TRF2 0004490-71.2001.4.02.5001 00044907120014025001
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESOCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS EM
VIRTUDE DE ALEGADA OCUPAÇÃO CLANDESTINA. MODIFICAÇÃO DA SITUAÇÃO DE FATO
POSTERIORMENTE À SENTENÇA. DIREITO À AUTONOMIA E AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS
INDÍGENAS. PERDA SUPERVENIENTE DO INTERESSE DE AGIR. EXTINÇÃO DO PROCESSO, SEM
RESOLUÇÃO DE MÉRITO. ART. 485, VI, DO NCPC. RECURSO PREJUDICADO. - Cinge-se
a controvérsia ao exame da possibilidade de retirada dos réus Gilson Pereira
Oliveira e Jaime Pereira Oliveira, bem como dos seus respectivos familiares, da
Aldeia indígena de Caieiras Velhas, na Terra indígena Tupinikin, l ocalizada
no Município de Aracruz, no Espírito Santo. - Na espécie, observa-se que
o Governo Federal editou Decreto Presidencial (Decreto 88.926/1983), que
demarcou a terra que hoje forma a Aldeia indígena denominada Caieiras Velhas,
localizada em Aracuz, no Estado do Espírito Santo. - À época da demarcação,
facultou-se às famílias que desejavam sair de lá, ainda que indígenas, a
possibilidade de deixar o local, recebendo uma verba indenizatória pelas
benfeitorias ali realizadas. - Sendo assim, em 02 de agosto de 1984, um
ano após a demarcação das terras que compõem a Aldeia Caieiras Velhas,
os réus foram indenizados pela União Federal, através da FUNAI, por todas
as benfeitorias úteis e necessárias, realizadas de boa-fé pelos mesmos,
razão pela qual optaram p or deixar a terra indígena onde moravam. - O Juízo
a quo proferiu sentença julgando procedente, em parte, o pedido inicial,
determinando a retirada dos dois 1 primeiros réus e de seus familiares da
Aldeia indígena denominada Caieiras Velhas para reassentá-los na localidade
denominada "Irajá" ou em qualquer outra similar, salvo se os próprios réus
optarem por se dirigir a outra localidade de sua preferência, ao fundamento,
em síntese, de que " relaciona-se com a expressa discordância da comunidade
em - com exceção do réu Mauro Pereira Oliveira - tê-los em seu convívio";
que "a desarmonia que o comportamento dos familiares dos réus Gilson Pereira
Oliveira e Jaime Pereira Oliveira trazem à comunidade com a tensão a que
está submetida, tão-somente pela presença dos familiares dos réus" e que "ao
aceitar a indenização não foram os réus, embora desgarrados de seus iguais,
lançados à própria sorte, mas regularmente assentados na localidade de "Irajá",
terras próximas à aldeia, cedidas pelo Governo do Estado do Espírito S anto
e loteadas pelo Governo Federal para esse fim". - No entanto, após a prolação
da sentença, ou seja, quando da intimação pessoal dos réus e do representante
da FUNAI do conteúdo da mesma, foi informado ao Oficial de Justiça que "
as lideranças indígenas daquela comunidade estavam dispostas a aceitar a
presença dos réus na reserva, adotando posição contrária à desocupação e
que provavelmente iriam deliberar de forma definitiva acerca do tema ainda
esta semana, informando o resultado da reunião ao Procurador da República c
ompetente bem como ao Juízo". - O laudo antropológico concluiu que o conflito
em questão teve origem em "disputa política entre duas das principais redes de
parentela da aldeia de Caieiras Velhas", não podendo ser compreendido como um
fato isolado e que, "embora continuem a existir diferentes percepções sobre
o conflito aqui analisado, entendo que a comunidade está buscando negociar
politicamente uma solução para o caso de modo a preservar a unidade do
grupo, evitando que a disputa entre as facções/parentelas se converta em uma
divisão de fato da c omunidade indígena de Caieiras Velhas" (fls. 343/352). -
Dessarte, diante do referido quadro, isto é, dando conta de que a comunidade
indígena permanece favorável à manutenção dos réus dentro de seu território,
desde que adotadas certas 2 cautelas a serem definidas, o MPF manifestou-se
no sentido de que a melhor solução seria buscar a celebração de um Termo de
Ajustamento de Conduta - TAC (fl. 358), o que, entretanto, ao que tudo indica,
não ocorreu ou, ao menos, não restou c omprovado nos autos. - Evidencia-se
a existência de duas questões relevantes no caso em tela. A primeira é
o reconhecimento de que os réus são, de fato, índios, conforme comprovado
através das certidões de nascimento (fls 91/107), bem como pelas declarações
das lideranças indígenas e pela própria c omunidade. - Nessa mesma perpectiva,
insta transcrever trecho do parecer do ilustre parquet federal:"embora a
Ação tenha sido proposta sob a perspectiva de que os Réus seriam pessoas
estranhas à Comunidade e que por isso haveria base jurídica para determinar
a sua desintrusão, com a instrução dos autos, restou incontroverso o fato
de que os Srs. Gilson e Jaime e suas respectivas famílias são indígenas e
pertencem à C omunidade de Caieiras Velhas". - A segunda questão é a falta
de desejo da comunidade indígena na expulsão dos réus, o que se evidencia
pelos termos do abaixo - assinado dos indígenas que moram na reserva,
acostado aos autos às fls. 279/286 e 298/306, bem como a carta do cacique,
Sr José Sizenando, informando que n ão está de acordo com a saída dos réus
(fls. 291/292). - Por oportuno, em se tratando de povo indígena, como bem
fundamentado pelo MPF, em seu parecer de fls. 425/432," o direito à autonomia
diz respeito à capacidade dos povos indígenas se autogovernarem e de manter
sua identidade cultural sem sofrer ingerência do Estado (...) a autonomia dos
povos indígenas identifica-se com o seu direito de autodeterminação interna",
considerando, ainda que "a autonomia dos povos indígenas em relação às questões
específicas, encontra-se fundamento constitucional no artigo 231, caput da
Constituição Federal, que reconhece organização social, costumes, cresças e
tradições dos povos indígenas". Outrossim, salienta que "ainda que o MPF tenha
legitimidade para agir como substituto processual da Comunidade Indígena, 3
apenas nas hipóteses excepcionalíssimas é que se admite que sua atuação seja
contrária à autonomia da Comunidade, como nos casos de graves violações de
direitos fundamentais de indivíduos indígenas pela própria Comunidade, o que
não é o c aso em exame". - No caso em tela, o MPF destaca que "a Comunidade
Indígena de Caieiras Velhas não deseja resolver os conflitos internos por meio
de expulsão dos seus membros, mas através do consenso e da utilização dos
instrumentos de repressão previstos no seu regulamento interno. Deste modo,
devem ser p riorizados os métodos de repressão internos da Comunidade." -
Os índios possuem o direito fundamental e humano à autodeterminação como
forma de garantia para o exercício pleno e manutenção de suas organizações
sociais, costumes, línguas, crenças e tradições, nos termos do art. 231,
da C F/88 e da Convenção 169 da OIT. - Diante dos fatos ocorridos após a
prolação da sentença, i mpõe-se reconhecer a ausência do interesse de agir. -
Como se sabe, o interesse de agir surge da necessidade de obter através do
processo a tutela e proteção ao interesse substancial (ou primário). Como
a doutrina processual civil tem considerado, "localiza-se o interesse
processual não apenas na utilização, mas especificamente na necessidade do
processo como remédio apto à aplicação do direito objetivo no caso concreto,
pois a tutela jurisdicional não é jamais outorgado em uma necessidade"
(Humberto Theodoro Junior). " Existe interesse processual quando a parte
tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda,
quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade do ponto
de vista prático" (Nelson Nery Junior e Rosa Maria A ndrade Nery). - Desta
forma, restando ausente o interesse jurídico, também chamado de interesse de
agir, que como se viu, deve estar presente durante todo o curso do processo,
não mais terá utilidade a prestação jurisdicional, circunstância que atrai a
norma do art. 493, do Novo Código de Processo Civil. - No caso, com base no
direito à autononia e autodeterminação dos povos indígenas e, tendo em vista
as manifestações 4 expressas de vontade constantes dos autos, no sentido
de que não há mais interesse da comunidade indígena em expulsar os réus de
seu território, conforme se verifica da declaração firmada pela liderança
indígena, cacique Sr José Sizenando, bem como dos próprios indígenas que vivem
na aldeia através de abaixo - assinado, evidencia-se que a presente demanda
encontra-se, irremediavelmente, prejudicada, por perda s uperveniente de seu
objeto. - Processo extinto, sem resolução de mérito, na forma do art.485,
VI, do CPC/2015, restando, por conseguinte, PREJUDICADO o exame do recurso
de apelação, sem condenação em custas e honorários advocatícios, nos termos
do art. 18 da L ei 7.347/85.
Ementa
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESOCUPAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS EM
VIRTUDE DE ALEGADA OCUPAÇÃO CLANDESTINA. MODIFICAÇÃO DA SITUAÇÃO DE FATO
POSTERIORMENTE À SENTENÇA. DIREITO À AUTONOMIA E AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS
INDÍGENAS. PERDA SUPERVENIENTE DO INTERESSE DE AGIR. EXTINÇÃO DO PROCESSO, SEM
RESOLUÇÃO DE MÉRITO. ART. 485, VI, DO NCPC. RECURSO PREJUDICADO. - Cinge-se
a controvérsia ao exame da possibilidade de retirada dos réus Gilson Pereira
Oliveira e Jaime Pereira Oliveira, bem como dos seus respectivos familiares, da
Aldeia indígena de Caieiras Velhas, na Terra indígena Tupinikin, l ocalizada
no Município de Aracruz, no Espírito Santo. - Na espécie, observa-se que
o Governo Federal editou Decreto Presidencial (Decreto 88.926/1983), que
demarcou a terra que hoje forma a Aldeia indígena denominada Caieiras Velhas,
localizada em Aracuz, no Estado do Espírito Santo. - À época da demarcação,
facultou-se às famílias que desejavam sair de lá, ainda que indígenas, a
possibilidade de deixar o local, recebendo uma verba indenizatória pelas
benfeitorias ali realizadas. - Sendo assim, em 02 de agosto de 1984, um
ano após a demarcação das terras que compõem a Aldeia Caieiras Velhas,
os réus foram indenizados pela União Federal, através da FUNAI, por todas
as benfeitorias úteis e necessárias, realizadas de boa-fé pelos mesmos,
razão pela qual optaram p or deixar a terra indígena onde moravam. - O Juízo
a quo proferiu sentença julgando procedente, em parte, o pedido inicial,
determinando a retirada dos dois 1 primeiros réus e de seus familiares da
Aldeia indígena denominada Caieiras Velhas para reassentá-los na localidade
denominada "Irajá" ou em qualquer outra similar, salvo se os próprios réus
optarem por se dirigir a outra localidade de sua preferência, ao fundamento,
em síntese, de que " relaciona-se com a expressa discordância da comunidade
em - com exceção do réu Mauro Pereira Oliveira - tê-los em seu convívio";
que "a desarmonia que o comportamento dos familiares dos réus Gilson Pereira
Oliveira e Jaime Pereira Oliveira trazem à comunidade com a tensão a que
está submetida, tão-somente pela presença dos familiares dos réus" e que "ao
aceitar a indenização não foram os réus, embora desgarrados de seus iguais,
lançados à própria sorte, mas regularmente assentados na localidade de "Irajá",
terras próximas à aldeia, cedidas pelo Governo do Estado do Espírito S anto
e loteadas pelo Governo Federal para esse fim". - No entanto, após a prolação
da sentença, ou seja, quando da intimação pessoal dos réus e do representante
da FUNAI do conteúdo da mesma, foi informado ao Oficial de Justiça que "
as lideranças indígenas daquela comunidade estavam dispostas a aceitar a
presença dos réus na reserva, adotando posição contrária à desocupação e
que provavelmente iriam deliberar de forma definitiva acerca do tema ainda
esta semana, informando o resultado da reunião ao Procurador da República c
ompetente bem como ao Juízo". - O laudo antropológico concluiu que o conflito
em questão teve origem em "disputa política entre duas das principais redes de
parentela da aldeia de Caieiras Velhas", não podendo ser compreendido como um
fato isolado e que, "embora continuem a existir diferentes percepções sobre
o conflito aqui analisado, entendo que a comunidade está buscando negociar
politicamente uma solução para o caso de modo a preservar a unidade do
grupo, evitando que a disputa entre as facções/parentelas se converta em uma
divisão de fato da c omunidade indígena de Caieiras Velhas" (fls. 343/352). -
Dessarte, diante do referido quadro, isto é, dando conta de que a comunidade
indígena permanece favorável à manutenção dos réus dentro de seu território,
desde que adotadas certas 2 cautelas a serem definidas, o MPF manifestou-se
no sentido de que a melhor solução seria buscar a celebração de um Termo de
Ajustamento de Conduta - TAC (fl. 358), o que, entretanto, ao que tudo indica,
não ocorreu ou, ao menos, não restou c omprovado nos autos. - Evidencia-se
a existência de duas questões relevantes no caso em tela. A primeira é
o reconhecimento de que os réus são, de fato, índios, conforme comprovado
através das certidões de nascimento (fls 91/107), bem como pelas declarações
das lideranças indígenas e pela própria c omunidade. - Nessa mesma perpectiva,
insta transcrever trecho do parecer do ilustre parquet federal:"embora a
Ação tenha sido proposta sob a perspectiva de que os Réus seriam pessoas
estranhas à Comunidade e que por isso haveria base jurídica para determinar
a sua desintrusão, com a instrução dos autos, restou incontroverso o fato
de que os Srs. Gilson e Jaime e suas respectivas famílias são indígenas e
pertencem à C omunidade de Caieiras Velhas". - A segunda questão é a falta
de desejo da comunidade indígena na expulsão dos réus, o que se evidencia
pelos termos do abaixo - assinado dos indígenas que moram na reserva,
acostado aos autos às fls. 279/286 e 298/306, bem como a carta do cacique,
Sr José Sizenando, informando que n ão está de acordo com a saída dos réus
(fls. 291/292). - Por oportuno, em se tratando de povo indígena, como bem
fundamentado pelo MPF, em seu parecer de fls. 425/432," o direito à autonomia
diz respeito à capacidade dos povos indígenas se autogovernarem e de manter
sua identidade cultural sem sofrer ingerência do Estado (...) a autonomia dos
povos indígenas identifica-se com o seu direito de autodeterminação interna",
considerando, ainda que "a autonomia dos povos indígenas em relação às questões
específicas, encontra-se fundamento constitucional no artigo 231, caput da
Constituição Federal, que reconhece organização social, costumes, cresças e
tradições dos povos indígenas". Outrossim, salienta que "ainda que o MPF tenha
legitimidade para agir como substituto processual da Comunidade Indígena, 3
apenas nas hipóteses excepcionalíssimas é que se admite que sua atuação seja
contrária à autonomia da Comunidade, como nos casos de graves violações de
direitos fundamentais de indivíduos indígenas pela própria Comunidade, o que
não é o c aso em exame". - No caso em tela, o MPF destaca que "a Comunidade
Indígena de Caieiras Velhas não deseja resolver os conflitos internos por meio
de expulsão dos seus membros, mas através do consenso e da utilização dos
instrumentos de repressão previstos no seu regulamento interno. Deste modo,
devem ser p riorizados os métodos de repressão internos da Comunidade." -
Os índios possuem o direito fundamental e humano à autodeterminação como
forma de garantia para o exercício pleno e manutenção de suas organizações
sociais, costumes, línguas, crenças e tradições, nos termos do art. 231,
da C F/88 e da Convenção 169 da OIT. - Diante dos fatos ocorridos após a
prolação da sentença, i mpõe-se reconhecer a ausência do interesse de agir. -
Como se sabe, o interesse de agir surge da necessidade de obter através do
processo a tutela e proteção ao interesse substancial (ou primário). Como
a doutrina processual civil tem considerado, "localiza-se o interesse
processual não apenas na utilização, mas especificamente na necessidade do
processo como remédio apto à aplicação do direito objetivo no caso concreto,
pois a tutela jurisdicional não é jamais outorgado em uma necessidade"
(Humberto Theodoro Junior). " Existe interesse processual quando a parte
tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda,
quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade do ponto
de vista prático" (Nelson Nery Junior e Rosa Maria A ndrade Nery). - Desta
forma, restando ausente o interesse jurídico, também chamado de interesse de
agir, que como se viu, deve estar presente durante todo o curso do processo,
não mais terá utilidade a prestação jurisdicional, circunstância que atrai a
norma do art. 493, do Novo Código de Processo Civil. - No caso, com base no
direito à autononia e autodeterminação dos povos indígenas e, tendo em vista
as manifestações 4 expressas de vontade constantes dos autos, no sentido
de que não há mais interesse da comunidade indígena em expulsar os réus de
seu território, conforme se verifica da declaração firmada pela liderança
indígena, cacique Sr José Sizenando, bem como dos próprios indígenas que vivem
na aldeia através de abaixo - assinado, evidencia-se que a presente demanda
encontra-se, irremediavelmente, prejudicada, por perda s uperveniente de seu
objeto. - Processo extinto, sem resolução de mérito, na forma do art.485,
VI, do CPC/2015, restando, por conseguinte, PREJUDICADO o exame do recurso
de apelação, sem condenação em custas e honorários advocatícios, nos termos
do art. 18 da L ei 7.347/85.
Data do Julgamento
:
29/07/2016
Data da Publicação
:
23/08/2016
Classe/Assunto
:
AC - Apelação - Recursos - Processo Cível e do Trabalho
Órgão Julgador
:
8ª TURMA ESPECIALIZADA
Relator(a)
:
VERA LÚCIA LIMA
Comarca
:
TRIBUNAL - SEGUNDA REGIÃO
Tipo
:
Acórdão
Relator para
acórdão
:
VERA LÚCIA LIMA
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