revogadas as disposições em contrário, em especial os incisos III-A, IV-A, VIII, IX e X do art. 41 e o art. 42 da Lei Estadual n. 3.716, de 12 de dezembro de 1979, e o artigo 3º, alíneas “a”, “b” e “c”, e parágrafo único, da Lei Estadual nº 5.204, de 07 de agosto de 2001.”.
7. Portanto, atualmente, está revogado o antigo art. 42 da Lei de Organização Judiciária, por expressa disposição do art. 6º da Lei Complementar Estadual nº 97, de 10.01.2008. Ademais, como o dispositivo revogador se referiu ao “art. 42 da Lei Estadual n. 3.716, de 12 de dezembro de 1979”, há de se compreender como revogado a integralidade do art. 42, ante a ausência de qualquer ressalva a parágrafo, inciso ou alínea integrante do artigo revogado. É caso, portanto, de revogação total (ou ab-rogação) do art. 42 da Lei de Organização Judiciária.
8. Assim, a única disposição vigente sobre as varas da fazenda pública na Lei de Organização Judiciária do Estado do Piauí é a do atual art. 41, inciso II, alíneas “a” e “b”, verbis: “Art. 41. As trinta e quatro Varas da Comarca de Teresina, de entrância final, cada uma com um Juiz de Direito, repartem-se em: (…) II – quatro Varas da Fazenda Pública, sendo duas por distribuição, denominadas, numericamente, de 1ª e 2ª, e as 3ª e 4ª Varas, também por distribuição, exclusivas de Execuções Fiscais e demais ações de natureza tributária com a seguinte competência: (…) a) a 3ª Vara da Fazenda Pública possui competência privativa para as execuções e ações de natureza tributária referentes ao Município de Teresina; b) a 4ª Vara da Fazenda Pública possui competência privativa para as execuções e ações de natureza tributária referentes ao Estado do Piauí.”.
9. Portanto, a 1ª e a 2ª varas da fazenda pública ressentem-se de qualquer norma que lhes estabeleça a competência, em decorrência de grave equívoco do legislador. É que a Lei Complementar Estadual nº 97, de 10.01.2008, reorganizou as competência das varas da Comarca de Teresina, concentrando no art. 41 várias disposições antes constantes do antigo art. 42.
10. Então, no afã de revogar todas as disposições em contrário, o legislador, desnecessariamente, o fez de modo expresso, relativamente ao art. 42, provavelmente acreditando que toda a matéria que este dispositivo disciplinava estaria realocada no art. 41, com alterações – o que na verdade não aconteceu. Se o legislador não tivesse incorrido nessa falha, o inciso II, alínea “b” do antigo art. 42 ainda estaria a vigorar, posto que compatível com as novas disposições.
11. Porém, consoante a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu art. 2º, § 1º, “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. Assim, tendo a Lei Complementar Estadual nº 97/2008 declarado expressamente a revogação do art. 42 da Lei de Organização Judiciária, é de se considerá-lo revogado.
12. Contudo, aplica-se o art. 42, inciso II, alínea “b”, da Lei de Organização Judiciária, se vigente à época da fixação do órgão jurisdicional competente para o processamento e julgamento da demanda.
13. Se a distribuição da demanda ocorreu anteriormente ao advento da lei revogadora do art. 42 da Lei de Organização Judiciária, aplica-se o art. 42, inciso II, alínea “b”, da Lei de Organização Judiciária.
14. Com a distribuição da demanda, opera-se o fenômeno da prevenção, que nada mais é do que a fixação do órgão jurisdicional competente para o processamento e julgamento da causa (art. 87 do CPC), com a perpetuação da competência (e não da jurisdição).
15. Esta estabilização é regida conforme a legislação aplicável à época, como decorre da velha máxima segundo a qual tempus regit actum, e do art. 87 do CPC, verbis: “Art. 87. Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia.”.
16. Como se pode extrair dessa norma, a perpetuação da competência torna “irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente” (art. 87, CPC), de modo que “tem o efeito de impedir especulações sobre possíveis transferências da causa a outros juízos, depois da propositura, ao sabor da superveniência de diferentes leis determinadoras da competência (…)” (Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, vol. I, p. 651, nº 325).
17. Contudo, ainda do mesmo art. 87 do CPC, se extraem as duas hipóteses excepcionais em que se admite a modificação da competência já perpetuada, quais sejam: i) a supressão do órgão jurisdicional prevento, e ii) alteração da competência em razão da matéria ou da hierarquia. A contrario sensu, infere-se que não há cogitar de modificação da competência, no que diz respeito às varas da fazenda pública, porque, relativamente a elas, i) não ocorreu supressão do órgão jurisdicional prevento, nem ii) se deu alteração da competência em razão da matéria, já que a norma do art. 42 não deu lugar a nenhuma outra, tendo sua revogação dado origem a uma verdadeira lacuna legislativa.
18. De acordo com o art. 42, inciso II, alínea “b”, da Lei de Organização Judiciária, as varas da fazenda pública são competentes para processar e julgar as demandas nas quais estiver em discussão “interesse da Fazenda Estadual, ou da Fazenda Municipal e das entidades autárquicas e paraestatais do Estado e do Município”.
19. Trata-se de critério material (e não pessoal) de distribuição da competência, posto que seu referencial é o interesse discutido no processo, e não propriamente a presença de determinadas pessoas, de per si, na relação jurídica processual.
20. Sociedade de economia mista estadual é figura da administração indireta, com personalidade jurídica de direito privado, que não se subsume no conceito de Fazenda Estadual, posto que, como elucida a doutrina especializada, “(...) o conceito de Fazenda Pública abrange a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações públicas”. Consequentemente, “(...) estão excluídas do conceito de Fazenda Pública as sociedades de economia mista e as empresas públicas”. (Leonardo José Carneiro da Cunha, A Fazenda Pública em Juízo, 2008, p. 18, n° 1.1).
20. As outras duas figuras, cujo interesse faz nascer a competência das varas da fazenda pública na Justiça Estadual do Piauí, são as entidades autárquicas e as entidades paraestatais, conforme o art. 42 da Lei de Organização Judiciária.
21. Sociedades de economia mista não se enquadram como “entidades autárquicas”, que são pessoas de direito público, dotadas de configuração jurídica diversa.
22. O art. 42 da Lei de Organização Judiciária empregou a locução “entidades paraestatais” na acepção adotada por Hely Lopes Meirelles, segundo a qual “entidades paraestatais são pessoas jurídicas de direito privado, cuja criação é autorizada por lei específica, com patrimônio público ou misto, para a realização de atividades, obras ou serviços de interesse coletivo, sob normas e controle do Estado”.
23. Nesta acepção, como observado por Zanella Di Pietro, na locução “entidades paraestatais”, estão compreendidas as empresas públicas, as fundações instituídas pelo Poder Público, os serviços sociais autônomos e, também, as sociedades de economia mista.
24. Ora, para fins de interpretação do art. 42 da Lei de Organização Judiciária, tomar a expressão “entidades paraestatais” na acepção segundo a qual estariam incluídas naquela categoria apenas os serviços sociais autônomos, redundaria em um absurdo. A figuras como SESI, SESC, SENAI, etc., seria dada a prerrogativa do julgamento das causas de seu interesse pelas varas da fazenda pública; mas o mesmo não valeria para as sociedades de economia mista, nem para as empresas públicas, cujo patrimônio é composto por capital público.
25. Como se vê, as sociedades de economia mista se subsumem a uma das figuras elencadas no art. 42, inciso II, alínea “b”, da Lei de Organização Judiciária, enquadrando-se como “entidades paraestatais”.
26. Preliminar de incompetência do juízo prolator da decisão recorrida afastada, nos termos do art. 42 da Lei de Organização Judiciária do Estado do Piauí, para reconhecer a ausência, na decisão agravada, de qualquer vício decorrente da competência do órgão que a exarou.
27. A posição contraditória assumida por uma das partes contratantes, ao não cumprir a sua parte na avença, e, ao mesmo tempo, impor multa à outra parte pelo decumprimento contratual, é vedada pela teoria do venire contra factum proprium, que se reporta à vedação de vir contra fato próprio que incute expectativa de efeitos a outrem de boa-fé.
28. Dessa forma, aquele que adere a uma determinada forma de proceder não pode opor-se às conseqüências dela resultantes, ao adotar posições contraditórias, em decorrência das expectativas legítimas que emergem para a outra parte. Nesta hipótese, o contratante assume um determinado comportamento o qual é posteriormente contrariado por outro. A respeito, Nelson Nery Junior:
"Venire contra factum proprium. A locução ‘venire contra factum proprium’ traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente (Menezes Cordeiro, Boa-fé, p. 743). ‘Venire contra factum proprium’ postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro - factum proprium- é, porém, contrariado pelo segundo. Esta fórmula provoca, à partida, reações afectivas que devem ser evitadas (Menezes Cordeiro, Boa-fé, p. 745). A proibição de venire contra factum proprium traduz a vocação ética, psicológica e social da regra ‘pacta sunt servanda’ para a juspositividade (Menezes Cordeiro, Boa-fé, p. 751)."( Nelson Nery Júnior. Código Civil Anotado, 2003, p. 236)
29. Recurso conhecido e improvido.
(TJPI | Agravo de Instrumento Nº 07.002115-5 | Relator: Des. Francisco Antônio Paes Landim Filho | 3ª Câmara Especializada Cível | Data de Julgamento: 07/03/2012 )Decisão
Acordam os componentes da Egrégia 3ª Câmara Especializada Cível, do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, pelo conhecimento e improvimento do recurso, em conformidade com o Parecer Ministerial de fls. 170/173, para manter, em todos os seus termos, a decisão agravada.
Data do Julgamento
:
07/03/2012
Classe/Assunto
:
Agravo de Instrumento
Órgão Julgador
:
3ª Câmara Especializada Cível
Relator(a)
:
Des. Francisco Antônio Paes Landim Filho