TRF3 0006105-16.2004.4.03.6181 00061051620044036181
APELAÇÃO CRIMINAL. GESTÃO FRAUDULENTA. INÉPCIA DA
DENÚNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 4º DA
LEI 7.492/86. PRELIMINARES REJEITADAS. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO
COMPROVADOS. TIPICIDADE MATERIAL. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA NÃO
CONFIGURADA. DOSIMETRIA. PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. QUANTIDADE DE
DIAS MULTA. CRITÉRIO TRIFÁSICO. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.
Tratando-se de crime de autoria coletiva praticado no âmbito da pessoa
jurídica, não se pode exigir que o órgão de acusação tenha, no momento de
oferecimento da denúncia, condições de individualizar de maneira minudente
a conduta de cada corréu, eis que tal participação somente será delineada
ao cabo da instrução criminal.
Os fatos descritos na denúncia evidenciam a ocorrência de fato típico,
qual seja, a gestão fraudulenta da seguradora Martinelli, mediante a
contabilização no ativo de despesas não comprovadas por notas fiscais,
distorcendo o resultado de modo a inflar o ativo e diminuir o passivo da
seguradora, e, ainda, pela falta de registro e constituição de provisão de
sinistros a liquidar por ocasião do aviso de sinistro, sendo que a inicial
acusatória encontra suporte probatório no procedimento administrativo
fiscal acostado aos autos.
No caso concreto, a denúncia foi recebida em 07/03/07, e, na mesma
oportunidade, o magistrado determinou a citação dos réus para o
interrogatório, que foi efetivamente realizado em 25/07/2007 e a defesa
prévia foi apresentada em 30/07/2007, ou seja, todos os atos foram anteriores
à vigência da Lei 11.719/08, que foi publicada em 23.06.2008 e entrou em
vigor 60 dias após a publicação.
A norma que introduziu a resposta à acusação e alterou o momento da
realização do interrogatório do réu, contida na Lei 11.719/08, possui
natureza processual, estando sujeita ao princípio tempus regit actum, de
maneira que sua aplicabilidade é imediata, mas não retroativa. Desse modo,
permanecem hígidos os atos realizados em momento anterior à sua vigência.
A conduta de gerir fraudulentamente uma instituição financeira não pode
ser caracterizada como algo absolutamente vago ou genérico. Trata-se de
tipo penal aberto, mas dentro dos limites constitucionais. Precedentes.
Dentre as condutas narradas na denúncia, o acusado foi condenado apenas pelo
delito de gestão fraudulenta, em razão da "contabilização no ativo de
despesas não comprovadas por notas fiscais, aumentando o ativo e distorcendo
o resultado, pois não foram deduzidas como despesas, inflando indevidamente
o ativo da empresa", conduta descrita no item "i" da inicial. Além disso,
o magistrado entendeu que o crime previsto no art. 10 da Lei 7.492/86, apenas
no que se refere à conduta de não registrar nem constituir provisão de
sinistros a liquidar por ocasião do aviso de sinistro (item "a" da denúncia),
restou absorvida pelo crime do art. 4º da Lei 7.492/86.
A materialidade está demonstrada através do inquérito policial
nº12-0194/04, que foi instaurado em decorrência de processo administrativo
nº 15414.100678/2002-77 instaurado pela SUSEP (Superintendência de Seguros
Privados) através da Portaria 1.382 de 05/06/2002, para apurar as causas
que levaram à liquidação extrajudicial da Martinelli Seguradora S.A.
A fraude consistiu na contabilização, no ativo, de créditos de difícil
ou impossível recebimento e lançamentos de pagamentos diversos - como
fornecedores, honorários, remunerações de prestadores de serviços,
auditores, atuários, consultores, mensalidade de leasing, adiantamentos a
empresas do grupo - em conta de caráter genérico (intitulada "adiantamento a
fornecedores"), sem a apresentação das notas fiscais correspondentes e sem os
respectivos lançamentos na Conta Resultados, de modo a aumentar indevidamente
o ativo, induzindo a erro não só a SUSEP como também o mercado financeiro.
Em relação ao lançamento de pagamentos diversos desprovidos de notas
fiscais, não socorre à defesa a alegação de que as despesas teriam sido
efetivamente pagas. Ao deixar de contabilizar esses valores na Conta Resultado,
a empresa não deduziu tais quantias como despesas, distorcendo, portanto,
a real situação econômica, uma vez que tal manobra inflava o ativo. Desse
modo, perante terceiros, a Martinelli apresentava uma situação econômica
bem mais favorável que a real.
A irregularidade na contabilização, em nenhum momento, foi mencionada
pela Seguradora, que sequer propôs a implementação de ajustes contábeis,
nos termos em que apontado pela SUSEP nos Relatórios de Direção Fiscal,
porque, obviamente, tais ajustes afetariam o balanço patrimonial e, via de
consequência, agravariam sua situação financeira.
Os ardis na contabilidade devem ser vistos como práticas criminosas habituais
dirigidas ao engano de clientes, investidores, fiscalização, entre outros,
razão pela qual não há de se falar em desclassificação para o delito
de gestão temerária.
No tocante do delito do art. 10 da Lei 7.492/86, que restou absorvido pelo
crime de gestão fraudulenta, ficou comprovado que a seguradora omitiu
elemento exigido pela legislação em demonstrativos contábeis.
O bem jurídico protegido pela norma penal (art. 4º da Lei 7.492/86)
foi efetivado atingido. Diferentemente do que sustenta a defesa, não
se tratou de mera irregularidade administrativa. A conduta típica foi
capaz de abalar a confiança depositada no Sistema Financeiro Nacional,
uma vez que a distorção fraudulenta dos resultados fez com que os agentes
de mercado fossem ludibriados. A seguradora operava apresentando uma falsa
situação econômica, muito mais favorável que a real, e com isso, evitava
a necessidade de maior aporte de capital.
O crime de gestão fraudulenta, delito formal, no qual a lei incriminadora
se satisfaz com a conduta independentemente da ocorrência do resultado,
configura-se diante da realização, pelo administrador da empresa, de manobras
ardilosas, cometimento de fraudes, de condutas arriscadas que destoam do
padrão normal de condução dos negócios na área empresarial financeira; é
a malícia que vai muito além de um nível tolerável na área empresarial.
A partir de setembro/1999, com o ingresso da empresa ALBA, até junho/2001,
Horácio administrou informalmente a Martinelli. A prova testemunhal é
sólida e harmônica nesse sentido. A partir de 2001, o apelante ocupou
formalmente o cargo de Diretor Presidente, sendo responsável pela plena
gestão da Martinelli seguradora.
O recorrente optou por maquiar a verdadeira situação econômica da seguradora
através de manobras contábeis, a fim de escapar da exigência de aporte de
recursos, que, segundo a SUSEP, seriam indispensáveis para a continuidade
dos negócios.
O fato de o réu ter pleiteado a troca de seu contador não possui o condão
de afastar o dolo de sua conduta.
Embora a defesa assevere que a situação deficitária já existia quando do
ingresso de Horácio na Martinelli, o fato é que as práticas ilícitas,
consistentes na não contabilização de despesas, que inflavam o ativo e
maquiavam o resultado, permaneceram após a gestão do acusado.
O acusado está sendo condenado penalmente por gerir fraudulentamente a
companhia de seguros e não por deixar de efetuar os aportes de recursos
exigidos pela SUSEP, como insiste em sustentar a defesa. Com efeito, as
privações financeiras não autorizam o acusado a administrar a seguradora
com má-fé, valendo-se de artifícios fraudulentos com o escopo de ludibriar
terceiros, tampouco configuram a causa supralegal excludente da culpabilidade
da inexigibilidade de conduta diversa.
Dosimetria. A atuação gerencial fraudulenta foi um dos motivos que levaram à
liquidação extrajudicial da empresa e posterior falência, o que extrapola
o ordinário em crime dessa espécie e permite a exasperação da pena-base
em razão das consequências do crime.
A quantidade de dias multa deve observar o mesmo critério trifásico de
cálculo da pena corporal e, por conseguinte, deve ser proporcional à mesma.
Prestação pecuniária destinada, de ofício, à União Federal.
Determinada a execução provisória da pena.
Apelação parcialmente provida.
Ementa
APELAÇÃO CRIMINAL. GESTÃO FRAUDULENTA. INÉPCIA DA
DENÚNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 4º DA
LEI 7.492/86. PRELIMINARES REJEITADAS. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO
COMPROVADOS. TIPICIDADE MATERIAL. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA NÃO
CONFIGURADA. DOSIMETRIA. PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. QUANTIDADE DE
DIAS MULTA. CRITÉRIO TRIFÁSICO. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.
Tratando-se de crime de autoria coletiva praticado no âmbito da pessoa
jurídica, não se pode exigir que o órgão de acusação tenha, no momento de
oferecimento da denúncia, condições de individualizar de maneira minudente
a conduta de cada corréu, eis que tal participação somente será delineada
ao cabo da instrução criminal.
Os fatos descritos na denúncia evidenciam a ocorrência de fato típico,
qual seja, a gestão fraudulenta da seguradora Martinelli, mediante a
contabilização no ativo de despesas não comprovadas por notas fiscais,
distorcendo o resultado de modo a inflar o ativo e diminuir o passivo da
seguradora, e, ainda, pela falta de registro e constituição de provisão de
sinistros a liquidar por ocasião do aviso de sinistro, sendo que a inicial
acusatória encontra suporte probatório no procedimento administrativo
fiscal acostado aos autos.
No caso concreto, a denúncia foi recebida em 07/03/07, e, na mesma
oportunidade, o magistrado determinou a citação dos réus para o
interrogatório, que foi efetivamente realizado em 25/07/2007 e a defesa
prévia foi apresentada em 30/07/2007, ou seja, todos os atos foram anteriores
à vigência da Lei 11.719/08, que foi publicada em 23.06.2008 e entrou em
vigor 60 dias após a publicação.
A norma que introduziu a resposta à acusação e alterou o momento da
realização do interrogatório do réu, contida na Lei 11.719/08, possui
natureza processual, estando sujeita ao princípio tempus regit actum, de
maneira que sua aplicabilidade é imediata, mas não retroativa. Desse modo,
permanecem hígidos os atos realizados em momento anterior à sua vigência.
A conduta de gerir fraudulentamente uma instituição financeira não pode
ser caracterizada como algo absolutamente vago ou genérico. Trata-se de
tipo penal aberto, mas dentro dos limites constitucionais. Precedentes.
Dentre as condutas narradas na denúncia, o acusado foi condenado apenas pelo
delito de gestão fraudulenta, em razão da "contabilização no ativo de
despesas não comprovadas por notas fiscais, aumentando o ativo e distorcendo
o resultado, pois não foram deduzidas como despesas, inflando indevidamente
o ativo da empresa", conduta descrita no item "i" da inicial. Além disso,
o magistrado entendeu que o crime previsto no art. 10 da Lei 7.492/86, apenas
no que se refere à conduta de não registrar nem constituir provisão de
sinistros a liquidar por ocasião do aviso de sinistro (item "a" da denúncia),
restou absorvida pelo crime do art. 4º da Lei 7.492/86.
A materialidade está demonstrada através do inquérito policial
nº12-0194/04, que foi instaurado em decorrência de processo administrativo
nº 15414.100678/2002-77 instaurado pela SUSEP (Superintendência de Seguros
Privados) através da Portaria 1.382 de 05/06/2002, para apurar as causas
que levaram à liquidação extrajudicial da Martinelli Seguradora S.A.
A fraude consistiu na contabilização, no ativo, de créditos de difícil
ou impossível recebimento e lançamentos de pagamentos diversos - como
fornecedores, honorários, remunerações de prestadores de serviços,
auditores, atuários, consultores, mensalidade de leasing, adiantamentos a
empresas do grupo - em conta de caráter genérico (intitulada "adiantamento a
fornecedores"), sem a apresentação das notas fiscais correspondentes e sem os
respectivos lançamentos na Conta Resultados, de modo a aumentar indevidamente
o ativo, induzindo a erro não só a SUSEP como também o mercado financeiro.
Em relação ao lançamento de pagamentos diversos desprovidos de notas
fiscais, não socorre à defesa a alegação de que as despesas teriam sido
efetivamente pagas. Ao deixar de contabilizar esses valores na Conta Resultado,
a empresa não deduziu tais quantias como despesas, distorcendo, portanto,
a real situação econômica, uma vez que tal manobra inflava o ativo. Desse
modo, perante terceiros, a Martinelli apresentava uma situação econômica
bem mais favorável que a real.
A irregularidade na contabilização, em nenhum momento, foi mencionada
pela Seguradora, que sequer propôs a implementação de ajustes contábeis,
nos termos em que apontado pela SUSEP nos Relatórios de Direção Fiscal,
porque, obviamente, tais ajustes afetariam o balanço patrimonial e, via de
consequência, agravariam sua situação financeira.
Os ardis na contabilidade devem ser vistos como práticas criminosas habituais
dirigidas ao engano de clientes, investidores, fiscalização, entre outros,
razão pela qual não há de se falar em desclassificação para o delito
de gestão temerária.
No tocante do delito do art. 10 da Lei 7.492/86, que restou absorvido pelo
crime de gestão fraudulenta, ficou comprovado que a seguradora omitiu
elemento exigido pela legislação em demonstrativos contábeis.
O bem jurídico protegido pela norma penal (art. 4º da Lei 7.492/86)
foi efetivado atingido. Diferentemente do que sustenta a defesa, não
se tratou de mera irregularidade administrativa. A conduta típica foi
capaz de abalar a confiança depositada no Sistema Financeiro Nacional,
uma vez que a distorção fraudulenta dos resultados fez com que os agentes
de mercado fossem ludibriados. A seguradora operava apresentando uma falsa
situação econômica, muito mais favorável que a real, e com isso, evitava
a necessidade de maior aporte de capital.
O crime de gestão fraudulenta, delito formal, no qual a lei incriminadora
se satisfaz com a conduta independentemente da ocorrência do resultado,
configura-se diante da realização, pelo administrador da empresa, de manobras
ardilosas, cometimento de fraudes, de condutas arriscadas que destoam do
padrão normal de condução dos negócios na área empresarial financeira; é
a malícia que vai muito além de um nível tolerável na área empresarial.
A partir de setembro/1999, com o ingresso da empresa ALBA, até junho/2001,
Horácio administrou informalmente a Martinelli. A prova testemunhal é
sólida e harmônica nesse sentido. A partir de 2001, o apelante ocupou
formalmente o cargo de Diretor Presidente, sendo responsável pela plena
gestão da Martinelli seguradora.
O recorrente optou por maquiar a verdadeira situação econômica da seguradora
através de manobras contábeis, a fim de escapar da exigência de aporte de
recursos, que, segundo a SUSEP, seriam indispensáveis para a continuidade
dos negócios.
O fato de o réu ter pleiteado a troca de seu contador não possui o condão
de afastar o dolo de sua conduta.
Embora a defesa assevere que a situação deficitária já existia quando do
ingresso de Horácio na Martinelli, o fato é que as práticas ilícitas,
consistentes na não contabilização de despesas, que inflavam o ativo e
maquiavam o resultado, permaneceram após a gestão do acusado.
O acusado está sendo condenado penalmente por gerir fraudulentamente a
companhia de seguros e não por deixar de efetuar os aportes de recursos
exigidos pela SUSEP, como insiste em sustentar a defesa. Com efeito, as
privações financeiras não autorizam o acusado a administrar a seguradora
com má-fé, valendo-se de artifícios fraudulentos com o escopo de ludibriar
terceiros, tampouco configuram a causa supralegal excludente da culpabilidade
da inexigibilidade de conduta diversa.
Dosimetria. A atuação gerencial fraudulenta foi um dos motivos que levaram à
liquidação extrajudicial da empresa e posterior falência, o que extrapola
o ordinário em crime dessa espécie e permite a exasperação da pena-base
em razão das consequências do crime.
A quantidade de dias multa deve observar o mesmo critério trifásico de
cálculo da pena corporal e, por conseguinte, deve ser proporcional à mesma.
Prestação pecuniária destinada, de ofício, à União Federal.
Determinada a execução provisória da pena.
Apelação parcialmente provida.Decisão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª
Região, por unanimidade, rejeitar as preliminares e dar parcial provimento à
apelação da defesa apenas para reduzir a quantidade de dias multa para 11
dias, mantido o valor unitário fixado na sentença e, de ofício, destinar
a prestação pecuniária à União Federal, nos termos do relatório e voto
que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Data do Julgamento
:
24/04/2018
Data da Publicação
:
07/05/2018
Classe/Assunto
:
Ap. - APELAÇÃO CRIMINAL - 56080
Órgão Julgador
:
DÉCIMA PRIMEIRA TURMA
Relator(a)
:
DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI
Comarca
:
TRIBUNAL - TERCEIRA REGIÃO
Tipo
:
Acórdão
Referência
legislativa
:
***** LCCSF-86 LEI DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL
LEG-FED LEI-7492 ANO-1986 ART-4 ART-10
LEG-FED LEI-11719 ANO-2008
Fonte da publicação
:
e-DJF3 Judicial 1 DATA:07/05/2018
..FONTE_REPUBLICACAO:
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