TRF3 0004823-25.2013.4.03.6181 00048232520134036181
DIREITO PENAL. PROCESSO PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES. OCULTAÇÃO DE
CADÁVER. DENÚNCIA. AGENTE POLICIAL. DITADURA MILITAR. LEI DE ANISTIA. LEI
Nº 6.683/79. ABRANGÊNCIA. INCIDÊNCIA NO CASO CONCRETO. PREVALÊNCIA DO
VOTO VENCIDO. MANTIDA A EXTINÇÃO DA AÇÃO PENAL.
1. Embargos infringentes interpostos contra decisão que, por maioria,
reformou decisão de primeiro grau para determinar o prosseguimento de
ação penal em que se imputava a agentes estatais a prática do crime de
ocultação de cadáver (Código Penal, art. 211), que teria ocorrido a
partir de janeiro de 1972. Crime cometido no contexto da repressão imposta
pela ditadura militar iniciada em 1964.
2. O procedimento de atribuição de sentido aos textos normativos (ou seja, de
extração de normas) envolve atividade interpretativa que pode ir da simples
compreensão de um sentido comum de comandos básicos a complexos procedimentos
metodológicos de compreensão e decisão. Não há interpretação de texto
(inclusive normativo) sem análise de seu contexto (em sentido amplo: fático,
histórico, jurídico-normativo, et cetera). A constatação exsurge mais
ou menos evidente a depender do teor de uma prescrição normativa, de suas
possibilidades de aplicação e relações com outros textos normativos,
ou ainda, do âmbito do real sobre o qual incidirá ou que é tomado como
relevante para a própria formulação do texto.
3. No caso, tem-se o complexo contexto da chamada "Lei de Anistia" (Lei nº
6.683/79), a qual foi anunciada como medida para o perdão e a exclusão,
para efeitos penais, de todos os atos políticos ou "conexos" (entendida essa
expressão em sentido amplo e pouco técnico, no sentido de "relacionados"),
no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 -
ou seja, dos dias que antecederam a posse do Presidente João Goulart até
o período imediatamente anterior à promulgação da própria Anistia,
compreendendo mais de quinze anos do regime de exceção, além do período
anterior já referido.
4. A Lei de Anistia, por todo o contexto histórico de sua discussão
e aprovação, foi etapa fundamental do restabelecimento do Estado de
Direito efetivo no Brasil. É, nesse sentido, lei da maior excepcionalidade,
traduzida como medida de consenso entre setores relevantes da sociedade e
do meio político, bem assim do comando do governo militar, para iniciar a
transição final com o reencontro de milhares de pessoas presas, torturadas
ou exiladas, que poderiam retornar à liberdade ou ao território nacional por
meio da medida. Tratando-se de acordo, e não de uma batalha em que se separam
vencedores e vencidos, o caminho escolhido foi o da concórdia possível,
com a consequente impossibilidade jurídica de punição individual tanto
dos jovens que se lançaram em armas na luta contra a opressão, quanto
de agentes estatais de diversos tipos que, nos mais variados contextos,
impuseram sevícias ou a morte a brasileiros até o final dos anos 1970.
5. Quando a Lei 6.683/79 dispõe acerca da anistia de todos os crimes
"cometidos" no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e
15 de agosto de 1979, não se tem aí mero marco temporal para condutas
criminosas. O que há é delimitação de um período histórico de extrema
turbulência ou, em sua maior parte, de vigência de regime de exceção,
em que atos amoldáveis a crimes graves foram praticados em favor do ou em
combate ao governo militar. Não podem os marcos temporais em questão, ou o
vocábulo "cometidos", ser tomados com o sentido usual que seria extraído
de outros enunciados normativos inseridos em outros contextos ou regimes
jurídicos. Aqui, a referência é claramente a um círculo de fatos:
os crimes cujo núcleo fático tenha tido como distinção temporal ter
ocorrido na precitada quadra histórica, e como marca material o caráter
político ou de crime conexo ao político, no sentido de atos em tese
criminosos relacionados a ações políticas de defesa do regime militar
(frequentemente praticados por agentes de Estado, com a complacência e
permissividade, ou mesmo comando, do regime ditatorial), ou de combate ao
mesmo regime por atos políticos e até enfrentamentos armados.
6. Assim, são abrangidos pela anistia os fatos originalmente típicos
(políticos ou conexos) cujo núcleo de cometimento tenha se dado no período
de exceção, não se tratando, neste contexto, de simples vislumbre temporal,
com uso da categoria do crime permanente, para inferir que em tese um ato
de ocultação teria se protraído para além de 15 de agosto de 1979. A
anistia abarca os crimes cometidos no período de setembro de 1961 a agosto
de 1979 em seu núcleo fático.
7. Os crimes políticos ou a eles conexos cujo núcleo de ação tenha
ocorrido no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de
agosto de 1979 (daí advindo a expressão legal "cometidos", neste contexto)
se encontram abarcados por anistia, nos termos do art. 1º da Lei 6.683/79,
inclusive os de natureza em tese permanente, ressalvados apenas os casos em
que novos atos efetivos e autônomos tenham ultrapassado o lapso temporal
previsto na precitada disposição legal.
8. A denúncia que inaugura os autos retrata situação desse jaez, ao
imputar ao embargante Alcides Singillo a prática de ocultação de cadáver
de militante político contrário ao regime militar, mediante atos cujo
cometimento teria se dado em 1972. A não apresentação do cadáver como
omissão acessória dessa prática anterior, e a ela intimamente ligada, não
alcança existência autônoma que se dissocie do comando descriminalizador
da Lei 6.683/79, porquanto não se narram condutas efetivamente praticadas,
ou comandadas intelectualmente pelo réu, que se autonomizem desse contexto
e se protraiam para além de 15 de agosto de 1979.
9. O julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca de crimes
permanentes em tese cometidos por agentes da repressão no Brasil no período
da ditadura militar não poderia se sobrepor a uma disposição legal que
retira o caráter criminoso dos fatos e que foi reconhecida pelo Supremo
Tribunal Federal, em julgado com efeitos vinculantes, como integralmente
recepcionada pela atual ordem constitucional pátria.
10. Embargos infringentes providos. Mantida a extinção da ação penal.
Ementa
DIREITO PENAL. PROCESSO PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES. OCULTAÇÃO DE
CADÁVER. DENÚNCIA. AGENTE POLICIAL. DITADURA MILITAR. LEI DE ANISTIA. LEI
Nº 6.683/79. ABRANGÊNCIA. INCIDÊNCIA NO CASO CONCRETO. PREVALÊNCIA DO
VOTO VENCIDO. MANTIDA A EXTINÇÃO DA AÇÃO PENAL.
1. Embargos infringentes interpostos contra decisão que, por maioria,
reformou decisão de primeiro grau para determinar o prosseguimento de
ação penal em que se imputava a agentes estatais a prática do crime de
ocultação de cadáver (Código Penal, art. 211), que teria ocorrido a
partir de janeiro de 1972. Crime cometido no contexto da repressão imposta
pela ditadura militar iniciada em 1964.
2. O procedimento de atribuição de sentido aos textos normativos (ou seja, de
extração de normas) envolve atividade interpretativa que pode ir da simples
compreensão de um sentido comum de comandos básicos a complexos procedimentos
metodológicos de compreensão e decisão. Não há interpretação de texto
(inclusive normativo) sem análise de seu contexto (em sentido amplo: fático,
histórico, jurídico-normativo, et cetera). A constatação exsurge mais
ou menos evidente a depender do teor de uma prescrição normativa, de suas
possibilidades de aplicação e relações com outros textos normativos,
ou ainda, do âmbito do real sobre o qual incidirá ou que é tomado como
relevante para a própria formulação do texto.
3. No caso, tem-se o complexo contexto da chamada "Lei de Anistia" (Lei nº
6.683/79), a qual foi anunciada como medida para o perdão e a exclusão,
para efeitos penais, de todos os atos políticos ou "conexos" (entendida essa
expressão em sentido amplo e pouco técnico, no sentido de "relacionados"),
no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 -
ou seja, dos dias que antecederam a posse do Presidente João Goulart até
o período imediatamente anterior à promulgação da própria Anistia,
compreendendo mais de quinze anos do regime de exceção, além do período
anterior já referido.
4. A Lei de Anistia, por todo o contexto histórico de sua discussão
e aprovação, foi etapa fundamental do restabelecimento do Estado de
Direito efetivo no Brasil. É, nesse sentido, lei da maior excepcionalidade,
traduzida como medida de consenso entre setores relevantes da sociedade e
do meio político, bem assim do comando do governo militar, para iniciar a
transição final com o reencontro de milhares de pessoas presas, torturadas
ou exiladas, que poderiam retornar à liberdade ou ao território nacional por
meio da medida. Tratando-se de acordo, e não de uma batalha em que se separam
vencedores e vencidos, o caminho escolhido foi o da concórdia possível,
com a consequente impossibilidade jurídica de punição individual tanto
dos jovens que se lançaram em armas na luta contra a opressão, quanto
de agentes estatais de diversos tipos que, nos mais variados contextos,
impuseram sevícias ou a morte a brasileiros até o final dos anos 1970.
5. Quando a Lei 6.683/79 dispõe acerca da anistia de todos os crimes
"cometidos" no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e
15 de agosto de 1979, não se tem aí mero marco temporal para condutas
criminosas. O que há é delimitação de um período histórico de extrema
turbulência ou, em sua maior parte, de vigência de regime de exceção,
em que atos amoldáveis a crimes graves foram praticados em favor do ou em
combate ao governo militar. Não podem os marcos temporais em questão, ou o
vocábulo "cometidos", ser tomados com o sentido usual que seria extraído
de outros enunciados normativos inseridos em outros contextos ou regimes
jurídicos. Aqui, a referência é claramente a um círculo de fatos:
os crimes cujo núcleo fático tenha tido como distinção temporal ter
ocorrido na precitada quadra histórica, e como marca material o caráter
político ou de crime conexo ao político, no sentido de atos em tese
criminosos relacionados a ações políticas de defesa do regime militar
(frequentemente praticados por agentes de Estado, com a complacência e
permissividade, ou mesmo comando, do regime ditatorial), ou de combate ao
mesmo regime por atos políticos e até enfrentamentos armados.
6. Assim, são abrangidos pela anistia os fatos originalmente típicos
(políticos ou conexos) cujo núcleo de cometimento tenha se dado no período
de exceção, não se tratando, neste contexto, de simples vislumbre temporal,
com uso da categoria do crime permanente, para inferir que em tese um ato
de ocultação teria se protraído para além de 15 de agosto de 1979. A
anistia abarca os crimes cometidos no período de setembro de 1961 a agosto
de 1979 em seu núcleo fático.
7. Os crimes políticos ou a eles conexos cujo núcleo de ação tenha
ocorrido no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de
agosto de 1979 (daí advindo a expressão legal "cometidos", neste contexto)
se encontram abarcados por anistia, nos termos do art. 1º da Lei 6.683/79,
inclusive os de natureza em tese permanente, ressalvados apenas os casos em
que novos atos efetivos e autônomos tenham ultrapassado o lapso temporal
previsto na precitada disposição legal.
8. A denúncia que inaugura os autos retrata situação desse jaez, ao
imputar ao embargante Alcides Singillo a prática de ocultação de cadáver
de militante político contrário ao regime militar, mediante atos cujo
cometimento teria se dado em 1972. A não apresentação do cadáver como
omissão acessória dessa prática anterior, e a ela intimamente ligada, não
alcança existência autônoma que se dissocie do comando descriminalizador
da Lei 6.683/79, porquanto não se narram condutas efetivamente praticadas,
ou comandadas intelectualmente pelo réu, que se autonomizem desse contexto
e se protraiam para além de 15 de agosto de 1979.
9. O julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca de crimes
permanentes em tese cometidos por agentes da repressão no Brasil no período
da ditadura militar não poderia se sobrepor a uma disposição legal que
retira o caráter criminoso dos fatos e que foi reconhecida pelo Supremo
Tribunal Federal, em julgado com efeitos vinculantes, como integralmente
recepcionada pela atual ordem constitucional pátria.
10. Embargos infringentes providos. Mantida a extinção da ação penal.Decisão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide
a Egrégia Quarta Seção do Tribunal Regional Federal da 3ª Região,
por maioria, dar provimento aos embargos infringentes, nos termos do voto
do Relator. Vencidos os Desembargadores Federais Paulo Fontes e Fausto De
Sanctis, que negavam provimento ao recurso.
Data do Julgamento
:
21/03/2019
Data da Publicação
:
01/04/2019
Classe/Assunto
:
EIfNu - EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE - 7062
Órgão Julgador
:
QUARTA SEÇÃO
Relator(a)
:
DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI
Comarca
:
TRIBUNAL - TERCEIRA REGIÃO
Tipo
:
Acórdão
Referência
legislativa
:
LEG-FED LEI-6683 ANO-1979 ART-1
LEI DE ANISTIA
***** CP-40 CÓDIGO PENAL DE 1940
LEG-FED DEL-2848 ANO-1940 ART-211
Fonte da publicação
:
e-DJF3 Judicial 1 DATA:01/04/2019
..FONTE_REPUBLICACAO:
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