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Jurisprudência


TRF3 0009079-24.2008.4.03.6104 00090792420084036104

Ementa
APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO CIVIL. DIREITO DE PASSAGEM FORÇADA. ENCRAVAMENTO DE IMÓVEL. DESLOCAMENTO DE ALDEIA INDÍGENA. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. DANO MORAL COLETIVO. I - Ação civil pública ajuizada pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI - em face de particular, pretendendo que a parte ré venha a tolerar a passagem diuturna de indígenas, sobre sua propriedade rural, e de órgãos públicos e privados, os quais, respectivamente, prestem serviços aos indígenas ou detenham expressa autorização da FUNAI para acessar a Aldeia de Cerro Corá. II - Caso dos autos em que uma parcela da população indígena, residente até então na Aldeia do Agüapeú, mudou-se para os fundos da Terra Indígena de mesmo nome, constituindo um novo aldeamento de nome Cerro Corá. Tal mudança deu-se por razões próprias da etnia Guarani, segundo seus costumes, crenças e tradições. III - Quanto à possibilidade de utilização de transporte fluvial, a notícia que se tem é a de que a navegabilidade é variável, conforme menciona a União Federal, existindo apenas dois barcos para atender a Comunidade em apreço. O primeiro barco, segundo consta, encontra-se sem motor e o segundo, embora em bom estado, demanda uso de gasolina, algo nem sempre possível de ser comprado pela comunidade. A navegabilidade é restrita, pois depende das estações do ano, sendo que o rio sobe em épocas de chuvas e os galhos de árvores e a correnteza quase sempre impedem a passagem do barco. Vê-se, por outro prisma, que determinadas pessoas têm acesso sobre a propriedade do réu, como os comodatários da Fazenda residentes em áreas próximas à Aldeia Cerro Corá, mas outras não têm a mesma benesse. IV - No tocante ao confinamento (voluntariamente ou não) a que se sujeitaram os indígenas dessa nova aldeia Cerro Corá, o que se tem em vista no presente caso não é a inexistência absoluta de passagem dos indígenas daquela aldeia ao centro urbano mais próximo, ou seja, de Mongaguá, mas sim a visível dificuldade para acessá-lo. Perquire-se, isso sim, se o encravamento deve ser absoluto (e não parcial) e involuntário (e não por moto próprio), para que façam jus, ou não, à determinação judicial de acesso, prevista no art. 1.285 do Código Civil. V - O Enunciado 88 do CEJ (Centro de Estudo Judiciários do Conselho da Justiça Federal) dispõe que "O direito à passagem forçada, previsto no art. 1.285 do Código Civil, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica". O Enunciado proporcionou uma leitura mais alargada socialmente do conceito de "encravamento de imóvel", fugindo à regra hermética e encrustada de que encravamento pressupõe isolamento total e instransponível. VI - Tal conceito possui intersecção direta com a noção de função social da propriedade, direcionada da Constituição Federal para o art. 1.228, § 1º, do Código Civil. Assim, se determinada propriedade impede o adequado acesso de outra à via pública, colocando-se em risco de vida da população que nesta se fixou, de alguma maneira falta o elemento jurídico da função social em relação à primeira. VII - O obstáculo ao acesso à educação e à saúde da Comunidade indígena vizinha, da forma como se depreende nestes autos, é algo que não pode ser tolerado com a argumentação oposta do mero direito de propriedade. Não se está a discutir a posse ou o uso da propriedade alheia, mas sim o mero direito de passagem, de transposição. VIII - A transposição, no presente caso, é requisito mínimo para a dignidade humana dos integrantes da aldeia indígena em questão, sob pena de se conceber uma comunidade fadada ao confinamento, com crescente deterioração social por foça do abandono e isolamento forçado. Aceitar e incentivar o isolamento social como algo intrínseco à natureza indígena é refutar as regras elementares de convívio trazidas pela Constituição Federal, e enterrar aquelas outras regras relativas à dignidade da pessoa humana. IX - No caso vertente, a única passagem fluvial (a qual supera o tempo de 1 hora de viagem) é inadequada e insuficiente para a consecução dos fins de transporte e coloca em risco a integridade da população daquela Comunidade. Deve ser tida, pois, como suplementar. Sendo assim, determino que seja permitido o acesso dos integrantes da Comunidade Indígena Cerro Corá através da propriedade lindeira do réu, sem necessidade de prévia autorização deste ou de qualquer subordinado, como condição para a passagem dos moradores da aldeia à via pública. Da mesma forma ficam autorizados a transpor a referida propriedade os órgãos públicos acima mencionados, que tenham vinculação com a assistência aos membros da Comunidade em apreço. Todas as medidas de cuidado, preservação e proteção à propriedade alheia, assim como o cadastramento dos moradores da Comunidade indígena Cerro Corá e órgãos públicos poderão ser levadas a cabo entre as partes, consensualmente, para a melhor execução da presente determinação. X - Dano moral coletivo. Ausência de elementos para o acolhimento do pedido de indenização. XI - Recurso parcialmente provido.
Decisão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Data do Julgamento : 26/02/2019
Data da Publicação : 07/03/2019
Classe/Assunto : Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 2248200
Órgão Julgador : SEGUNDA TURMA
Relator(a) : DESEMBARGADOR FEDERAL COTRIM GUIMARÃES
Comarca : TRIBUNAL - TERCEIRA REGIÃO
Tipo : Acórdão
Indexação : VIDE EMENTA.
Referência legislativa : ***** CC-02 CÓDIGO CIVIL DE 2002 LEG-FED LEI-10406 ANO-2002 ART-1285 ART-1228 PAR-1 LEG-FED ENU-88 CENTRO DE ESTUDO JUDICIÁRIOS DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL
Fonte da publicação : e-DJF3 Judicial 1 DATA:07/03/2019 ..FONTE_REPUBLICACAO:
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