TRF2 0000272-19.2005.4.02.5111 00002721920054025111
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. QUESTÕES AMBIENTAL E POSSESSÓRIA. OCUPAÇÃO E CONSTRUÇÃO NA
ÁREA DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL CAIRUÇU. LEI 9.985/00. DECRETO-LEI 89.242/83
DERROGADO PELO DECRETO 8.775/2016. COMPLEXIDADE TÉCNICA E CONHECIMENTO
ESPECÍFICO. ARTIGO 420, PARÁGRAFO ÚNICO, I, CPC/73. NECESSIDADE. 1. Ação Civil
Pública ajuizada pelo MPF, instituição com função precípua constitucional de
promover a proteção do meio ambiente e demais interesses difusos e coletivos
(arts. 127 c/c 129, III, CRFB/88), no intuito de obstar construções e a
posterior manutenção de funcionamento do empreendimento, ante sua suposta
irregularidade, existindo e operando à revelia de licenciamento ambiental
prévio, bem como ante as degradações constatadas em vistorias técnicas por
órgãos ambientais e o crescente potencial risco de danos ambientais cada vez
mais abrangentes. 2. Além do enfoque ambiental contido na demanda, presente
também causa de pedir possessória direcionada à UNIÃO, ante o pleito do
MPF para que fosse o ente condenado à obrigação de fazer consistente no
cancelamento da inscrição de ocupação da Ilha Duas Irmãs em nome do réu,
na adoção de medidas necessárias visando à reintegração da UNIÃO na posse do
imóvel, e na entrega da Ilha Duas Irmãs à administração da APA Cairuçu, unidade
de conservação vinculada ao IBAMA. 3. Tendo em vista a responsabilidade civil
objetiva em matéria ambiental, mostra-se essencial aferir a ocorrência ou não
do dano ambiental, bem como sua quantificação, uma vez que qualquer atividade
potencialmente poluidora já é suficiente à caracterização de nexo causal
entre ela e um efeito ambiental negativo, conferindo-se ao meio ambiente
manto protetor no caso de incerteza por falta de provas cientificamente
relevantes, o que se denomina princípio da precaução. 4. Sobressai a
perícia como importante instrumento dessa aferição, mormente tendo em vista
a complexidade técnica da causa, que demanda conhecimento específico à sua
adequada compreensão. Nessa toada, o CPC/1973, em interpretação a contrario
sensu, dispõe que a produção de prova pericial será realizada sempre que
houver a necessidade de conhecimento especial técnico para a prova do fato,
nos termos do art. 420, parágrafo único, o que ocorre na seara ambiental,
tendo em vista a complexidade do bioma e relações que o envolvem. 5. Apesar
de realizada a perícia no caso, foi ela completamente refutada pelo juízo,
considerando que teria analisado "de forma rasa a existência dos danos
ambientais, apresentando manifestações fática e legalmente equivocadas,
que não guardam a estrita 1 finalidade técnica do laudo ambiental", sem que
tenha havido posterior intimação do perito para novos esclarecimentos ou
complementação do laudo. 6. É verdade que os atos administrativos são dotados
de presunção de legitimidade e veracidade, atributo que se aplica a todos
os documentos públicos juntados aos autos. Contudo, não se mostra razoável
que a procedência dos pedidos fundamente-se exclusivamente em constatações
da parte autora (IBAMA, assistente litisconsorcial substituído no curso
da demanda pelo ICMBio, e Laudo Técnico da APA Cairuçu), sobrepondo-se à
confecção de laudo pericial especializado, cuja natureza é de prova imparcial
produzida por pessoa de confiança do juízo e equidistante das partes. 7. A
matéria afeta aos autos não é unicamente de direito, demandando revolvimento
de questões fáticas cuja análise não se faz possível sem aplicação de
conhecimento técnico especializado, o que foi inclusive requerido pela parte
autora e deferido pelo juízo. 8. O fato de haver rechaço à prova pericial
confeccionada reforça o desacerto do juízo em desconsiderá-la por completo,
uma vez que, pautada a causa em questões fáticas que devem ser comprovadas,
deveria ter aberto prazo para que o perito esclarecesse as questões apontadas
pelas partes, principalmente levando-se em conta o elevado custo da perícia
(R$ 35.000,00 - fl. 1448) e a qualificação técnica do perito, fatores que
reforçam a relevância do laudo pericial para a causa. 9. É possível extrair
a essencialidade da perícia, inclusive, das próprias razões recursais do MPF,
que requer reforma da sentença no que tange à condenação em danos materiais,
fundamentando-a na indenização dos danos não passíveis de compensação, com
valor a ser fixado em fase de liquidação. Ora, além de comprovar a existência e
extensão do dano, a prova pericial seria necessária também à sua quantificação,
de modo que se mostraria incoerente negar carga probatória ao laudo produzido
em fase de instrução, para posteriormente realizar nova perícia com fins
de eventual liquidação por arbitramento. 10. Dos documentos acostados aos
autos é possível extrair todas as informações apontadas pela parte ré que,
se não garantem a certeira regularidade da ocupação, ao menos dão substrato
à confiança legítima por parte do administrado de que permitida sua atuação
(como exemplo, a Certidão n. 1315, de 02/09/1998, e Ofício 345/97, ambos
expedidos pela SPU - fls. 281 e 260/261). 11. Além de cabível análise pericial
acerca da questão possessória, servindo como útil instrumento para aclarar os
fatos, a sentença não enfrentou todos os pontos para chegar a uma conclusão,
mas limitou-se a entender pela irregularidade da ocupação tomando por base
os documentos convenientes a tal conclusão. 12. A região em que inserida a
Ilha Duas Irmãs faz parte da Área de Preservação Ambiental APA/Cairuçu, que
se classifica como Unidade de Conservação de Uso Sustentável. Por outro lado,
em seu decreto instituidor (Dec. n. 89.242/83) foi inserida a qualidade de
zona de vida silvestre, destinada prioritariamente à salvaguarda da biota,
dentro da qual não seriam permitidas edificações, exceto as destinadas à
realização de pesquisas, visando à sua proteção (art. 5º, caput e §1º). 13. A
sentença limitou-se a aplicar o princípio da especialidade para afirmar
que o decreto instituidor da APA Cairuçu sobrepor-se-ia à mencionada lei
federal. Relevante notar, nesse contexto, o possível enquadramento da Ilha
Duas Irmãs como Zona de Expansão Residencial e Turística - ZERT, e não como
Zona de Preservação da Vida Silvestre - ZPVS, alteração essa que tramita
em processo administrativo e que demonstra a relevância da classificação
da área 2 para que seja ponderada a manutenção do desenvolvimento de
determinadas atividades no local. 14. Constatação de que revogada boa parte
do Decreto n. 89.242/83, instituidor da APA Cairuçu, pelo Decreto n. 8.775,
de 11/05/2016 que, ao derrogar os artigos 3º a 13 daquele diploma, acentua
o descompasso entre as características fáticas da área e o ato normativo
que o regia até então. Infere-se, mais uma vez, a importância da perícia
enquanto prova técnica cuja análise sobre o enquadramento do local seria
essencial ao esclarecimento de questões como essa, mostrando-se ineficaz
seu deslinde pautado apenas na legislação, como fez a sentença. 15. Não
parece razoável que o complexo litígio sob análise, envolvendo ao menos
três aspectos distintos e inter-relacionados (ocorrência de possível
dano ambiental, legitimidade da ocupação de imóvel público e modalidade do
regime de proteção ambiental aplicável à área em questão ao longo do tempo),
seja solucionado sem o exame conjunto de tais questões, evidenciando-se a
imprescindibilidade da realização de prova técnica devidamente esclarecedora
acerca de todos os pontos controvertidos, de modo que a solução que venha
a ser adotada corresponda exatamente à situação fático-jurídica apurada no
processo. 16. Não se verifica o aproveitamento do perito em sua plenitude
nos autos. Enquanto profissional qualificado e bem remunerado para o serviço
que se prestou a realizar, deveria ter se manifestado novamente acerca
dos pontos controversos apontados pelas partes após a confecção do laudo,
complementando-o, ou, se fosse o caso, até mesmo realizar nova avaliação
pericial, tudo sob orientação do juízo que, no entanto, limitou-se a
inutilizar a prova, mesmo depois de haver determinado o adiantamento de
metade do valor (R$ 17.500,00). Deve, por isso, ser a sentença anulada,
de modo que se proceda à referida sistemática, nos termos dos arts. 435 e
ss. Do CPC/73. 17. Recursos de apelação da parte ré parcialmente providos
para anular a sentença. Prejudicados os recursos de apelação do MPF, MPRJ,
apelação adesiva do ICMBio e agravos internos da União e do ICMBio.
Ementa
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. QUESTÕES AMBIENTAL E POSSESSÓRIA. OCUPAÇÃO E CONSTRUÇÃO NA
ÁREA DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL CAIRUÇU. LEI 9.985/00. DECRETO-LEI 89.242/83
DERROGADO PELO DECRETO 8.775/2016. COMPLEXIDADE TÉCNICA E CONHECIMENTO
ESPECÍFICO. ARTIGO 420, PARÁGRAFO ÚNICO, I, CPC/73. NECESSIDADE. 1. Ação Civil
Pública ajuizada pelo MPF, instituição com função precípua constitucional de
promover a proteção do meio ambiente e demais interesses difusos e coletivos
(arts. 127 c/c 129, III, CRFB/88), no intuito de obstar construções e a
posterior manutenção de funcionamento do empreendimento, ante sua suposta
irregularidade, existindo e operando à revelia de licenciamento ambiental
prévio, bem como ante as degradações constatadas em vistorias técnicas por
órgãos ambientais e o crescente potencial risco de danos ambientais cada vez
mais abrangentes. 2. Além do enfoque ambiental contido na demanda, presente
também causa de pedir possessória direcionada à UNIÃO, ante o pleito do
MPF para que fosse o ente condenado à obrigação de fazer consistente no
cancelamento da inscrição de ocupação da Ilha Duas Irmãs em nome do réu,
na adoção de medidas necessárias visando à reintegração da UNIÃO na posse do
imóvel, e na entrega da Ilha Duas Irmãs à administração da APA Cairuçu, unidade
de conservação vinculada ao IBAMA. 3. Tendo em vista a responsabilidade civil
objetiva em matéria ambiental, mostra-se essencial aferir a ocorrência ou não
do dano ambiental, bem como sua quantificação, uma vez que qualquer atividade
potencialmente poluidora já é suficiente à caracterização de nexo causal
entre ela e um efeito ambiental negativo, conferindo-se ao meio ambiente
manto protetor no caso de incerteza por falta de provas cientificamente
relevantes, o que se denomina princípio da precaução. 4. Sobressai a
perícia como importante instrumento dessa aferição, mormente tendo em vista
a complexidade técnica da causa, que demanda conhecimento específico à sua
adequada compreensão. Nessa toada, o CPC/1973, em interpretação a contrario
sensu, dispõe que a produção de prova pericial será realizada sempre que
houver a necessidade de conhecimento especial técnico para a prova do fato,
nos termos do art. 420, parágrafo único, o que ocorre na seara ambiental,
tendo em vista a complexidade do bioma e relações que o envolvem. 5. Apesar
de realizada a perícia no caso, foi ela completamente refutada pelo juízo,
considerando que teria analisado "de forma rasa a existência dos danos
ambientais, apresentando manifestações fática e legalmente equivocadas,
que não guardam a estrita 1 finalidade técnica do laudo ambiental", sem que
tenha havido posterior intimação do perito para novos esclarecimentos ou
complementação do laudo. 6. É verdade que os atos administrativos são dotados
de presunção de legitimidade e veracidade, atributo que se aplica a todos
os documentos públicos juntados aos autos. Contudo, não se mostra razoável
que a procedência dos pedidos fundamente-se exclusivamente em constatações
da parte autora (IBAMA, assistente litisconsorcial substituído no curso
da demanda pelo ICMBio, e Laudo Técnico da APA Cairuçu), sobrepondo-se à
confecção de laudo pericial especializado, cuja natureza é de prova imparcial
produzida por pessoa de confiança do juízo e equidistante das partes. 7. A
matéria afeta aos autos não é unicamente de direito, demandando revolvimento
de questões fáticas cuja análise não se faz possível sem aplicação de
conhecimento técnico especializado, o que foi inclusive requerido pela parte
autora e deferido pelo juízo. 8. O fato de haver rechaço à prova pericial
confeccionada reforça o desacerto do juízo em desconsiderá-la por completo,
uma vez que, pautada a causa em questões fáticas que devem ser comprovadas,
deveria ter aberto prazo para que o perito esclarecesse as questões apontadas
pelas partes, principalmente levando-se em conta o elevado custo da perícia
(R$ 35.000,00 - fl. 1448) e a qualificação técnica do perito, fatores que
reforçam a relevância do laudo pericial para a causa. 9. É possível extrair
a essencialidade da perícia, inclusive, das próprias razões recursais do MPF,
que requer reforma da sentença no que tange à condenação em danos materiais,
fundamentando-a na indenização dos danos não passíveis de compensação, com
valor a ser fixado em fase de liquidação. Ora, além de comprovar a existência e
extensão do dano, a prova pericial seria necessária também à sua quantificação,
de modo que se mostraria incoerente negar carga probatória ao laudo produzido
em fase de instrução, para posteriormente realizar nova perícia com fins
de eventual liquidação por arbitramento. 10. Dos documentos acostados aos
autos é possível extrair todas as informações apontadas pela parte ré que,
se não garantem a certeira regularidade da ocupação, ao menos dão substrato
à confiança legítima por parte do administrado de que permitida sua atuação
(como exemplo, a Certidão n. 1315, de 02/09/1998, e Ofício 345/97, ambos
expedidos pela SPU - fls. 281 e 260/261). 11. Além de cabível análise pericial
acerca da questão possessória, servindo como útil instrumento para aclarar os
fatos, a sentença não enfrentou todos os pontos para chegar a uma conclusão,
mas limitou-se a entender pela irregularidade da ocupação tomando por base
os documentos convenientes a tal conclusão. 12. A região em que inserida a
Ilha Duas Irmãs faz parte da Área de Preservação Ambiental APA/Cairuçu, que
se classifica como Unidade de Conservação de Uso Sustentável. Por outro lado,
em seu decreto instituidor (Dec. n. 89.242/83) foi inserida a qualidade de
zona de vida silvestre, destinada prioritariamente à salvaguarda da biota,
dentro da qual não seriam permitidas edificações, exceto as destinadas à
realização de pesquisas, visando à sua proteção (art. 5º, caput e §1º). 13. A
sentença limitou-se a aplicar o princípio da especialidade para afirmar
que o decreto instituidor da APA Cairuçu sobrepor-se-ia à mencionada lei
federal. Relevante notar, nesse contexto, o possível enquadramento da Ilha
Duas Irmãs como Zona de Expansão Residencial e Turística - ZERT, e não como
Zona de Preservação da Vida Silvestre - ZPVS, alteração essa que tramita
em processo administrativo e que demonstra a relevância da classificação
da área 2 para que seja ponderada a manutenção do desenvolvimento de
determinadas atividades no local. 14. Constatação de que revogada boa parte
do Decreto n. 89.242/83, instituidor da APA Cairuçu, pelo Decreto n. 8.775,
de 11/05/2016 que, ao derrogar os artigos 3º a 13 daquele diploma, acentua
o descompasso entre as características fáticas da área e o ato normativo
que o regia até então. Infere-se, mais uma vez, a importância da perícia
enquanto prova técnica cuja análise sobre o enquadramento do local seria
essencial ao esclarecimento de questões como essa, mostrando-se ineficaz
seu deslinde pautado apenas na legislação, como fez a sentença. 15. Não
parece razoável que o complexo litígio sob análise, envolvendo ao menos
três aspectos distintos e inter-relacionados (ocorrência de possível
dano ambiental, legitimidade da ocupação de imóvel público e modalidade do
regime de proteção ambiental aplicável à área em questão ao longo do tempo),
seja solucionado sem o exame conjunto de tais questões, evidenciando-se a
imprescindibilidade da realização de prova técnica devidamente esclarecedora
acerca de todos os pontos controvertidos, de modo que a solução que venha
a ser adotada corresponda exatamente à situação fático-jurídica apurada no
processo. 16. Não se verifica o aproveitamento do perito em sua plenitude
nos autos. Enquanto profissional qualificado e bem remunerado para o serviço
que se prestou a realizar, deveria ter se manifestado novamente acerca
dos pontos controversos apontados pelas partes após a confecção do laudo,
complementando-o, ou, se fosse o caso, até mesmo realizar nova avaliação
pericial, tudo sob orientação do juízo que, no entanto, limitou-se a
inutilizar a prova, mesmo depois de haver determinado o adiantamento de
metade do valor (R$ 17.500,00). Deve, por isso, ser a sentença anulada,
de modo que se proceda à referida sistemática, nos termos dos arts. 435 e
ss. Do CPC/73. 17. Recursos de apelação da parte ré parcialmente providos
para anular a sentença. Prejudicados os recursos de apelação do MPF, MPRJ,
apelação adesiva do ICMBio e agravos internos da União e do ICMBio.
Data do Julgamento
:
30/11/2016
Data da Publicação
:
05/12/2016
Classe/Assunto
:
AC - Apelação - Recursos - Processo Cível e do Trabalho
Órgão Julgador
:
5ª TURMA ESPECIALIZADA
Relator(a)
:
JULIO EMILIO ABRANCHES MANSUR
Comarca
:
TRIBUNAL - SEGUNDA REGIÃO
Tipo
:
Acórdão
Relator para
acórdão
:
JULIO EMILIO ABRANCHES MANSUR
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