TRF3 0000007-96.2012.4.03.6128 00000079620124036128
DIREITO INTERNACIONAL E PROCESSUAL CIVIL. CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS
DO SEQUESTRO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS. DECRETO Nº 3.413/2000. COOPERAÇÃO
JURÍDICA ENTRE ESTADOS SOBERANOS. AÇÃO DE BUSCA, APREENSÃO E RESTITUIÇÃO
PROPOSTA PELO GENITOR. PESSOA COM SÍNDROME DE DOWN. MAIORIDADE CIVIL
ALCANÇADA. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. PLENA CAPACIDADE
CIVIL. MANIFESTA PERDA DO OBJETO. PROCESSO EXTINTO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO.
I. Cinge-se a controvérsia à aplicação da Convenção de Haia sobre
os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, ratificada pelo
ordenamento jurídico brasileiro vinte anos após sua conclusão mediante
a edição do Decreto nº 3.413, de 14/04/2000, que entrou em vigor na data
de sua publicação no DOU em 17/04/2000.
II. Com efeito, a referida Convenção, que é a mais importante a dispor
sobre os direitos das crianças, integrando-se ao contexto da Convenção
Interamericana sobre Restituição de Menores, tem como escopo a tutela
do princípio do melhor interesse da criança. Esse princípio, segundo o
entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal,
teve sua origem na Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada
pela Organização das Nações Unidas - ONU no ano de 1959. O best interest of
the child, ou princípio do melhor interesse da criança, deve ser entendido
tendo em vista as verdadeiras necessidades da criança envolvida. O bem
estar da criança deverá ser garantido, deixando qualquer interesse relativo
aos pais para o segundo plano. Ou seja, o interesse da criança deverá se
sobrepor ao de seus pais, quando em colidência ou quando inconciliáveis.
III. No caso em tela, parece inquestionável a prática de ato ilícito por
parte da requerida, E. A. R., correspondente, especificamente, à retirada
da menor da Alemanha, país de residência habitual da família, sem o
consentimento do pai J. J. M., diante do descumprimento dos termos fixados
na sentença do processo nº 35/07, proferida pelo Tribunal da Comarca de
Starnberg, em que restou assim estabelecido: "O pedido da mãe de lhe ser
transferido o direito de determinar o lugar de residência da filha legítima
comum, E. M., nascida em 26.2.2000, é rejeitado.".
IV. Assim sendo, em linha de princípio, o caso em questão enquadra-se
na hipótese prevista no artigo 12 da Convenção, que prevê a imediata
devolução da criança quando tiver decorrido menos de 1 (um) ano entre a
data da transferência ou retenção indevida e a data de início do processo
de repatriação no Estado que estiver abrigando a criança.
V. Não obstante, ainda que não tenha decorrido o prazo de 1 (um) ano
estabelecido, saliente-se que a Convenção de Haia autoriza a manutenção
da criança no país em que estiver abrigada se o retorno comprometer o seu
bem-estar físico ou psicológico, priorizando, portanto, o seu interesse
em detrimento da vontade dos pais. Tal assertiva consta do artigo 13 da
Convenção onde se prevê, inclusive, a possibilidade de oitiva da própria
criança quando esta já atingiu certo grau de maturidade.
VI. Portanto, o deslinde da questão posta nos autos passa para além da
aplicação literal da letra da lei, exigindo exame mais aprofundado sobre a
situação das crianças para que se possa aferir, na redação do próprio
artigo 12 da Convenção, se ambas encontram-se integradas no meio social
em que atualmente vivem, pois, como bem assentado no julgamento do REsp
nº 1.239.777/PE, a Convenção de Haia, não obstante apresente reprimenda
rigorosa ao sequestro internacional de menores com determinação expressa
de retorno destes ao país de origem, garante o bem estar e a integridade
física e emocional da criança, o que deve ser avaliado de forma criteriosa.
VII. Contudo, o presente caso traz uma particularidade levantada pela União
Federal e acolhida pelo Ministério Público: a jovem Elena Marz, nascida
em 26 de fevereiro de 2000, já completou 18 (dezoito) anos de idade, de
modo que restam cessados os efeitos da Convenção sobre a adolescente,
conforme consta expressamente em seu artigo 4º.
VIII. Todavia, a genitora da jovem Elena Marz alega que a proteção prevista
às crianças e adolescentes com até 16 (dezesseis) anos de idade pela
Convenção de Haia deve ser estendida e aplicada ao presente caso devido
ao fato de Elena ser portadora de necessidades especiais (Síndrome de Down).
IX. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, instituído pela Lei nº 13.146,
de 6 de julho de 2015, com base no texto da Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, homologada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas em 13 de dezembro de 2006, de maneira bastante salutar, retirou as
pessoas portadoras de deficiência da égide do artigo 3º do Código Civil
e realocou-as no artigo 5º do mesmo Código, estabelecendo a sua plena
capacidade civil após os 18 (dezoito) anos completos.
X. Não bastasse tal avanço, o Estatuto ainda foi além e dispôs, em seu
artigo 6º, de forma não exaustiva, os atos da vida civil que as pessoa
com deficiência estão aptas a exercer no gozo de sua plena capacidade civil.
XI. Assim sendo, considerando o fato do Estado brasileiro reconhecer a
plena capacidade civil das pessoas com Síndrome de Down, a continuidade da
presente ação resta prejudicada, tendo em vista que não é possível a
busca e apreensão coercitivas de pessoas capazes.
XII. Processo extinto, sem resolução do mérito, em face da manifesta
perda do objeto da ação. Recursos interpostos prejudicados.
Ementa
DIREITO INTERNACIONAL E PROCESSUAL CIVIL. CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS
DO SEQUESTRO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS. DECRETO Nº 3.413/2000. COOPERAÇÃO
JURÍDICA ENTRE ESTADOS SOBERANOS. AÇÃO DE BUSCA, APREENSÃO E RESTITUIÇÃO
PROPOSTA PELO GENITOR. PESSOA COM SÍNDROME DE DOWN. MAIORIDADE CIVIL
ALCANÇADA. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. PLENA CAPACIDADE
CIVIL. MANIFESTA PERDA DO OBJETO. PROCESSO EXTINTO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO.
I. Cinge-se a controvérsia à aplicação da Convenção de Haia sobre
os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, ratificada pelo
ordenamento jurídico brasileiro vinte anos após sua conclusão mediante
a edição do Decreto nº 3.413, de 14/04/2000, que entrou em vigor na data
de sua publicação no DOU em 17/04/2000.
II. Com efeito, a referida Convenção, que é a mais importante a dispor
sobre os direitos das crianças, integrando-se ao contexto da Convenção
Interamericana sobre Restituição de Menores, tem como escopo a tutela
do princípio do melhor interesse da criança. Esse princípio, segundo o
entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal,
teve sua origem na Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada
pela Organização das Nações Unidas - ONU no ano de 1959. O best interest of
the child, ou princípio do melhor interesse da criança, deve ser entendido
tendo em vista as verdadeiras necessidades da criança envolvida. O bem
estar da criança deverá ser garantido, deixando qualquer interesse relativo
aos pais para o segundo plano. Ou seja, o interesse da criança deverá se
sobrepor ao de seus pais, quando em colidência ou quando inconciliáveis.
III. No caso em tela, parece inquestionável a prática de ato ilícito por
parte da requerida, E. A. R., correspondente, especificamente, à retirada
da menor da Alemanha, país de residência habitual da família, sem o
consentimento do pai J. J. M., diante do descumprimento dos termos fixados
na sentença do processo nº 35/07, proferida pelo Tribunal da Comarca de
Starnberg, em que restou assim estabelecido: "O pedido da mãe de lhe ser
transferido o direito de determinar o lugar de residência da filha legítima
comum, E. M., nascida em 26.2.2000, é rejeitado.".
IV. Assim sendo, em linha de princípio, o caso em questão enquadra-se
na hipótese prevista no artigo 12 da Convenção, que prevê a imediata
devolução da criança quando tiver decorrido menos de 1 (um) ano entre a
data da transferência ou retenção indevida e a data de início do processo
de repatriação no Estado que estiver abrigando a criança.
V. Não obstante, ainda que não tenha decorrido o prazo de 1 (um) ano
estabelecido, saliente-se que a Convenção de Haia autoriza a manutenção
da criança no país em que estiver abrigada se o retorno comprometer o seu
bem-estar físico ou psicológico, priorizando, portanto, o seu interesse
em detrimento da vontade dos pais. Tal assertiva consta do artigo 13 da
Convenção onde se prevê, inclusive, a possibilidade de oitiva da própria
criança quando esta já atingiu certo grau de maturidade.
VI. Portanto, o deslinde da questão posta nos autos passa para além da
aplicação literal da letra da lei, exigindo exame mais aprofundado sobre a
situação das crianças para que se possa aferir, na redação do próprio
artigo 12 da Convenção, se ambas encontram-se integradas no meio social
em que atualmente vivem, pois, como bem assentado no julgamento do REsp
nº 1.239.777/PE, a Convenção de Haia, não obstante apresente reprimenda
rigorosa ao sequestro internacional de menores com determinação expressa
de retorno destes ao país de origem, garante o bem estar e a integridade
física e emocional da criança, o que deve ser avaliado de forma criteriosa.
VII. Contudo, o presente caso traz uma particularidade levantada pela União
Federal e acolhida pelo Ministério Público: a jovem Elena Marz, nascida
em 26 de fevereiro de 2000, já completou 18 (dezoito) anos de idade, de
modo que restam cessados os efeitos da Convenção sobre a adolescente,
conforme consta expressamente em seu artigo 4º.
VIII. Todavia, a genitora da jovem Elena Marz alega que a proteção prevista
às crianças e adolescentes com até 16 (dezesseis) anos de idade pela
Convenção de Haia deve ser estendida e aplicada ao presente caso devido
ao fato de Elena ser portadora de necessidades especiais (Síndrome de Down).
IX. O Estatuto da Pessoa com Deficiência, instituído pela Lei nº 13.146,
de 6 de julho de 2015, com base no texto da Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, homologada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas em 13 de dezembro de 2006, de maneira bastante salutar, retirou as
pessoas portadoras de deficiência da égide do artigo 3º do Código Civil
e realocou-as no artigo 5º do mesmo Código, estabelecendo a sua plena
capacidade civil após os 18 (dezoito) anos completos.
X. Não bastasse tal avanço, o Estatuto ainda foi além e dispôs, em seu
artigo 6º, de forma não exaustiva, os atos da vida civil que as pessoa
com deficiência estão aptas a exercer no gozo de sua plena capacidade civil.
XI. Assim sendo, considerando o fato do Estado brasileiro reconhecer a
plena capacidade civil das pessoas com Síndrome de Down, a continuidade da
presente ação resta prejudicada, tendo em vista que não é possível a
busca e apreensão coercitivas de pessoas capazes.
XII. Processo extinto, sem resolução do mérito, em face da manifesta
perda do objeto da ação. Recursos interpostos prejudicados.Decisão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide
a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região,
por unanimidade, julgar extinto o processo, sem resolução de mérito,
em face da manifesta perda do objeto da ação, restando prejudicados os
recursos interpostos, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo
parte integrante do presente julgado.
Data do Julgamento
:
26/03/2019
Data da Publicação
:
04/04/2019
Classe/Assunto
:
Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 1733984
Órgão Julgador
:
PRIMEIRA TURMA
Relator(a)
:
DESEMBARGADOR FEDERAL VALDECI DOS SANTOS
Comarca
:
TRIBUNAL - TERCEIRA REGIÃO
Tipo
:
Acórdão
Indexação
:
VIDE EMENTA.
Fonte da publicação
:
e-DJF3 Judicial 1 DATA:04/04/2019
..FONTE_REPUBLICACAO:
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