TRF2 0021779-90.2010.4.02.5101 00217799020104025101
DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. INTERNAÇÃO NO INCA. LESÕES CEREBRAIS
E DE COLUNA. DEVER CONSTITUCIONAL. OBRIGAÇÃO DO ESTADO DE ASSEGURAR ÀS
PESSOAS O ACESSO À SAÚDE. PROVA CABAL SOBRE A ENFERMIDADE E NECESSIDADE DO
TRATAMENTO. INGERÊNCIA EM FILA DE ESPERA. POSSIBILIDADE. AUTOR JÁ ATENDIDA NO
NOSOCÔMIO. 1 - Trata-se de apelação cível interposta em face da sentença que
julgou procedente a pretensão da Autor de ser determinada a sua internação em
unidade do INCA para a realização de tratamento oncológico de que necessita. As
razões de apelo nos seguintes pontos: que é descabida a condenação a realizar
o atendimento na rede privada, em vista da existência de tratamento adequado
nos hospitais públicos; que o Autor seria privilegiado por poder se socorrer
do Judiciário para conseguir burlar a ordem de espera por internação,
prejudicando pacientes com estado de saúde até mesmo mais grave que o seu;
que a atuação do Judiciário interfere com as políticas de saúde existentes,
adotando soluções casuísticas, o que vulnera a isonomia quando considerado o
quadro social por inteiro; que existem centros especializados em tratamento
de câncer e que somente o atendimento nestes centros poderia referendar o
tratamento pretendido pelo Autor, o que dependerá de fatores específicos,
não cabendo ao Judiciário tomar decisões na área de saúde, sem que considere
a reserva do possível. 2- A Constituição de 1988, ao instituir o sistema
único de saúde, erigiu à condição de princípio o atendimento integral
(art. 198, II), concretizando o compromisso pleno e eficaz do Estado com
a promoção da saúde, em todos os seus aspectos, mediante a garantia do
acesso a hospitais, tecnologias, tratamentos, equipamentos, terapias e
medicamentos, e o que mais necessário à tutela do direito fundamental. 3-
Os princípios invocados pelo Poder Público, inseridos no plano da legalidade,
discricionariedade e economicidade de ações e custos, mesmo como emanações do
princípio da separação dos Poderes, não podem prevalecer sobre valores como
vida, dignidade da pessoa humana, proteção e solidariedade social, bases e
fundamentos de nossa civilização. 4 - Sendo a preservação e restauração da
saúde necessárias a uma vida digna, o Judiciário tende a buscar garantir
a dignidade do cidadão-paciente, por entender que o Executivo descumpriu
a função constitucional a que foi chamado de ser, em primeiro lugar, o
provedor das políticas públicas de saúde. Subjaz a esta posição a noção de
um mínimo existencial que, acaso negado pelo Executivo, deve ser afiançado
pelo Judiciário. Dentro desse parâmetro, o Poder Público não pode alegar
que priorizar a vida de um só cidadão prejudicará o atendimento de vários
outros, ao argumento de escassez de recursos financeiros, pois o direito ao
mínimo existencial se imporia perante o argumento da escassez de recursos
e da reserva do possível. Precedente: STJ, Recurso Especial nº 1.185.474,
Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 20/04/2010, T2 -
SEGUNDA TURMA. 1 5 - Segundo relatório de 2013 do Tribunal de Contas da
União de fiscalização do sistema de saúde (TC 032.624/2013-1), ao menos no
âmbito federal, apresenta-se um dado relevante: as dotações orçamentárias
na área de saúde não são integralmente utilizadas pelo Poder Executivo. Esta
constatação indica que, na verdade, ocorre uma omissão do Executivo, em área
bastante sensível de política pública (por lidar com o bem vida), quanto
à utilização de recursos que lhe são disponibilizados para este fim. Nesse
sentido, o reconhecimento judicial de que há a necessidade de uma determinada
ação de saúde para um indivíduo específico não se caracteriza, em princípio,
como ingerência indevida do Judiciário em outros poderes, mas atuação para dar
efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º,
caput e art. 196). 6 - Cabe à Administração estabelecer os critérios de
uso dos leitos, mas deve a instituição apresentar de forma concreta suas
prioridades, dando condições de decisão ao Magistrado, sendo inadmissível a
alegação genérica quanto à falta de leitos e/ou inobservância da ordem de
prioridade. 7 - No caso dos autos, foi deferida a antecipação dos efeitos
da tutela para que o INCA tomasse providências para o tratamento do Autor,
com sua internação naquele nosocômio. A decisão não foi impugnada com o
recurso cabível e, embora inicialmente não tenha sido cumprida, o Autor
foi posteriormente convocado e encontra-se em tratamento na instituição. A
preterição ou ingerência indevida na ordem dos atendimentos não restou
demonstrada, pelo contrário, o óbice inicial (ausência de leitos) foi
resolvido, sem notícia de preterição em fila de espera. 8 - A regulação do
uso de leitos é sempre dinâmica, sujeita a ser alterada para atendimento de
caso mais prioritário e urgente, o que não fere a isonomia. O princípio da
igualdade a ser observado pela Administração não deve servir de justificativa
para negar direito subjetivo fundamental. O equívoco está na Administração não
reservar do orçamento recursos suficientes para o atendimento da população e
não no Judiciário, de acertar a atuação administrativa pontualmente, através
da provocação do cidadão, quando verifica que há perigo e necessidade de
atendimento. 9 - A escassez de recursos não é óbice ao atendimento pleiteado,
que pode ser fornecido até mesmo na rede privada, às expensas do poder público
e que não é do Autor o ônus de demonstrar que sua situação de saúde é mais
severa do que a daqueles que esperam pelo mesmo tratamento. Há provas nos
autos quanto à existência da doença (laudo emitido pelo Hospital Souza Aguiar)
e pelo próprio INCA, que nos exames preliminares do Autor, já identificou a
necessidade do tratamento pleiteado. 10 - Estão minimamente atendidas as
recomendações editadas no estudo sobre Judicialização da Saúde realizado
na Escola de Magistratura Regional da 2ª Região e enunciados relacionados
à prestação de serviços de saúde. 11 - A improcedência do pedido, neste
estágio, não teria qualquer consequência, nem para o Autor, nem para o suposto
prejudicado na ordem de atendimento, eis que seria inviável que a liminar
antes deferida perdesse sua eficácia para deixar de prestar o atendimento
necessário à saúde do Autor. 12 - A melhor solução consiste na manutenção
da situação jurídica determinada pela medida de urgência deferida. Pior
do que tutelar o direito à saúde do Autor, em detrimento de outras pessoas
que supostamente aguardam em lista de espera o atendimento oncológico, é não
tutelar direito algum, quando está claro dos autos que a suposta ordem já foi
reavaliada pela própria Administração e encontra-se o Autor sob o tratamento
de que necessita. Tirar-lhe a condição de completá-lo é medida que atua
em prejuízo do princípio da eficiência e nada contribui para a reversão de
eventual violação ao princípio da isonomia, violação, que reforço, não restou
comprovada. 13 - Recurso e remessa necessária desprovidos. Sentença mantida. 2
Ementa
DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. INTERNAÇÃO NO INCA. LESÕES CEREBRAIS
E DE COLUNA. DEVER CONSTITUCIONAL. OBRIGAÇÃO DO ESTADO DE ASSEGURAR ÀS
PESSOAS O ACESSO À SAÚDE. PROVA CABAL SOBRE A ENFERMIDADE E NECESSIDADE DO
TRATAMENTO. INGERÊNCIA EM FILA DE ESPERA. POSSIBILIDADE. AUTOR JÁ ATENDIDA NO
NOSOCÔMIO. 1 - Trata-se de apelação cível interposta em face da sentença que
julgou procedente a pretensão da Autor de ser determinada a sua internação em
unidade do INCA para a realização de tratamento oncológico de que necessita. As
razões de apelo nos seguintes pontos: que é descabida a condenação a realizar
o atendimento na rede privada, em vista da existência de tratamento adequado
nos hospitais públicos; que o Autor seria privilegiado por poder se socorrer
do Judiciário para conseguir burlar a ordem de espera por internação,
prejudicando pacientes com estado de saúde até mesmo mais grave que o seu;
que a atuação do Judiciário interfere com as políticas de saúde existentes,
adotando soluções casuísticas, o que vulnera a isonomia quando considerado o
quadro social por inteiro; que existem centros especializados em tratamento
de câncer e que somente o atendimento nestes centros poderia referendar o
tratamento pretendido pelo Autor, o que dependerá de fatores específicos,
não cabendo ao Judiciário tomar decisões na área de saúde, sem que considere
a reserva do possível. 2- A Constituição de 1988, ao instituir o sistema
único de saúde, erigiu à condição de princípio o atendimento integral
(art. 198, II), concretizando o compromisso pleno e eficaz do Estado com
a promoção da saúde, em todos os seus aspectos, mediante a garantia do
acesso a hospitais, tecnologias, tratamentos, equipamentos, terapias e
medicamentos, e o que mais necessário à tutela do direito fundamental. 3-
Os princípios invocados pelo Poder Público, inseridos no plano da legalidade,
discricionariedade e economicidade de ações e custos, mesmo como emanações do
princípio da separação dos Poderes, não podem prevalecer sobre valores como
vida, dignidade da pessoa humana, proteção e solidariedade social, bases e
fundamentos de nossa civilização. 4 - Sendo a preservação e restauração da
saúde necessárias a uma vida digna, o Judiciário tende a buscar garantir
a dignidade do cidadão-paciente, por entender que o Executivo descumpriu
a função constitucional a que foi chamado de ser, em primeiro lugar, o
provedor das políticas públicas de saúde. Subjaz a esta posição a noção de
um mínimo existencial que, acaso negado pelo Executivo, deve ser afiançado
pelo Judiciário. Dentro desse parâmetro, o Poder Público não pode alegar
que priorizar a vida de um só cidadão prejudicará o atendimento de vários
outros, ao argumento de escassez de recursos financeiros, pois o direito ao
mínimo existencial se imporia perante o argumento da escassez de recursos
e da reserva do possível. Precedente: STJ, Recurso Especial nº 1.185.474,
Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 20/04/2010, T2 -
SEGUNDA TURMA. 1 5 - Segundo relatório de 2013 do Tribunal de Contas da
União de fiscalização do sistema de saúde (TC 032.624/2013-1), ao menos no
âmbito federal, apresenta-se um dado relevante: as dotações orçamentárias
na área de saúde não são integralmente utilizadas pelo Poder Executivo. Esta
constatação indica que, na verdade, ocorre uma omissão do Executivo, em área
bastante sensível de política pública (por lidar com o bem vida), quanto
à utilização de recursos que lhe são disponibilizados para este fim. Nesse
sentido, o reconhecimento judicial de que há a necessidade de uma determinada
ação de saúde para um indivíduo específico não se caracteriza, em princípio,
como ingerência indevida do Judiciário em outros poderes, mas atuação para dar
efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º,
caput e art. 196). 6 - Cabe à Administração estabelecer os critérios de
uso dos leitos, mas deve a instituição apresentar de forma concreta suas
prioridades, dando condições de decisão ao Magistrado, sendo inadmissível a
alegação genérica quanto à falta de leitos e/ou inobservância da ordem de
prioridade. 7 - No caso dos autos, foi deferida a antecipação dos efeitos
da tutela para que o INCA tomasse providências para o tratamento do Autor,
com sua internação naquele nosocômio. A decisão não foi impugnada com o
recurso cabível e, embora inicialmente não tenha sido cumprida, o Autor
foi posteriormente convocado e encontra-se em tratamento na instituição. A
preterição ou ingerência indevida na ordem dos atendimentos não restou
demonstrada, pelo contrário, o óbice inicial (ausência de leitos) foi
resolvido, sem notícia de preterição em fila de espera. 8 - A regulação do
uso de leitos é sempre dinâmica, sujeita a ser alterada para atendimento de
caso mais prioritário e urgente, o que não fere a isonomia. O princípio da
igualdade a ser observado pela Administração não deve servir de justificativa
para negar direito subjetivo fundamental. O equívoco está na Administração não
reservar do orçamento recursos suficientes para o atendimento da população e
não no Judiciário, de acertar a atuação administrativa pontualmente, através
da provocação do cidadão, quando verifica que há perigo e necessidade de
atendimento. 9 - A escassez de recursos não é óbice ao atendimento pleiteado,
que pode ser fornecido até mesmo na rede privada, às expensas do poder público
e que não é do Autor o ônus de demonstrar que sua situação de saúde é mais
severa do que a daqueles que esperam pelo mesmo tratamento. Há provas nos
autos quanto à existência da doença (laudo emitido pelo Hospital Souza Aguiar)
e pelo próprio INCA, que nos exames preliminares do Autor, já identificou a
necessidade do tratamento pleiteado. 10 - Estão minimamente atendidas as
recomendações editadas no estudo sobre Judicialização da Saúde realizado
na Escola de Magistratura Regional da 2ª Região e enunciados relacionados
à prestação de serviços de saúde. 11 - A improcedência do pedido, neste
estágio, não teria qualquer consequência, nem para o Autor, nem para o suposto
prejudicado na ordem de atendimento, eis que seria inviável que a liminar
antes deferida perdesse sua eficácia para deixar de prestar o atendimento
necessário à saúde do Autor. 12 - A melhor solução consiste na manutenção
da situação jurídica determinada pela medida de urgência deferida. Pior
do que tutelar o direito à saúde do Autor, em detrimento de outras pessoas
que supostamente aguardam em lista de espera o atendimento oncológico, é não
tutelar direito algum, quando está claro dos autos que a suposta ordem já foi
reavaliada pela própria Administração e encontra-se o Autor sob o tratamento
de que necessita. Tirar-lhe a condição de completá-lo é medida que atua
em prejuízo do princípio da eficiência e nada contribui para a reversão de
eventual violação ao princípio da isonomia, violação, que reforço, não restou
comprovada. 13 - Recurso e remessa necessária desprovidos. Sentença mantida. 2
Data do Julgamento
:
10/03/2016
Data da Publicação
:
15/03/2016
Classe/Assunto
:
APELREEX - Apelação / Reexame Necessário - Recursos - Processo Cível e
do Trabalho
Órgão Julgador
:
5ª TURMA ESPECIALIZADA
Relator(a)
:
RICARDO PERLINGEIRO
Comarca
:
TRIBUNAL - SEGUNDA REGIÃO
Tipo
:
Acórdão
Relator para
acórdão
:
MARCUS ABRAHAM
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