TRF3 0001910-67.2000.4.03.6103 00019106720004036103
DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE
POSSE. PROPRIEDADE. POSSE. JUSTAPOSIÇÃO DAS QUESTÕES. NATUREZA DÚPLICE
DA AÇÃO POSSESSÓRIA. COMUNIDADE INDÍGENA. TRATAMENTO DA QUESTÃO
FUNDIÁRIA DOS ÍNDIOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. POSSE
DE CUNHO CIVILISTA E POSSE EXERCIDA PELOS SILVÍCOLAS. CRITÉRIOS
DE INDENTIFICAÇÃO. DISTINÇÃO. CONCEITO CONSTITUCIONAL DE "TERRAS
TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS ÍNDIOS". ARTIGO 231, § 1º DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. PERÍCIA ANTROPOLÓGICA. CONSTATAÇÃO DE OCUPAÇÃO SILVÍCOLA
RECENTE. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS SEGUROS PARA O RECONHECIMENTO DA POSSE
INDÍGENA.
1. A posse civil, antecedente, pela parte autora da reintegração de posse
encontra-se comprovada, pois, além de autorização para uso do espaço, a
construção do cenário cinematográfico (destinado à produção do filme
"Hans Staden") foi edificada diretamente em razão dessa autorização e do
acordo de vontade entre o proprietário e a produção artística.
2. A resolução da questão de fundo debatida no feito passa pela análise
de dois pontos fundamentais: de um lado, a defesa do direito de propriedade
feita pela autora, escorando-se em título de domínio formalmente válido,
preenchidos os requisitos do Código Civil no tocante à aquisição de
propriedade imóvel (artigo 530, C. Civ.), bem como valendo-se também da
alegação de posse, mansa, pacífica e ininterrupta, a lhe garantir o direito
de ser aí mantida, em caso de turbação ou, em caso de esbulho, de ser a
ela restituída (artigo 499 C. Civ.); de outro lado, a defesa do direito à
propriedade reclamado por comunidade indígena, ao fundamento de tratar-se
de área ocupada segundo as condições previstas na Constituição Federal,
que lhe garante "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam" (art. 231 e §§ da Constituição Federal).
3. A defesa fundada exclusivamente no título de propriedade, no caso em
consideração, não tem o efeito que teria se a contenda se desse entre
particulares, e necessário fosse aplicar o artigo 505, parte final, do
Código Civil, que prevê que "não se deve, entretanto, julgar a posse em
favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio".
4. Tanto a questão de domínio como a de posse se justapõem, dado que da
parte da autora o domínio é comprovado segundo os postulados civis, fundado
em título formal de propriedade, aliado ao argumento da posse e, do lado da
ré, os direitos originários dos índios, se declarados, teriam os mesmos
efeitos do domínio, fundado este não em título formal de propriedade,
mas no exercício da ocupação tradicional, de fundo constitucional. Assim,
a discussão estabelecida nos autos, não obstante tenha como pano de fundo,
como sustentação de fato, a disputa possessória, traz em verdade uma
discussão mais aprofundada, dado que o reconhecimento dessa posse afirmará de
pronto também o domínio em favor de quem se sagrar vencedor. Esse, aliás,
é o sentido da Súmula 487 do Supremo Tribunal Federal ("Será deferida
a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela
disputada"), que deverá ser aplicada ao caso concreto, com a peculiaridade
que a situação reclama.
5. A validade material do documento de propriedade dos autores só poderá
ser aferida adequadamente, quer para efeito de declaração de domínio,
quer para efeito de análise da posse, após dirimida a real situação do
imóvel, em especial se ele se encontra afetado ao domínio público ou não,
se é ele ocupado tradicionalmente pelos índios, ou não.
6. A presente ação possessória ganhou a natureza dúplice, ex vi do
artigo 922, do Código de Processo Civil, posto que ambas as partes demandam
pretensão de igual natureza, não obstante as consequências peculiares
que advirão, diversas das ocorridas nas lides entre particulares em geral.
7. O que se verifica pela atual Carta é um verdadeiro Estatuto
jurídico-constitucional dos índios que, ao lado do tratamento pontual da
questão possessória, passa pelo reconhecimento da identidade cultural
dos silvícolas numa escala de valores jamais vista nas outras ordens
constitucionais.
8. A posse dos silvícolas é fixada por requisitos que não se aplicam
comumente, dado que o conceito de posse indígena é firmado não pela
exteriorização do domínio, objetivamente, como no Direito Civil
se apresenta, na esteira de Ihering, mediante comportamento típico de
proprietário, mas ela vem fundada segundo os usos, costumes e tradições
indígenas, que não se confundem, de per si, com a exteriorização de
domínio típica do direito privado. Desnecessária para a caracterização
da posse dos silvícolas, desse modo, de postulados civilistas, dado que
a definição das terras utilizadas pelos índios leva em conta outros
paradigmas, de cunho nitidamente antropológicos.
9. A Constituição de 1988, ao definir o que "são terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios", vale-se de redação imperativa, e de certo modo
exaustiva, e sugere a identificação desse conceito mediante a consideração
de quatro situações de fato (as por eles habitadas; as utilizadas para
suas atividades produtivas; as imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução
física e cultural), as quais não são excludentes, mas harmonizam-se e
completam-se para o efeito de restringir ou ampliar a extensão da área
tradicionalmente ocupada pelos índios, passando de um campo restrito
(habitação), para outros de maior amplidão, como a área destinada a
atividades produtivas, chegando a reconhecer a ocupação tradicional para
a área destinada tanto à preservação dos recursos ambientais voltados
ao bem-estar da comunidade, como àquela necessária à reprodução, não
apenas física, mas também cultural da comunidade.
10. A perícia antropológica levada a cabo nos autos aponta que a ocupação
silvícola registrada é recente e não dá ao Juízo elementos seguros para
o reconhecimento da posse indígena, por nenhuns dos elementos postos pelo
artigo 231 da Constituição Federal, registrando, em verdade, uma situação
de expansão populacional indígena que não pode ser confundida com as
situações peculiares de perambulação ou mesmo de ocupação tradicional.
11. Pela análise das provas trazidas aos autos, o Juiz atentou bem para a
orientação jurisprudencial no sentido de que "se por um lado a Constituição
Federal confere proteção às terras 'tradicionalmente' ocupadas pelos índios
(art. 231), por outro, também confere proteção ao direito de propriedade
(art. 5º, inciso XXII)" e que "eventual colisão de direitos com sede
constitucional há de ser resolvida com lastro na prova produzida nos autos
sobre as respectivas titulações" (MC 6480, Rel. Min. JOSÉ DELGADO).
12. Remessa oficial e apelações do Ministério Público Federal e da FUNAI
a que se nega provimento.
Ementa
DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE
POSSE. PROPRIEDADE. POSSE. JUSTAPOSIÇÃO DAS QUESTÕES. NATUREZA DÚPLICE
DA AÇÃO POSSESSÓRIA. COMUNIDADE INDÍGENA. TRATAMENTO DA QUESTÃO
FUNDIÁRIA DOS ÍNDIOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. POSSE
DE CUNHO CIVILISTA E POSSE EXERCIDA PELOS SILVÍCOLAS. CRITÉRIOS
DE INDENTIFICAÇÃO. DISTINÇÃO. CONCEITO CONSTITUCIONAL DE "TERRAS
TRADICIONALMENTE OCUPADAS PELOS ÍNDIOS". ARTIGO 231, § 1º DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL. PERÍCIA ANTROPOLÓGICA. CONSTATAÇÃO DE OCUPAÇÃO SILVÍCOLA
RECENTE. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS SEGUROS PARA O RECONHECIMENTO DA POSSE
INDÍGENA.
1. A posse civil, antecedente, pela parte autora da reintegração de posse
encontra-se comprovada, pois, além de autorização para uso do espaço, a
construção do cenário cinematográfico (destinado à produção do filme
"Hans Staden") foi edificada diretamente em razão dessa autorização e do
acordo de vontade entre o proprietário e a produção artística.
2. A resolução da questão de fundo debatida no feito passa pela análise
de dois pontos fundamentais: de um lado, a defesa do direito de propriedade
feita pela autora, escorando-se em título de domínio formalmente válido,
preenchidos os requisitos do Código Civil no tocante à aquisição de
propriedade imóvel (artigo 530, C. Civ.), bem como valendo-se também da
alegação de posse, mansa, pacífica e ininterrupta, a lhe garantir o direito
de ser aí mantida, em caso de turbação ou, em caso de esbulho, de ser a
ela restituída (artigo 499 C. Civ.); de outro lado, a defesa do direito à
propriedade reclamado por comunidade indígena, ao fundamento de tratar-se
de área ocupada segundo as condições previstas na Constituição Federal,
que lhe garante "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam" (art. 231 e §§ da Constituição Federal).
3. A defesa fundada exclusivamente no título de propriedade, no caso em
consideração, não tem o efeito que teria se a contenda se desse entre
particulares, e necessário fosse aplicar o artigo 505, parte final, do
Código Civil, que prevê que "não se deve, entretanto, julgar a posse em
favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio".
4. Tanto a questão de domínio como a de posse se justapõem, dado que da
parte da autora o domínio é comprovado segundo os postulados civis, fundado
em título formal de propriedade, aliado ao argumento da posse e, do lado da
ré, os direitos originários dos índios, se declarados, teriam os mesmos
efeitos do domínio, fundado este não em título formal de propriedade,
mas no exercício da ocupação tradicional, de fundo constitucional. Assim,
a discussão estabelecida nos autos, não obstante tenha como pano de fundo,
como sustentação de fato, a disputa possessória, traz em verdade uma
discussão mais aprofundada, dado que o reconhecimento dessa posse afirmará de
pronto também o domínio em favor de quem se sagrar vencedor. Esse, aliás,
é o sentido da Súmula 487 do Supremo Tribunal Federal ("Será deferida
a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela
disputada"), que deverá ser aplicada ao caso concreto, com a peculiaridade
que a situação reclama.
5. A validade material do documento de propriedade dos autores só poderá
ser aferida adequadamente, quer para efeito de declaração de domínio,
quer para efeito de análise da posse, após dirimida a real situação do
imóvel, em especial se ele se encontra afetado ao domínio público ou não,
se é ele ocupado tradicionalmente pelos índios, ou não.
6. A presente ação possessória ganhou a natureza dúplice, ex vi do
artigo 922, do Código de Processo Civil, posto que ambas as partes demandam
pretensão de igual natureza, não obstante as consequências peculiares
que advirão, diversas das ocorridas nas lides entre particulares em geral.
7. O que se verifica pela atual Carta é um verdadeiro Estatuto
jurídico-constitucional dos índios que, ao lado do tratamento pontual da
questão possessória, passa pelo reconhecimento da identidade cultural
dos silvícolas numa escala de valores jamais vista nas outras ordens
constitucionais.
8. A posse dos silvícolas é fixada por requisitos que não se aplicam
comumente, dado que o conceito de posse indígena é firmado não pela
exteriorização do domínio, objetivamente, como no Direito Civil
se apresenta, na esteira de Ihering, mediante comportamento típico de
proprietário, mas ela vem fundada segundo os usos, costumes e tradições
indígenas, que não se confundem, de per si, com a exteriorização de
domínio típica do direito privado. Desnecessária para a caracterização
da posse dos silvícolas, desse modo, de postulados civilistas, dado que
a definição das terras utilizadas pelos índios leva em conta outros
paradigmas, de cunho nitidamente antropológicos.
9. A Constituição de 1988, ao definir o que "são terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios", vale-se de redação imperativa, e de certo modo
exaustiva, e sugere a identificação desse conceito mediante a consideração
de quatro situações de fato (as por eles habitadas; as utilizadas para
suas atividades produtivas; as imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução
física e cultural), as quais não são excludentes, mas harmonizam-se e
completam-se para o efeito de restringir ou ampliar a extensão da área
tradicionalmente ocupada pelos índios, passando de um campo restrito
(habitação), para outros de maior amplidão, como a área destinada a
atividades produtivas, chegando a reconhecer a ocupação tradicional para
a área destinada tanto à preservação dos recursos ambientais voltados
ao bem-estar da comunidade, como àquela necessária à reprodução, não
apenas física, mas também cultural da comunidade.
10. A perícia antropológica levada a cabo nos autos aponta que a ocupação
silvícola registrada é recente e não dá ao Juízo elementos seguros para
o reconhecimento da posse indígena, por nenhuns dos elementos postos pelo
artigo 231 da Constituição Federal, registrando, em verdade, uma situação
de expansão populacional indígena que não pode ser confundida com as
situações peculiares de perambulação ou mesmo de ocupação tradicional.
11. Pela análise das provas trazidas aos autos, o Juiz atentou bem para a
orientação jurisprudencial no sentido de que "se por um lado a Constituição
Federal confere proteção às terras 'tradicionalmente' ocupadas pelos índios
(art. 231), por outro, também confere proteção ao direito de propriedade
(art. 5º, inciso XXII)" e que "eventual colisão de direitos com sede
constitucional há de ser resolvida com lastro na prova produzida nos autos
sobre as respectivas titulações" (MC 6480, Rel. Min. JOSÉ DELGADO).
12. Remessa oficial e apelações do Ministério Público Federal e da FUNAI
a que se nega provimento.Decisão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide
a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região,
por unanimidade, negar provimento à remessa oficial e às apelações do
Ministério Público Federal e da FUNAI, nos termos do relatório e voto
que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Data do Julgamento
:
02/08/2016
Data da Publicação
:
12/08/2016
Classe/Assunto
:
ApReeNec - APELAÇÃO/REMESSA NECESSÁRIA - 1474427
Órgão Julgador
:
PRIMEIRA TURMA
Relator(a)
:
DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ZAUHY
Comarca
:
TRIBUNAL - TERCEIRA REGIÃO
Tipo
:
Acórdão
Referência
legislativa
:
***** CF-1988 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
LEG-FED ANO-1988 ART-231 PAR-1 ART-5 INC-22
***** CC-02 CÓDIGO CIVIL DE 2002
LEG-FED LEI-10406 ANO-2002 ART-530 ART-499 ART-505
***** CPC-15 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
LEG-FED LEI-13105 ANO-2015 ART-922
Fonte da publicação
:
e-DJF3 Judicial 1 DATA:12/08/2016
..FONTE_REPUBLICACAO:
Mostrar discussão