TRF3 0008921-39.2012.4.03.6100 00089213920124036100
APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERMEDIAÇÃO DE CONTRATO
ENTRE MODELOS BRASILEIRAS E AGÊNCIA INTERNACIONAL. INEXISTÊNCIA DE
VIOLAÇÃO AO PROTOCOLO ADICIONAL À CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA
O CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL RELATIVO À PREVENÇÃO, REPRESSÃO E
PUNIÇÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS. INFORMAÇÕES ENGANOSAS, INADEQUADAS
E INSUFICIENTES FORNECIDAS PELOS RÉUS ÀS MODELOS. ARTIGO 14 DO CÓDIGO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL RECONHECIDA. ARTIGO 186
DO CÓDIGO CIVIL. CONDENAÇÃO DOS RÉUS AO PAGAMENTO DE DANOS MORAIS ÀS
MODELOS. MANTIDA A CONCESSÃO DOS BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA AO RÉU
BENEDITO. NÃO CABIMENTO DA RECONVENÇÃO DOS RÉUS NOS TERMOS DO ARTIGO
315 DO CPC/1973. INCABÍVEL A CONDENAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
NAS VERBAS DE SUCUMBÊNCIA.
1. Conhece-se dos dois recursos de apelação interpostos pelo Ministério
Público Federal, que serão processados e julgados em conjunto, conforme
requerido expressamente no segundo recurso interposto pelo Parquet.
2. O Ministério Público Federal alega violação ao Código de Defesa do
Consumidor por parte dos réus Raquel Felipe e Benedito Aparecido Bastos na
prestação de serviço às modelos Ludmila, Luana e Rayana, consistente
na intermediação da contratação das jovens pela agência de modelos
indiana K. Models; bem como violação aos preceitos do Protocolo Adicional
à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado relativo à
Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial
Crianças e Mulheres, ante a ocorrência de cárcere privado e trabalhos
forçados das três modelos na Índia.
3. O Decreto da Presidência da República nº 5.017, de 12 de março de
2004, promulgou o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas
contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão
e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, após
aprovação de seu texto pelo Congresso Nacional em 29 de maio de 2003, e
a sua ratificação pelo Governo Federal junto à Secretaria-Geral da ONU,
em 29 de janeiro de 2004.
4. Os objetivos do referido Protocolo estão elencados em seu artigo 2, nos
seguintes termos: a) prevenir e combater o tráfico de pessoas, prestando
uma atenção especial às mulheres e às crianças; b) proteger e ajudar as
vítimas desse tráfico, respeitando plenamente os seus direitos humanos;
e c) promover a cooperação entre os Estados Partes de forma a atingir
esses objetivos.
5. No caso, da análise do relato das próprias modelos, resta evidenciado que
a situação posta nos autos não se enquadra naquelas previstas no referido
Protocolo. Isso porque em nenhum momento as modelos sofreram exploração
no sentido adotado pelo documento em questão, qual seja, "a exploração da
prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho
ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura,
a servidão ou a remoção de órgãos".
6. Noutro giro, a r. sentença entendeu pela ausência de responsabilidade
contratual dos réus, sob o fundamento de que "os contratos em questão
(fls. 354/361, 374/378 e 864/880) foram firmados diretamente entre as modelos e
a agência K Models, representada por Vivek Sigh, sem intervenção dos agentes
brasileiros, ora réus, de modo que não poderiam eles ser responsabilizados
por contrato firmado por terceiro".
7. De fato, as questões atinentes ao cachê, às passagens aéreas, ao valor
recebido semanalmente ("pocket money") e ao aluguel, durante a estadia das
modelos na Índia, dizem respeito ao contrato firmado diretamente entre elas
e a agência K Models, de Vivek Singh.
8. Todavia, embora as modelos tivessem autonomia para aceitar, ou não, o
trabalho proposto, os réus influenciaram diretamente essa suposta escolha,
convencendo-as com promessas que não foram cumpridas, mormente a de lhes
dar assistência no caso de ocorrer qualquer problema, bem como omitindo
questões como a jornada exaustiva de trabalho, as condições do local onde
ficariam, os problemas de saneamento básico, de falta de água quente e de
racionamento de água na Índia.
9. Inclusive, a ré Raquel admitiu, em seu depoimento ao Juízo, que sabia
sobre esse problema da água e, ainda assim, não informou as modelos. Relatou,
ainda, que conheceu a empresa de Vivek por indicação de uma amiga modelo
que morava na Índia, bem como que a empresa era nova e que conversou com
ele apenas por telefone e pela internet, antes de enviar as modelos para
trabalhar naquele país.
10. Ressalte-se, outrossim, que Luana Ferreira Verri contava, à época,
com apenas 15 anos de idade, razão pela qual não obteve visto de trabalho,
tendo a ré Raquel fornecido informação enganosa à menor e a seus pais,
no sentido de que o responsável pela agência de modelos na Índia, Vivek
Singh, providenciaria o visto de trabalho de Luana, o que nunca ocorreu.
11. Ademais, embora Raquel tenha tentado resolver os problemas de
relacionamento entre as meninas e Vivek, em nenhum momento cogitou
ir até lá, como havia prometido, tampouco empreendeu esforços para
possibilitar efetivamente o retorno das modelos ao Brasil, ao contrário,
passou informações enganosas para evitar que as modelos ou o seu genitor
entrassem em contato com autoridades, e, ainda, tentou influenciá-las a
permanecerem na Índia ou a firmarem novo contrato de trabalho na Tailândia,
com o nítido intuito de preservar seu interesse financeiro.
12. O sr. Damião Verri, genitor de Ludmila e Luana, informou, também, que
suas filhas voltaram a trabalhar com a ré Raquel no Brasil somente porque
Luana queria ter acesso ao material de seu trabalho na Índia, que não lhe
tinha sido entregue.
13. Em seu depoimento ao Juízo, Ludmila relatou que parou de trabalhar com a
ré Raquel no Brasil quando passou a receber e-mails, supostamente enviados
pelo esposo da ré, que a culpavam pelo o ocorrido. Narrou, ainda, que, em
razão de toda pressão sofrida nesse tempo, teve depressão e faz tratamento
psicológico, bem como que o seu joelho não se recuperou totalmente e que
precisa fazer fisioterapia constantemente.
14. Da mesma forma, o réu Benedito se comprometeu a dar suporte para a modelo
Rayana, porém, quando os problemas começaram a surgir, este passou a se
ausentar dos únicos meios de comunicação utilizados entre eles (MSN/Skype),
bem como a se esquivar dos contatos telefônicos dos pais da modelo. Rayana
relatou, ainda, que, em razão das evasivas do réu, seus pais chegaram a
procurar o Consulado da Índia no Brasil, bem como que Vivek chegou a lhe
mandar mensagens pelo Facebook e por e-mail, com ameaças e até mesmo com
uma montagem fotográfica, insinuando que ela era prostituta.
15. Em seu depoimento ao Juízo, o réu Benedito, embora tenha afirmado que
tomou todas as precauções antes de enviar Rayana para trabalhar na Índia,
relatou que não tinha conhecimento sobre a má fama de Vivek, tampouco
do local onde a modelo ficaria. Disse, ainda, que Vivek era um "paizão"
para as meninas e que a suposta vigilância dele deveria ser, na verdade,
excesso de zelo.
16. Por fim, em seu depoimento ao Juízo, o i. Vice-Cônsul à época,
Rafael Godinho, corroborando as declarações que o Consulado havia enviado,
relatou que, no dia em que efetuaram o resgate das meninas, o delegado
indiano lhe disse que as mulheres estrangeiras corriam um risco muito grande
de serem estupradas na Índia, sob a alegação de que era impossível que
usassem aquelas roupas sem desejar que fossem estupradas. Relatou, ainda,
o i. Vice-Cônsul que o local onde as meninas moravam ficava em uma região
onde havia muitos prostíbulos e tráfico de drogas.
17. Tais informações evidenciam, ainda mais, o fato de que as modelos e
seus genitores não foram devidamente alertados pelos réus sobre a real
condição em que trabalhariam na Índia, tampouco sobre os cuidados que
deveriam tomar para não correrem riscos em um país cuja cultura é muito
diferente da brasileira.
18. Assim, não obstante não haja cláusula contratual específica sobre a
responsabilidade dos réus em face do ocorrido com as modelos, entende-se que
esta restou fartamente demonstrada no tocante às informações enganosas,
inadequadas e insuficientes fornecidas pelos réus, nos termos do artigo 14
do Código de Defesa do Consumidor, com o nítido intuito de influenciar
a decisão das modelos adolescentes e de seus pais, a fim de garantir o
recebimento da comissão que lhes é cabida nesse tipo de contrato.
19. Nos termos do artigo 186 do Código Civil, comete ato ilícito aquele
que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral.
20. No caso, os danos materiais se referem ao contrato firmado entre as
modelos e a agência indiana K Models, sendo tal agência a responsável
pelas despesas e pelo pagamento das modelos durante a estadia na Índia,
de modo que não podem ser imputados aos réus.
21. Todavia, os danos morais estão fartamente demonstrados nos autos,
mormente pelo fato das modelos serem adolescentes, sem preparo psicológico
para passar por situações tão periclitantes como a que passaram. Nesse
ponto, o i. Vice-Cônsul relatou ao Juízo que, no dia do resgate, as
meninas estavam extremamente nervosas, ressaltando que durante toda a sua
vida de trabalho de assistência consular, nunca tinha visto pessoas tão
transtornadas como elas se encontravam.
22. Alie-se a isso o fato de viverem constantemente com medo de Vivek Singh,
que, além de fazer uso constante de bebida alcoólica, tinha múltiplas
passagens pela polícia, por agressão, envolvimento com narcóticos e
rufianismo, segundo relatado pela polícia local de Mumbai ao Vice-Cônsul
brasileiro, além da sensação de que estavam sendo vigiadas, do excesso
de trabalho e das condições precárias da moradia, causando-lhes um enorme
desgaste emocional.
23. Desta feita, são inequívocos os danos emocionais e psicológicos sofridos
pelas jovens na Índia, razão pela qual se condena a ré Raquel Felipe a
pagar, a título de danos morais, a quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais)
para Ludmila Ferreira Verri e para Luana Ferreira Verri, totalizando R$
20.000,00 (vinte mil reais), bem como se condena o réu Benedito Aparecido
Bastos a pagar, a título de danos morais, o valor de R$ 10.000,00 (dez mil
reais) a Rayana Oliveira Nascimento.
24. Tendo em vista que a conduta ilícita da qual decorre a responsabilidade
civil dos réus se refere somente às informações enganosas fornecidas
por ambos às modelos e a seus genitores, não há que se falar em danos
morais coletivos, tampouco em ressarcimento dos danos materiais à União
em razão das despesas da viagem de volta das modelos ao Brasil.
25. Mantida a concessão dos benefícios da justiça gratuita ao réu Benedito,
uma vez que os documentos juntados pelo Parquet, por si só, não configuram
prova suficiente de que a declaração de pobreza do réu é inverídica. O
fato do réu Benedito ter participação societária em três empresas e ser
proprietário de uma moto não significa que tenha condições financeiras
de arcar com as custas processuais, sem prejuízo de seu sustento.
26. Não prospera a alegação dos réus-reconvintes de cabimento de sua
reconvenção. Isso porque, nos termos do parágrafo único do artigo 315
do CPC/1973, "não pode o réu, em seu próprio nome, reconvir ao autor,
quando este demandar em nome de outrem", e, no caso dos autos, por se tratar
de Ação Civil Pública, o Ministério Público Federal atua na condição
de substituto processual, tutelando interesse público. Precedentes.
27. No tocante ao pedido de condenação do Parquet aos ônus da sucumbência,
verifica-se que o artigo 18 da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº
7.347/85) estabelece que "Nas ações de que trata esta lei, não haverá
(...) condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em
honorários de advogado, custas e despesas processuais".
28. Nesse sentir, o C. Superior Tribunal de Justiça já pacificou o
entendimento de que, em sede de Ação Civil Pública, só será cabível a
condenação do Ministério Público Federal nas verbas de sucumbência em
caso de comprovada má-fé. Precedente.
29. Apelação dos réus a que se nega provimento. Apelação do Ministério
Público Federal a que se dá parcial provimento.
Ementa
APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERMEDIAÇÃO DE CONTRATO
ENTRE MODELOS BRASILEIRAS E AGÊNCIA INTERNACIONAL. INEXISTÊNCIA DE
VIOLAÇÃO AO PROTOCOLO ADICIONAL À CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA
O CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL RELATIVO À PREVENÇÃO, REPRESSÃO E
PUNIÇÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS. INFORMAÇÕES ENGANOSAS, INADEQUADAS
E INSUFICIENTES FORNECIDAS PELOS RÉUS ÀS MODELOS. ARTIGO 14 DO CÓDIGO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE CIVIL RECONHECIDA. ARTIGO 186
DO CÓDIGO CIVIL. CONDENAÇÃO DOS RÉUS AO PAGAMENTO DE DANOS MORAIS ÀS
MODELOS. MANTIDA A CONCESSÃO DOS BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA AO RÉU
BENEDITO. NÃO CABIMENTO DA RECONVENÇÃO DOS RÉUS NOS TERMOS DO ARTIGO
315 DO CPC/1973. INCABÍVEL A CONDENAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
NAS VERBAS DE SUCUMBÊNCIA.
1. Conhece-se dos dois recursos de apelação interpostos pelo Ministério
Público Federal, que serão processados e julgados em conjunto, conforme
requerido expressamente no segundo recurso interposto pelo Parquet.
2. O Ministério Público Federal alega violação ao Código de Defesa do
Consumidor por parte dos réus Raquel Felipe e Benedito Aparecido Bastos na
prestação de serviço às modelos Ludmila, Luana e Rayana, consistente
na intermediação da contratação das jovens pela agência de modelos
indiana K. Models; bem como violação aos preceitos do Protocolo Adicional
à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado relativo à
Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial
Crianças e Mulheres, ante a ocorrência de cárcere privado e trabalhos
forçados das três modelos na Índia.
3. O Decreto da Presidência da República nº 5.017, de 12 de março de
2004, promulgou o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas
contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão
e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, após
aprovação de seu texto pelo Congresso Nacional em 29 de maio de 2003, e
a sua ratificação pelo Governo Federal junto à Secretaria-Geral da ONU,
em 29 de janeiro de 2004.
4. Os objetivos do referido Protocolo estão elencados em seu artigo 2, nos
seguintes termos: a) prevenir e combater o tráfico de pessoas, prestando
uma atenção especial às mulheres e às crianças; b) proteger e ajudar as
vítimas desse tráfico, respeitando plenamente os seus direitos humanos;
e c) promover a cooperação entre os Estados Partes de forma a atingir
esses objetivos.
5. No caso, da análise do relato das próprias modelos, resta evidenciado que
a situação posta nos autos não se enquadra naquelas previstas no referido
Protocolo. Isso porque em nenhum momento as modelos sofreram exploração
no sentido adotado pelo documento em questão, qual seja, "a exploração da
prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho
ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura,
a servidão ou a remoção de órgãos".
6. Noutro giro, a r. sentença entendeu pela ausência de responsabilidade
contratual dos réus, sob o fundamento de que "os contratos em questão
(fls. 354/361, 374/378 e 864/880) foram firmados diretamente entre as modelos e
a agência K Models, representada por Vivek Sigh, sem intervenção dos agentes
brasileiros, ora réus, de modo que não poderiam eles ser responsabilizados
por contrato firmado por terceiro".
7. De fato, as questões atinentes ao cachê, às passagens aéreas, ao valor
recebido semanalmente ("pocket money") e ao aluguel, durante a estadia das
modelos na Índia, dizem respeito ao contrato firmado diretamente entre elas
e a agência K Models, de Vivek Singh.
8. Todavia, embora as modelos tivessem autonomia para aceitar, ou não, o
trabalho proposto, os réus influenciaram diretamente essa suposta escolha,
convencendo-as com promessas que não foram cumpridas, mormente a de lhes
dar assistência no caso de ocorrer qualquer problema, bem como omitindo
questões como a jornada exaustiva de trabalho, as condições do local onde
ficariam, os problemas de saneamento básico, de falta de água quente e de
racionamento de água na Índia.
9. Inclusive, a ré Raquel admitiu, em seu depoimento ao Juízo, que sabia
sobre esse problema da água e, ainda assim, não informou as modelos. Relatou,
ainda, que conheceu a empresa de Vivek por indicação de uma amiga modelo
que morava na Índia, bem como que a empresa era nova e que conversou com
ele apenas por telefone e pela internet, antes de enviar as modelos para
trabalhar naquele país.
10. Ressalte-se, outrossim, que Luana Ferreira Verri contava, à época,
com apenas 15 anos de idade, razão pela qual não obteve visto de trabalho,
tendo a ré Raquel fornecido informação enganosa à menor e a seus pais,
no sentido de que o responsável pela agência de modelos na Índia, Vivek
Singh, providenciaria o visto de trabalho de Luana, o que nunca ocorreu.
11. Ademais, embora Raquel tenha tentado resolver os problemas de
relacionamento entre as meninas e Vivek, em nenhum momento cogitou
ir até lá, como havia prometido, tampouco empreendeu esforços para
possibilitar efetivamente o retorno das modelos ao Brasil, ao contrário,
passou informações enganosas para evitar que as modelos ou o seu genitor
entrassem em contato com autoridades, e, ainda, tentou influenciá-las a
permanecerem na Índia ou a firmarem novo contrato de trabalho na Tailândia,
com o nítido intuito de preservar seu interesse financeiro.
12. O sr. Damião Verri, genitor de Ludmila e Luana, informou, também, que
suas filhas voltaram a trabalhar com a ré Raquel no Brasil somente porque
Luana queria ter acesso ao material de seu trabalho na Índia, que não lhe
tinha sido entregue.
13. Em seu depoimento ao Juízo, Ludmila relatou que parou de trabalhar com a
ré Raquel no Brasil quando passou a receber e-mails, supostamente enviados
pelo esposo da ré, que a culpavam pelo o ocorrido. Narrou, ainda, que, em
razão de toda pressão sofrida nesse tempo, teve depressão e faz tratamento
psicológico, bem como que o seu joelho não se recuperou totalmente e que
precisa fazer fisioterapia constantemente.
14. Da mesma forma, o réu Benedito se comprometeu a dar suporte para a modelo
Rayana, porém, quando os problemas começaram a surgir, este passou a se
ausentar dos únicos meios de comunicação utilizados entre eles (MSN/Skype),
bem como a se esquivar dos contatos telefônicos dos pais da modelo. Rayana
relatou, ainda, que, em razão das evasivas do réu, seus pais chegaram a
procurar o Consulado da Índia no Brasil, bem como que Vivek chegou a lhe
mandar mensagens pelo Facebook e por e-mail, com ameaças e até mesmo com
uma montagem fotográfica, insinuando que ela era prostituta.
15. Em seu depoimento ao Juízo, o réu Benedito, embora tenha afirmado que
tomou todas as precauções antes de enviar Rayana para trabalhar na Índia,
relatou que não tinha conhecimento sobre a má fama de Vivek, tampouco
do local onde a modelo ficaria. Disse, ainda, que Vivek era um "paizão"
para as meninas e que a suposta vigilância dele deveria ser, na verdade,
excesso de zelo.
16. Por fim, em seu depoimento ao Juízo, o i. Vice-Cônsul à época,
Rafael Godinho, corroborando as declarações que o Consulado havia enviado,
relatou que, no dia em que efetuaram o resgate das meninas, o delegado
indiano lhe disse que as mulheres estrangeiras corriam um risco muito grande
de serem estupradas na Índia, sob a alegação de que era impossível que
usassem aquelas roupas sem desejar que fossem estupradas. Relatou, ainda,
o i. Vice-Cônsul que o local onde as meninas moravam ficava em uma região
onde havia muitos prostíbulos e tráfico de drogas.
17. Tais informações evidenciam, ainda mais, o fato de que as modelos e
seus genitores não foram devidamente alertados pelos réus sobre a real
condição em que trabalhariam na Índia, tampouco sobre os cuidados que
deveriam tomar para não correrem riscos em um país cuja cultura é muito
diferente da brasileira.
18. Assim, não obstante não haja cláusula contratual específica sobre a
responsabilidade dos réus em face do ocorrido com as modelos, entende-se que
esta restou fartamente demonstrada no tocante às informações enganosas,
inadequadas e insuficientes fornecidas pelos réus, nos termos do artigo 14
do Código de Defesa do Consumidor, com o nítido intuito de influenciar
a decisão das modelos adolescentes e de seus pais, a fim de garantir o
recebimento da comissão que lhes é cabida nesse tipo de contrato.
19. Nos termos do artigo 186 do Código Civil, comete ato ilícito aquele
que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral.
20. No caso, os danos materiais se referem ao contrato firmado entre as
modelos e a agência indiana K Models, sendo tal agência a responsável
pelas despesas e pelo pagamento das modelos durante a estadia na Índia,
de modo que não podem ser imputados aos réus.
21. Todavia, os danos morais estão fartamente demonstrados nos autos,
mormente pelo fato das modelos serem adolescentes, sem preparo psicológico
para passar por situações tão periclitantes como a que passaram. Nesse
ponto, o i. Vice-Cônsul relatou ao Juízo que, no dia do resgate, as
meninas estavam extremamente nervosas, ressaltando que durante toda a sua
vida de trabalho de assistência consular, nunca tinha visto pessoas tão
transtornadas como elas se encontravam.
22. Alie-se a isso o fato de viverem constantemente com medo de Vivek Singh,
que, além de fazer uso constante de bebida alcoólica, tinha múltiplas
passagens pela polícia, por agressão, envolvimento com narcóticos e
rufianismo, segundo relatado pela polícia local de Mumbai ao Vice-Cônsul
brasileiro, além da sensação de que estavam sendo vigiadas, do excesso
de trabalho e das condições precárias da moradia, causando-lhes um enorme
desgaste emocional.
23. Desta feita, são inequívocos os danos emocionais e psicológicos sofridos
pelas jovens na Índia, razão pela qual se condena a ré Raquel Felipe a
pagar, a título de danos morais, a quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais)
para Ludmila Ferreira Verri e para Luana Ferreira Verri, totalizando R$
20.000,00 (vinte mil reais), bem como se condena o réu Benedito Aparecido
Bastos a pagar, a título de danos morais, o valor de R$ 10.000,00 (dez mil
reais) a Rayana Oliveira Nascimento.
24. Tendo em vista que a conduta ilícita da qual decorre a responsabilidade
civil dos réus se refere somente às informações enganosas fornecidas
por ambos às modelos e a seus genitores, não há que se falar em danos
morais coletivos, tampouco em ressarcimento dos danos materiais à União
em razão das despesas da viagem de volta das modelos ao Brasil.
25. Mantida a concessão dos benefícios da justiça gratuita ao réu Benedito,
uma vez que os documentos juntados pelo Parquet, por si só, não configuram
prova suficiente de que a declaração de pobreza do réu é inverídica. O
fato do réu Benedito ter participação societária em três empresas e ser
proprietário de uma moto não significa que tenha condições financeiras
de arcar com as custas processuais, sem prejuízo de seu sustento.
26. Não prospera a alegação dos réus-reconvintes de cabimento de sua
reconvenção. Isso porque, nos termos do parágrafo único do artigo 315
do CPC/1973, "não pode o réu, em seu próprio nome, reconvir ao autor,
quando este demandar em nome de outrem", e, no caso dos autos, por se tratar
de Ação Civil Pública, o Ministério Público Federal atua na condição
de substituto processual, tutelando interesse público. Precedentes.
27. No tocante ao pedido de condenação do Parquet aos ônus da sucumbência,
verifica-se que o artigo 18 da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº
7.347/85) estabelece que "Nas ações de que trata esta lei, não haverá
(...) condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em
honorários de advogado, custas e despesas processuais".
28. Nesse sentir, o C. Superior Tribunal de Justiça já pacificou o
entendimento de que, em sede de Ação Civil Pública, só será cabível a
condenação do Ministério Público Federal nas verbas de sucumbência em
caso de comprovada má-fé. Precedente.
29. Apelação dos réus a que se nega provimento. Apelação do Ministério
Público Federal a que se dá parcial provimento.Decisão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide
a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por
unanimidade, negar provimento ao recurso de apelação dos réus e dar parcial
provimento ao recurso de apelação do Ministério Público Federal, nos termos
do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Data do Julgamento
:
21/08/2018
Data da Publicação
:
31/08/2018
Classe/Assunto
:
Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 2128454
Órgão Julgador
:
PRIMEIRA TURMA
Relator(a)
:
DESEMBARGADOR FEDERAL VALDECI DOS SANTOS
Comarca
:
TRIBUNAL - TERCEIRA REGIÃO
Tipo
:
Acórdão
Referência
legislativa
:
***** CC-02 CÓDIGO CIVIL DE 2002
LEG-FED LEI-10406 ANO-2002 ART-186
***** CPC-73 CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973
LEG-FED LEI-5869 ANO-1973 ART-315
***** CDC-90 CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
LEG-FED LEI-8078 ANO-1990 ART-14
***** LACP-85 LEI DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA
LEG-FED LEI-7347 ANO-1985 ART-18
Fonte da publicação
:
e-DJF3 Judicial 1 DATA:31/08/2018
..FONTE_REPUBLICACAO:
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