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Jurisprudência


TRF3 0003634-74.2007.4.03.6002 00036347420074036002

Ementa
PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. AUSÊNCIA DO EXERCÍCIO DE JUÍZO DE RETRATAÇÃO APÓS O OFERECIMENTO DE CONTRARRAZÕES EM 1º GRAU DE JURISDIÇÃO. MERA IRREGULARIDADE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO PAS DE NULLITÉ SANS GRIEF. TRIBUNAL DO JÚRI. COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS DECISÕES DE PRONÚNCIA, DE IMPRONÚNCIA, DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA E DE DESCLASSIFICAÇÃO. ELEMENTOS DO CASO CONCRETO QUE INDICAM PELA PROVA DA MATERIALIDADE E DE INDÍCIOS DE AUTORIA. MANUTENÇÃO DA PRONÚNCIA DETERMINADA EM 1º GRAU DE JURISDIÇÃO. - A ausência de manifestação do Magistrado de 1º Grau em sede de juízo de retração, após ofertada contrarrazões ao recurso em sentido estrito, ocasiona mera irregularidade processual, que não enseja o reconhecimento de qualquer espécie de nulidade, uma vez que o Código de Processo Penal, em seu art. 563, aduz que nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa, razão pela qual qualquer decretação de nulidade passa pela perquirição da sobrevinda de prejuízo àquele que foi prejudicado pelo ato impugnado sob o pálio do princípio pas de nullité sans grief (prova esta inexistente nesse feito) - precedentes do C. Superior Tribunal de Justiça. - A instituição do Tribunal do Júri possui assento constitucional, tendo sido sua competência estabelecida pelo Poder Constituinte Originário de 1988 para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, restando assegurada, ainda, a plenitude de defesa, o sigilo das votações e a soberania dos veredictos. Restando evidenciada a prática de infração penal atentatória à vida, desde que perpetrada de forma dolosa pelo agente, tem cabimento o julgamento de tal agente pelo Tribunal do Júri, depois de superada a fase de pronúncia. - Por força do disposto no art. 78, I, do Código de Processo Penal, crimes conexos ao doloso contra a vida serão julgados também pelo Tribunal do Júri (exceto se delito militar ou eleitoral), preceito este que não macula o comando constitucional na justa medida em que o Texto Magno apenas estabelece um patamar mínimo de competência afeta à instituição do Tribunal Popular. - Para que seja possível o julgamento do acusado pelo Tribunal do Júri, deverá ser proferida decisão de pronúncia tendo como base o regramento previsto no art. 413 do Código de Processo Penal - para tanto, deverá o Magistrado de 1º Grau, fundamentadamente, demonstrar seu convencimento no sentido da existência de materialidade delitiva, bem como de indícios de autoria ou de participação, sendo importante ressaltar que tal fundamentação deverá ficar adstrita à indicação da materialidade da infração e da existência de indícios de autoria/participação, à menção do artigo de lei em que incurso o pronunciado e à especificação das qualificadoras e das causas de aumento de pena (art. 413, § 1º), sob pena da decisão proferida encontrar-se eivada de vício denominado "eloquência acusatória" a ensejar a declaração de nulidade do r. provimento judicial. - Na fase da pronúncia vige o princípio in dubio pro societate, razão pela qual, mesmo havendo indícios de autoria amealhados apenas na fase inquisitorial, versões que buscam desqualificar a prática de crime doloso contra a vida ou depoimentos que ponham em dúvida a autoria da infração, deve o acusado ser remetido ao julgamento pelo Tribunal do Júri, sem que possa ser arguida eventual ofensa ao postulado da presunção de inocência, na justa medida que tal procedimento tem o escopo de garantir a competência constitucional do Tribunal Popular para apreciar fatos relacionados ao cometimento de crime doloso contra a vida - precedentes de nossos C. Tribunais Superiores. - Havendo crimes conexos ao doloso contra a vida, a pronúncia apenas deverá apreciar a existência de materialidade delitiva e de indícios de autoria em relação à infração penal afeta à competência do Tribunal do Júri, sendo que, em relação aos delitos conexos, nada deverá tecer, cabendo o julgamento de tais infrações ao Conselho de Sentença em razão da conexão apta a afetar a deliberação da questão aos jurados - precedente do C. Superior Tribunal de Justiça. - Caso o Magistrado se convença da inexistência de materialidade delitiva ou da ausência de indícios suficientes de autoria ou de participação, deverá, de forma fundamentada, impronunciar o acusado, ressaltando que, enquanto não houver a extinção de punibilidade, poderá ser ofertada nova inicial acusatória desde que fundamentada em provas novas (art. 414 do Código de Processo Penal). - Também será lícito ao Magistrado absolver sumariamente, desde que de forma fundamentada, o acusado, sob o pálio do art. 415 do Diploma Processual, quando restar provada a inexistência do fato, não ter sido o acusado o autor ou o partícipe do fato, não constituir o fato infração penal ou restar comprovada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime (exceto no que tange à tese de inimputabilidade quando tal argumentação concorrer com outras formuladas pela defesa do acusado). Tal absolvição tem cabimento apenas quando houver prova inequívoca da excludente, não sendo possível ao Magistrado togado asseverá-la quando houver incertezas no caso concreto, sob pena, inclusive, de ofender a competência constitucional do juiz natural da causa (vale dizer, do Tribunal do Júri). - Permite-se, ainda, ao Magistrado desclassificar a infração penal imputada ao acusado para outro delito que não doloso contra a vida, hipótese em que o feito deverá ser remetido ao juízo competente, conforme disposição contida no art. 419 do Código de Processo Civil. - Depreende deste caderno processual que os ora pronunciados, na companhia de outros acusados, em comunhão de esforços e com unidade de desígnios, teriam atacado, com animus necandi, os Policiais Civis Emerson José Gadani, Rodrigo Pereira Lorenzatto e Ronílson Magalhães Bartiê, mediante emboscada e outros recursos que dificultaram a defesa das vítimas, dolosamente e cientes da ilicitude e reprovabilidade de suas condutas; - Materialidade delitiva colhida do Auto de Prisão em Flagrante (fls. 26/47), Boletim de Ocorrência (fls. 69/71), Autos de Exibição e Apreensão (fls. 72, 104, 161), Termo de Exibição e Apreensão (fl. 79), Laudos de Exame de Corpo de Delito - Exames Necroscópicos de Rodrigo e Ronílson (fls. 111/116 e 117/120), Laudos de Exame de Corpo de Delito - Lesão Corporal referente a Emerson (fls. 271/273), Laudo de Exame em Local de Mortes Violentas (fls. 210/225) e Laudos de Exame em Armas de Fogo (fls. 226/230, 231/232, 234/235 e 237/238). - Presença de indícios mínimos a apontar a ocorrência dos eventos criminosos mediante o incentivo e a colaboração dos acusados, presos em flagrante, corroborada pelo interrogatório policial dos acusados, depoimento da vítima e de testemunhas. - As teses ofertadas pela defesa dos pronunciados deverão ser trazidas à baila quando da realização do Plenário de Julgamento, momento em que tem cabimento o amplo debate balizado pela plenitude de defesa acerca dos fatos relatados nesta relação processual. - O interrogatório policial dos indígenas sem a presença de intérprete não configura desrespeito à diversidade linguística, pois os mesmos descreveram os fatos de forma detalhada, o que demonstra a compreensão que detinham, com ratificação na presença de Procurador da FUNAI. Ausência de nulidade. - Alegação genérica de nulidade processual por desrespeito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. O exame dos autos revela total observância aos mencionados princípios. - Os elementos de prova não amparam de modo nítido, irretorquível, que a conduta dos acusados teria ocorrido na legítima defesa do território indígena. Tampouco amparam a tese de inexigibilidade de conduta diversa. - Laudo Antropológico (fls. 1961/2056) que afirma: todos os réus 'eram, ao tempo da ação, relativamente incapazes de entender o caráter ilícito' das condutas a que são acusados nos Autos. - Ao contrário das conclusões do Laudo Antropológico, os Exames de Sanidade Mental (fls. 2061/2065 e 2073/2077) revelam que SANDRA e VALMIR comunicam-se bem em português, que se mostram conhecedores das normas e regras sociais (integrada à cultura dos não-índios), e que eram capazes de compreender o caráter ilícito dos fatos e de determinarem-se de acordo com esse entendimento. - Por isso mesmo, os atos imputados aos pronunciados vão além da autotutela possessória. O Código Civil brasileiro permite o exercício do direito de autoproteção da posse no caso de esbulho e de turbação, respectivamente com a sua restituição ou manutenção na posse, por sua própria força desde que aja no limite da indispensabilidade (art. 1.210). E isso não se confunde com exercício arbitrário das próprias razões e diz com o legítimo direito de defesa e de proteção da posse. Aliás, a legítima defesa desta e a sua proteção são consagradas no direito brasileiro, mesmo àquele que não presenciou o esbulho quando for violentamente repelido pelo agressor (art. 1.224, do Código Civil). - A despeito de sua cultura própria, para os indígenas ora acusados, a vida humana possui relevante valor moral e ético. Tinham o dever de preservá-la. Portanto, se faz presente a potencial consciência da ilicitude, na medida em que os acusados possuiriam conhecimento da imoralidade, antissocialidade e lesividade de sua conduta. - Em que pese eventual direito de posse, isso não retira dos brasileiros o dever de respeito à lei, inclusive por comunidades indígenas parcialmente ou integralmente adaptadas (como se revelou neste caso), num contexto já extremamente tenso e delicado. - A proteção que deve merecer comunidades indígenas, que nos brindou com seus costumes e forma de agir, língua e alimentação, a ponto de interferir em nosso modo de viver e ver as coisas, não pode fazer com que olhemos inadequadamente o ambiente atual, com visão só no passado. Se assim for, todos seremos considerados invasores, inclusive os que habitam em nossas grandes cidades. A simbiose existente entre passado, presente e futuro deve exigir o respeito mútuo para que nos unamos de tal forma que um não possa viver sem o outro, uma equação que sempre se conserva, num corpo, um todo. - A nossa enaltecida alegria, passividade e generosidade possuiria raiz no ato dos Guaianás que, após naufrágio do navio de João Ramalho em 1513, permitiu que ele vivesse com os primeiros e se casasse com a filha do chefe Tibiriçá. Foi com eles que José de Anchieta apreendeu a língua Tupi-Guarani, que unificou até o final do século XVII o país já que, até então, era a língua oficial. E falada em São Paulo até metade do século XIX. - Algumas pessoas têm agido no exercício das próprias 'razões' diante da descrença e da quebra de confiança na eficiência de nossas instituições. O que está por detrás dos fatos levados a conhecimento deste tribunal é objeto irrenunciável da mais profunda reflexão: a integridade física das pessoas e o uso da força para fazer valer suas pretensões, lamentavelmente com a supressão de vidas inocentes. A questão não é só de onde viemos, mas quem somos e porque somos, devendo causar espécie tanto uma sociedade que opte pela supressão de direitos aos indígenas, quanto a que desguarnece direitos dos demais, assim como pela supressão dos deveres dos indígenas ou supressão dos deveres dos demais. - Nossa civilização apenas se enriquece na plenitude, no que somos-fomos, e não se pode enveredar para o desprezo do alheio, representado aqui na violação à lei. E nossas instituições devem responder via sistema racional, que não pode ser passional e sujeito a movimentos demagógicos. - Formação é indissociável de nossa civilização, e somente nos respeitaremos se a educação indigenista for inserida em nossas escolas, talvez assim resgatemos nossas reconhecidas qualidades, mas sob novo viés, do respeito ao próximo, do respeito às leis, do respeito às instituições. Deixaremos, quiçá, de sermos ao mesmo tempo, reféns e desfrutadores uns dos outros. - Se não houve, por parte dos indígenas, ou eventualmente dos que agiram no interesse deles, o socorro ao Judiciário para concretização da posse que consideram justa, a análise da adequação das condutas deve ser verificada pelo Tribunal do Júri, que decidirá acerca dos limites da legítima defesa invocada, bem como sobre seu eventual excesso, e também sobre as demais excludentes penais. - O conjunto probatório não indica, quanto às excludentes sustentadas pelos pronunciados, a certeza necessária à absolvição ainda na fase do Sumário da Culpa. Igualmente não embasa a impronúncia dos acusados. - Descabimento da desclassificação para o crime de homicídio simples. Elementos que indicariam ter havido homicídio mediante emboscada, tortura e/ou com emprego de meio cruel. As qualificadoras não podem ser excluídas da apreciação pelo Tribunal do Júri. - Pronúncia confirmada. - Negado o provimento ao recurso em sentido estrito.
Decisão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, negar provimento ao Recurso em Sentido Estrito, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Data do Julgamento : 06/03/2018
Data da Publicação : 13/03/2018
Classe/Assunto : RSE - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - 83333
Órgão Julgador : DÉCIMA PRIMEIRA TURMA
Relator(a) : DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS
Comarca : TRIBUNAL - TERCEIRA REGIÃO
Tipo : Acórdão
Referência legislativa : ***** CPP-41 CÓDIGO DE PROCESSO PENAL LEG-FED DEL-3689 ANO-1941 ART-563 ART-78 INC-1 ART-413 PAR-1 ART-414 ART-415 ***** CPC-73 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973 LEG-FED LEI-5869 ANO-1973 ART-419 ***** CC-02 CÓDIGO CIVIL DE 2002 LEG-FED LEI-10406 ANO-2002 ART-1210 ART-1224
Fonte da publicação : e-DJF3 Judicial 1 DATA:13/03/2018 ..FONTE_REPUBLICACAO:
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