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Jurisprudência


TJPI 2009.0001.002168-7

Ementa
PROCESSUAL CIVIL, ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E previdenciário. REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÃO CÍVEL. CONHECIMENTO. Art. 475, §2º, do CPC. Relação litigiosa que não possui natureza econômica certa. PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DOS JUÍZOS ESPECIALIZADOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. ACOLHIDA. ART. 148, IV, C/C ART. 208 DO ECA. ART. 98 C/C ART. 5° DO ECA. Competência dos juízos especializados da fazenda pública. Aplicação do art. 515, §3º, do CPC. CRIANÇA SOB GUARDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRIORIDADE ABSOLUTA. PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO. PRINCÍPIO DA ISONOMIA. PROVIMENTO PARCIAL. 1. Nas sentenças proferidas em ações de obrigação de fazer, que visam a inscrição de dependentes junto a uma Autarquia previdenciária, os efeitos econômicos – gozo de benefício previdenciários, gozo de serviços de saúde etc. - ocorrem de forma indireta, ou seja, trata-se de relação litigiosa que não possui natureza econômica certa, o que inviabiliza a aplicação da exceção prevista no art. 475, §2º, do CPC. 2. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) preceitua, em seu art. 148, inciso IV, que cabe ao Juízo da Infância e da Juventude “conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209”. 3. Contudo, o próprio ECA limita o campo de incidência de suas normas, inclusive as competenciais, relativamente à tutela jurídica dos interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, ao estatuir, em seu art. 208, uma lista de matérias às quais se restringe a disciplina positivada na Lei nº 8.069/1990. 4. O §1º do art. 208 do ECA faz a ressalva de que “as hipóteses previstas neste artigo não excluem da proteção judicial outros interesses individuais, difusos ou coletivos, próprios da infância e da adolescência, protegidos pela Constituição e pela Lei”. Contudo, o fato de o art. 208 não excluir a proteção judicial de outros interesses que não tenham sido consagrados em seu rol, não significa que todas as causas, envolvendo os interesses relacionados a crianças ou adolescentes, tenham de ser processadas e julgadas em Varas da Infância e da Juventude. Se assim fosse, seria completamente destituída de utilidade a enumeração constante do art. 208 do ECA, acima transcrito, o que seria inadmissível, frente à velha máxima de hermenêutica jurídica, segundo a qual não há disposições inúteis na lei. 5. No casos em que a ação originária do recurso versa sobre a pretensão de uma criança em figurar como dependente do seu guardião, junto a uma Autarquia Previdenciária, a fim de que possa gozar dos benefícios e serviços oferecidos pelo ente, não há como enquadrá-la em nenhuma das categorias de ações previstas no art. 208 do ECA, de modo que a competência para sua apreciação não encontra fundamento no art. 148, inciso IV, daquele mesmo diploma legislativo. 6. Com base no parágrafo único do art. 148 do ECA, a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça sedimentou o entendimento de que a competência das Varas da Infância e da Juventude só se configura se restar caracterizado que o menor, cujo interesse se discute no processo, encontra-se em situação irregular ou de risco, entendida esta como a ameaça ou a violação aos direitos reconhecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), nos termos do seu art. 98. 7. Assim, a situação irregular ou de risco se apresenta como um requisito para a configuração da competência das Varas da Infância e da Juventude, de modo que a identificação da competência desses órgãos jurisdicionais especializados passa, necessariamente, pela verificação, em concreto, da caracterização de tal “situação irregular ou de risco”. Precedentes. 8. A caracterização da situação, em que se encontra o menor, como sendo “irregular” ou “de risco”, só pode ser feita a partir da apreciação das peculiaridades fáticas individualizadoras de cada caso concreto. Precedentes do STJ. 9. Para tal aferição, deve-se considerar situação irregular ou de risco a ameaça ou a violação aos direitos reconhecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), nos termos do seu art. 98. 10. Neste contexto, cabe apontar os direitos fundamentais consagrados no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 7º a 24), para realçar os propósitos essenciais do referido conjunto normativo, que compõe verdadeiro microssistema de tutela dos interesses da criança e do adolescente. 11. O reconhecimento de cada situação concreta, ofertada pela vida, como ameaça ou violência a tais direitos evidentemente deve ser conduzida por um espírito de repúdio, preventivo e repressivo, às mazelas a que nenhuma criança pode ser submetida, nos termos do art. 5º do ECA, segundo o qual “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. 12. Nas hipóteses em que, a partir dos elementos fornecidos pelas informações constantes dos autos, não é possível afirmar que a criança esteja submetida a qualquer das circunstâncias descritas no art. 5º do ECA, por ameaça ou violação a direitos, sua situação não pode ser caracterizada como sendo “irregular ou de risco” (art. 98 do ECA). 13. A competência para o julgamento da causa originária do recurso não é das Varas da Infância e da Juventude, porque não consta dos autos qualquer circunstância indicativa de que o menor interessado se encontre em situação de risco. 14. Na forma da Lei de Organização Judiciária do Estado do Piauí (Lei Estadual nº 3.716/1979), as causas em que se discute interesse das entidades autárquicas estaduais devem ser processadas e julgadas pelas Varas da Fazenda Pública (TJ-PI, Terceira Câmara Especializada Cível, AI nº 07.001954-1, Rel. Des. FRANCISCO LANDIM, j. 07.07.2010). 15. Com base no art. 41 da Lei de Organização Judiciária, vê-se que é das Varas da Fazenda Pública a competência para o processamento e julgamento de causas em que se discute interesse de entidade autárquica estadual, como o IAPEP – Instituto de Assistência e Previdência do Estado do Piauí. 16. Como observa Cândido Rangel Dinamarco, a competência privativa das Varas da Fazenda Pública encontra amparo na necessidade da existência de juízos especializados, capazes de melhor equilibrar os interesses do Estado (como a preservação de seu patrimônio) e a liberdade dos indivíduos, sem falar na função de “facilitar a defesa judicial dos entes estatais”, ou mesmo dos paraestatais, se a lei assim o determinar. São precisamente estas as razões que justificam o caráter absoluto de que se reveste, inegavelmente, a competência destas varas especializadas (V. Cândido Rangel Dinamarco. Instituições de Direito Processual Civil, vol. I, 2005, p. 641, nº 320). 17. Da constatação de que a decisão recorrida foi proferida por magistrado absolutamente incompetente para o feito, decorrem duas consequências: i) a nulidade da decisão; ii) a remessa dos autos da ação originária para distribuição entre os juízos competentes (art. 113, § 2º, do CPC). 18. Se a causa estiver devidamente instruída e em condições de imediato julgamento, o retorno dos autos à primeira instância revela notória inutilidade, devendo ser aplicada a regra constante no citado art. 515, §3º, do CPC. 19. A regra que confere à criança sob guarda a condição de dependente para fins previdenciários (art. 33, § 3º do ECA) consiste em uma manifestação normativa pontual do núcleo essencial de direitos humanos – a dignidade da pessoa humana. 20. A aplicação da norma, em sua plenitude, encontra assento no princípio constitucional da prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente, insculpido no art. 227, caput, da Constituição Federal. 21. A garantia da condição de dependente a criança sob guarda visa prestigiar os direitos fundamentais da criança e do adolescente, razão pela qual, em atenção ao princípio da eficiência, deve-se preferir a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais. 21. O Estatuto da Criança e do Adolescente é lei especial em relação às Leis Previdenciárias, devendo a norma estatutária ser preferida na análise do conflito aparente de normas. 22. Conforme dispõe o principio da vedação ao retrocesso, é vedada a eliminação ou diminuição de direitos já conquistados. 23. A não consideração da criança sob guarda, como dependente, para fins previdenciários, viola o princípio da isonomia, uma vez que à criança tutelada é garantido tais direitos. 24. Apelação Cível e Remessa Oficial conhecida e parcialmente provida para anular a sentença de 1º grau, acolhendo a preliminar de incompetência absoluta do juízo, e, aplicando o art. 515, §3º, do CPC, apreciar a demanda originária, julgando procedente o pleito exordial. (TJPI | Reexame Necessário Nº 2009.0001.002168-7 | Relator: Des. Francisco Antônio Paes Landim Filho | 3ª Câmara Especializada Cível | Data de Julgamento: 27/08/2014 )
Decisão
ACORDAM os componentes da Egrégia 3ª Câmara Especializada Cível, do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, à unanimidade, em conhecer da Apelação Cível e do Reexame Necessário, para: i) acolher a preliminar de incompetência absoluta do juízo; ii) anular a sentença de 1º grau, por ter sido proferida por juízo incompetente; iii) apreciar a demanda originária, por se tratar de causa madura, julgando procedente o pleito exordial, no sentido de determinar a inscrição das crianças N.R.F.C, J.F.C e R.P.F.C, junto ao INSTITUTO DE ASSISTÊNCIA E PREVIDÊNCIA DO ESTADO DO PIAUÍ, na qualidade de dependentes da Autora, ora Apelada, com vistas a assegurar o gozo dos benefício e serviços oferecidos pelo ente público, inclusive em relação ao plano de saúde, bem como condenar a Autarquia Previdenciária ao pagamento das custas processuais.

Data do Julgamento : 27/08/2014
Classe/Assunto : Reexame Necessário
Órgão Julgador : 3ª Câmara Especializada Cível
Relator(a) : Des. Francisco Antônio Paes Landim Filho
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