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Jurisprudência


TRF3 0000223-93.2016.4.03.6103 00002239320164036103

Ementa
DIREITO CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CONCESSÃO DE MEDICAMENTO. APELAÇÃO. DOENÇA RARA. MUCOPOLISSACARIDOSE TIPO IV (MPS IV) OU SÍNDROME DE MORQUIO A. MEDICAMENTO NÃO DISPONIBILIZADO PELO SUS. AUSÊNCIA DE TRATAMENTO MEDICAMENTOSO PARA A DOENÇA DA APELANTE. APELAÇÃO PROVIDA. 1. Trata-se de recurso de apelação proposta pela FRANCILENE GOMES DO CRUZ em face da r. sentença de fls. 230/234-v que, em autos de ação ordinária com pedido de tutela antecipada, julgou improcedente o pedido da ora apelante, a fim de reconhecer que a União Federal não está obrigada a conceder a apelante o medicamento VIMIZIM® (Elosulfase Alfa), eis que se trata de medicamento restrito ao ambiente hospitalar e que o uso do medicamento pode ajudar na estabilização da doença, quando iniciado precocemente o tratamento, mas não há dados de que ele ofereça melhor qualidade de vida ou sobrevida ao paciente. Houve ainda a condenação da apelante ao pagamento de honorários advocatícios, que foram fixados em R$ 1.000,00 (um mil reais). 2. A questão foi decidida recentemente pelo E. Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento dos EDcl no REsp nº 1.657.156/RJ, DJe 21/09/2018, de relatoria do Min. Benedito Gonçalves, e submetido ao regime do artigo 1.036, do Código de Processo Civil. [...].Ademais, foi reconhecida a repercussão geral da matéria, em sede constitucional, nos respectivos RE 566.471/RN (no qual se discute a obrigação do Estado em dispensar medicamento de alto custo não incluído no RENAME) e RE 657.718/MG (no qual se discute a possibilitar de obrigar o Estado a fornecer medicamento não registrado na ANVISA), demonstrando que a matéria ainda se encontra em discussão e, eventualmente, poderá ser decidida com critérios semelhantes ou totalmente contrários aos estabelecidos no Recurso Especial. 3. É notório que a Carta de 1988, ao constitucionalizar o direito à saúde como direito fundamental, inovou a ordem jurídica nacional, na medida em que nas Constituições anteriores tal direito se restringia à salvaguarda específica de direitos dos trabalhadores, além de disposições sobre regras de competência que não tinham, todavia, o condão de garantir o acesso universal à saúde. 4. Na busca pela concretude deste direito, que é garantia de toda a sociedade, gerando um dever por parte do poder público de implementar políticas públicas que visem ao bem-estar geral da população o legislador infraconstitucional editou a Lei nº 8.080/90, genitora do Sistema Único de Saúde-SUS, determinando o atendimento integral na seara da saúde, ao incluir no campo de atuação daquele à execução de diversas ações, dentre as quais está expressamente prevista a assistência farmacêutica. 5. Prosseguindo nesse juízo, na medida em que o direito à saúde se consubstancia, também, como direito subjetivo do indivíduo, não me parecem legítimas as afirmações segundo as quais a tutela individual tratar-se-ia de uma inaceitável intervenção do Poder Judiciário sobre o Executivo e as políticas públicas que este leva a cabo. 6. In casu, apelante foi diagnosticada com MUCOPOLISSACARIDOSE TIPO IV (MPS IV) ou Síndrome de Morquio A (Cid 10: E 76.2), enfermidade genética que leva a deficiência da enzima N-acetilgalactosamina-6-sulfatase, não tendo sido submetida a qualquer tratamento até que em 2014, com a idade de 16 anos, foi-lhe prescrito o uso do medicamento VIMIZIM® (Elosulfase Alfa), capaz de repor a enzima N-acetilgalactosamina-6-sulfatase no organismo. 7. Determinada a realização de perícia técnica (fls. 189/192), o perito médico (Dr. José Henrique Figueiredo Rached - CRM/SP nº 64247, neurocirurgião) concluiu que "o VIMIZIM, baseado na literatura médica, é a única enzima específica existente para o tratamento de pacientes com MPS IV A". E que "a falta de tratamento poderá agravar o quadro da doença na autora.". 8. Em informações prestadas pelo Centro de Referência em Erros Inatos do Metabolismo (CREMI) da Universidade Federal de São Paulo, ao Juízo de primeira instância, a Dra. Maret Holanda Ranna (CRM 70434) esclareceu que a MPS IV-A "é uma doença genética progressiva potencialmente letal, de caráter multissistêmico, que acomete os sistemas cardio-respiratório, músculo-esquelético, nervoso, hepato-esplênico, imonológico.". Foi apontado ainda que a droga ora pleiteada é a única existente para o tratamento específico da MPS IV-A, tendo sido "eficaz na prevenção do aparecimento de complicações multissistêmicas, na melhora da sintomatologia clínica geral, principalmente cardio-respiratória, no crescimento físico, na disposição geral, na normalização das visceromegalias, na diminuição das infecções de repetição e no final repercutindo numa melhor qualidade de vida" (fl. 165). 9. Não é porque o sistema músculo-esquelético da apelante já se encontra prejudicado, tornando quase irreversível seu quadro de nanismo, que outros fatores tão importantes para uma sobrevivência digna não devam ser levados em consideração. A apelante possui o direito de receber tratamento que mais a aproxime da normalidade, permitindo sua integração social e uma vida com dignidade, não podendo ser relegada à imobilidade, constante risco de infecção e dificuldades sistêmicas na respiração e deglutição/alimentação só porque se trata de doença rara e, supostamente, pouco incidente. 10. Ainda que se diga que a MPS IV-A ou Síndrome de Morquio é doença rara, pouco abrangente, e que o sistema público de saúde se volta à prevenção, controle e tratamento de doenças corriqueiras e cotidianas, pois assim consegue alcançar um maior número de necessitados de cuidados na seara médica/farmacêutica/sanitária, verdade é que a Constituição Federal em seu art. 196, ou em qualquer outro, não faz distinção para a concretização do direito à saúde; esta é universal, voltando-se à coletividade e aos indivíduos em sua individualidade, sejam eles portadores de doenças raras e incuráveis, sejam eles diagnosticados com simples gripe. Não é dada à Administração Pública, em nível constitucional ou legal, a discricionariedade de quais pessoas terão direito ao atendimento público integral e gratuito, esse direito é universal, podendo, sim, a Administração, dentro de parâmetros de razoabilidade e observando princípios como moralidade pública e eficiência, desenvolver programas de atendimento. No entanto, ao não conceder, na rede pública de saúde de quaisquer dos entes federativos, o VIMIZIM® (Elosulfase Alfa) ou qualquer tratamento medicamentoso similar, de igual, ou melhor, eficácia no tratamento da Mucopolissacaridose Tipo IV, o Poder Público não está, com eficiência e razoabilidade, criando programas e protocolos de atendimento; ao contrário, esta tão somente excluindo uma parcela, ainda que pequena, da população do direito ao atendimento integral e gratuito à saúde, em clara violação à isonomia. 11. A discussão central, in casu, não é se o medicamento possui ou não possui registro na ANVISA (o que ele possui) ou se a parte autora está "escolhendo" um tratamento experimental ou de excelência para o seu caso específico, em detrimento de milhares de pacientes que recebem o tratamento concedido pelo SUS; não, a discussão aqui é que o Estado não só não concede o medicamento prescrito pela médica da apelante, como não oferece nenhuma alternativa para o problema. 12. Assim, uma leitura constitucional do caso demonstra que o postulado da dignidade da pessoa humana não permite, em nenhuma hipótese, que seja negada a concessão de fármacos capazes de salvaguardar a vida de portadores de síndromes ou patologias graves, com expressivo risco à vida, somente para que se onere menos o Estado ou obedeça comportamentos burocráticos que, numa análise casuística, se mostra irracional e não razoável. Todos, sem exceção, devem ter acesso a tratamento médico digno e eficaz, mormente quando não possuam recursos para custeá-lo. 13. Ademais, em última análise, cabe a Administração Pública demonstrar, no caso concreto, a efetiva indisponibilidade dos recursos para custeio das ações de dispensação de medicamentos no âmbito do sistema público de saúde, o SUS. Nesse sentido, inclusive, o voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento do Agravo Regimental na SL 815/SP, no qual foi apontada da necessidade do Poder Público provar que o tratamento oferecido pelo SUS é tão, ou mais, eficaz, no caso concreto, que o pleiteado pela parte, não servindo para afastar o direito à saúde a mera alegação de ofensa à ordem, à saúde, à segurança ou à economia, mormente em casos onde haja rápida piora no estado de saúde do requerente ou/e risco de iminente óbito. 14. Apelação a que se dá provimento.
Decisão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar provimento ao recurso de apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Data do Julgamento : 13/03/2019
Data da Publicação : 20/03/2019
Classe/Assunto : Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 2218055
Órgão Julgador : TERCEIRA TURMA
Relator(a) : DESEMBARGADOR FEDERAL ANTONIO CEDENHO
Comarca : TRIBUNAL - TERCEIRA REGIÃO
Tipo : Acórdão
Indexação : VIDE EMENTA.
Fonte da publicação : e-DJF3 Judicial 1 DATA:20/03/2019 ..FONTE_REPUBLICACAO:
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