TRF3 0009164-31.2012.4.03.6181 00091643120124036181
PENAL E PROCESSO PENAL. OBTENÇÃO FRAUDULENTA DE FINANCIAMENTO EM
INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. ARTIGO 19 DA LEI N.º 7.492/1986. INCOMPETÊNCIA
ABSOLUTA. ARTIGO 383 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DECISÃO POSSÍVEL EM
QUALQUER FASE DO PROCESSO. FUNDAMENTAÇÃO NECESSÁRIA AO CORRETO ENQUADRAMENTO
JURÍDICO.
1. Questão atinente à incompetência absoluta. Enfrentamento necessário
em qualquer fase processual.
2. Em regra, o momento processual para que se proceda à adequação da
capitulação jurídica do fato narrado na denúncia ao tipo penal previsto
na lei é a prolação da sentença, ante a aplicação da emendatio libelli,
nos termos do artigo 383 do Código de Processo Penal, que dispõe o juiz,
sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá
atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência,
tenha de aplicar pena mais grave.
3. Todavia, em situações excepcionais, é possível ao julgador imiscuir-se
na capitulação do delito mesmo antes da sentença, especialmente quando
implicarem no reconhecimento de tema de ordem pública, para evitar que a
inadequada subsunção típica macule a competência, permitindo-se, para
tal consecução, inclusive, adentrar à fundamentação necessária ao
correto enquadramento jurídico.
4. O tipo penal delineado no artigo 19 da Lei n.º 7.492/1986 tutela bem
intangível, que corresponde à credibilidade do próprio Sistema Financeiro,
à proteção do investidor e do Mercado, desejando de fato constituir num
instrumento para a proteção do Sistema Financeiro Nacional.
5. Não resta dúvida de que o tipo excogitado (obtenção, mediante fraude,
de financiamento em instituição financeira) nada mais difere do crime de
estelionato comum a não ser pela qualidade de um dos sujeitos da operação
creditícia. Trata-se de uma forma especial de estelionato.
6. A prática do delito previsto na Lei n.º 7.492/1986, quando para a
satisfação de uma necessidade qualquer de seu protagonista, atinge
reflexamente o patrimônio alheio. Mas, daí entender que enseja o
comprometimento do Sistema Financeiro Nacional como um todo seria consagrar
interpretação que confere extrema cautela do legislador e uma desarrazoada
subtração de competência.
7. Para o efeito da legislação específica, tem-se entendido que
financiamento significa a operação de crédito concedida com destinação
específica, o que obriga a demonstração da aplicação de recursos, sendo
que em se tratando de fraude perpetrada, em tese, para a suposta obtenção
de financiamento perante instituição financeira, a competência para
processamento e julgamento do delito é, em regra, da Justiça Federal.
8. Nos termos da Circular de lavra do Banco Central do Brasil n.º 1.273,
de 29.12.1987, empréstimos são as operações realizadas sem destinação
específica ou vínculo à comprovação da aplicação dos recursos, sendo
certo que os financiamentos são as operações realizadas com destinação
específica, vinculadas à comprovação da aplicação dos recursos.
9. Apesar de alguns julgados diferenciarem financiamento de empréstimo,
este gênero do qual aquele configura espécie, caracterizado, o primeiro,
pela finalidade empreendedora, isto é, a necessidade de subsidiar diversas
atividades de fomento, certo é que para o suposto efeito de firmar a
competência da Justiça Federal, aparentemente, não houve a análise sob
o enfoque da natureza da operação e sua relevância frente ao Sistema
Financeiro Nacional.
10. Não obstante esta definição conceitual de financiamento, trata-se,
em hipóteses como a dos autos (financiamento para obtenção de veículo
CORSA junto ao banco FINASA, atualmente Bradesco S/A), de mero contrato de
empréstimo, o que não autoriza, em termos materiais, apesar da peculiaridade,
o deslocamento de competência.
11. O que deve nortear a interpretação não é meramente a qualidade
de um dos sujeitos da relação negocial, ou seja, inserir-se no rol das
instituições financeiras ou a estas equiparadas (artigo 1º da Lei n.º
7.492/1986), tampouco o fato de os recursos servirem para a aquisição de
um determinado bem, mas, tão-somente, a natureza efetiva da operação e
sua relevância para o Sistema Financeiro Nacional.
12. Não há perfeita subsunção de fatos à norma do artigo 19 da Lei
7.492/1986, quando houver financiamento perante instituição financeira,
a despeito de possuir alguma destinação específica e vinculação dos
recursos, na hipótese, por exemplo, de inexistir uma orquestração hábil
a abalar a higidez do Sistema Financeiro Nacional.
13. A interpretação não poderia enveredar por conclusão que apenas
levasse em conta a distinção entre empréstimo e financiamento, e assim
concluir esta última modalidade como sendo de competência federal.
14. Os contratos firmados para o financiamento de um bem móvel possuem a
nítida natureza de contrato de caráter privado, cabendo ao Poder Público,
tão-somente, a fiscalização e a adequação normativa, uma atividade
de regulação que visa à proteção e defesa do consumidor, evitando que
haja práticas abusivas por parte de instituições bancárias. Inserem-se no
campo das relações de consumo, o que força as instituições financeiras a
evitarem a imposição de obrigações excessivamente onerosas, reconhecendo-se
a vulnerabilidade do consumidor.
15. Não caberia proteção desnecessária às instituições financeiras,
com a inclusão de tal modalidade de contratação na definição do tipo de
colarinho branco, até pelo fato de, em várias hipóteses, elas próprias
concederem, por interpostas pessoas (um terceiro, uma concessionária ou
empresa comercial), tais financiamentos a pessoas sem condições financeiras
para honrar suas dívidas, ou que comprometam significativamente os vencimentos
percebidos, ou mesmo a indivíduos desconhecidos ou sequer objeto de uma
verificação da capacidade econômica mais detida, tamanha é a certeza
do ganho com a atividade desenvolvida, que encontra lastro nas próprias e
extensas garantias previstas, cujas eventuais inadimplências, normalmente,
são compensadas apenas com as taxas elevadas de remuneração do crédito
concedido.
16. Está-se diante de uma atividade de caráter essencialmente privado,
um serviço prestado por instituição financeira ao mercado de consumo,
mediante remuneração, com cobertura mais que suficientemente garantida,
o que faz incidir a regra do artigo 3º, parágrafo 2º, da Lei n.º 8.078,
de 11.09.1990 (Código de Defesa do Consumidor), considerado constitucional
pelo Supremo Tribunal Federal (ADIN n.º 2591, em 07.06.2006).
17. Parece que não seria defensável que um mero ato jurídico básico
que retrate com fidelidade as relações entre a moeda e o crédito,
típico contrato de empréstimo de coisa fungível, ainda que vinculado
a um determinado bem, fosse atingir o Sistema Financeiro Nacional em sua
integralidade. Não se vislumbra sequer risco potencial a este.
18. O artigo 19 da Lei nº. 7.492/1986 somente pode possuir efetividade quando
a fraude ao contrato de financiamento implicar numa orquestração relevante,
atingindo ou não mais de uma instituição financeira, ou na hipótese de
financiamento de vários bens visando à atividade de fomento mercantil.
19. Por não se verificar ofensa, nem mesmo potencial, ao Sistema Financeiro
Nacional em sua integralidade, porquanto a natureza de tal modalidade de
concessão de crédito volta-se ao interesse privado de forma preponderante,
risco calculado, digerido pelo mercado e pouco consistente (quantidade e
grau de garantias previstas e interveniência de terceiros no controle do
preenchimento das condições econômicas devidas), não há que se falar no
crime previsto no artigo 19 da Lei n.º 7.492/1986, porquanto, em verdade, toca
e releva apenas a interesses de cunho exclusivamente patrimonial e privado.
20. Fatos que configuram, em tese, delito de estelionato (artigo 171 do
Código Penal), mas não crime contra o Sistema Financeiro Nacional, de modo
que não se justifica o julgamento da causa perante a Justiça Federal.
21. Apelação da ré a que se dá parcial provimento, a fim de se declinar
da competência. Determinação de que o feito seja encaminhado à Justiça
Estadual. Prejudicada a Apelação do MPF.
Ementa
PENAL E PROCESSO PENAL. OBTENÇÃO FRAUDULENTA DE FINANCIAMENTO EM
INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. ARTIGO 19 DA LEI N.º 7.492/1986. INCOMPETÊNCIA
ABSOLUTA. ARTIGO 383 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DECISÃO POSSÍVEL EM
QUALQUER FASE DO PROCESSO. FUNDAMENTAÇÃO NECESSÁRIA AO CORRETO ENQUADRAMENTO
JURÍDICO.
1. Questão atinente à incompetência absoluta. Enfrentamento necessário
em qualquer fase processual.
2. Em regra, o momento processual para que se proceda à adequação da
capitulação jurídica do fato narrado na denúncia ao tipo penal previsto
na lei é a prolação da sentença, ante a aplicação da emendatio libelli,
nos termos do artigo 383 do Código de Processo Penal, que dispõe o juiz,
sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá
atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência,
tenha de aplicar pena mais grave.
3. Todavia, em situações excepcionais, é possível ao julgador imiscuir-se
na capitulação do delito mesmo antes da sentença, especialmente quando
implicarem no reconhecimento de tema de ordem pública, para evitar que a
inadequada subsunção típica macule a competência, permitindo-se, para
tal consecução, inclusive, adentrar à fundamentação necessária ao
correto enquadramento jurídico.
4. O tipo penal delineado no artigo 19 da Lei n.º 7.492/1986 tutela bem
intangível, que corresponde à credibilidade do próprio Sistema Financeiro,
à proteção do investidor e do Mercado, desejando de fato constituir num
instrumento para a proteção do Sistema Financeiro Nacional.
5. Não resta dúvida de que o tipo excogitado (obtenção, mediante fraude,
de financiamento em instituição financeira) nada mais difere do crime de
estelionato comum a não ser pela qualidade de um dos sujeitos da operação
creditícia. Trata-se de uma forma especial de estelionato.
6. A prática do delito previsto na Lei n.º 7.492/1986, quando para a
satisfação de uma necessidade qualquer de seu protagonista, atinge
reflexamente o patrimônio alheio. Mas, daí entender que enseja o
comprometimento do Sistema Financeiro Nacional como um todo seria consagrar
interpretação que confere extrema cautela do legislador e uma desarrazoada
subtração de competência.
7. Para o efeito da legislação específica, tem-se entendido que
financiamento significa a operação de crédito concedida com destinação
específica, o que obriga a demonstração da aplicação de recursos, sendo
que em se tratando de fraude perpetrada, em tese, para a suposta obtenção
de financiamento perante instituição financeira, a competência para
processamento e julgamento do delito é, em regra, da Justiça Federal.
8. Nos termos da Circular de lavra do Banco Central do Brasil n.º 1.273,
de 29.12.1987, empréstimos são as operações realizadas sem destinação
específica ou vínculo à comprovação da aplicação dos recursos, sendo
certo que os financiamentos são as operações realizadas com destinação
específica, vinculadas à comprovação da aplicação dos recursos.
9. Apesar de alguns julgados diferenciarem financiamento de empréstimo,
este gênero do qual aquele configura espécie, caracterizado, o primeiro,
pela finalidade empreendedora, isto é, a necessidade de subsidiar diversas
atividades de fomento, certo é que para o suposto efeito de firmar a
competência da Justiça Federal, aparentemente, não houve a análise sob
o enfoque da natureza da operação e sua relevância frente ao Sistema
Financeiro Nacional.
10. Não obstante esta definição conceitual de financiamento, trata-se,
em hipóteses como a dos autos (financiamento para obtenção de veículo
CORSA junto ao banco FINASA, atualmente Bradesco S/A), de mero contrato de
empréstimo, o que não autoriza, em termos materiais, apesar da peculiaridade,
o deslocamento de competência.
11. O que deve nortear a interpretação não é meramente a qualidade
de um dos sujeitos da relação negocial, ou seja, inserir-se no rol das
instituições financeiras ou a estas equiparadas (artigo 1º da Lei n.º
7.492/1986), tampouco o fato de os recursos servirem para a aquisição de
um determinado bem, mas, tão-somente, a natureza efetiva da operação e
sua relevância para o Sistema Financeiro Nacional.
12. Não há perfeita subsunção de fatos à norma do artigo 19 da Lei
7.492/1986, quando houver financiamento perante instituição financeira,
a despeito de possuir alguma destinação específica e vinculação dos
recursos, na hipótese, por exemplo, de inexistir uma orquestração hábil
a abalar a higidez do Sistema Financeiro Nacional.
13. A interpretação não poderia enveredar por conclusão que apenas
levasse em conta a distinção entre empréstimo e financiamento, e assim
concluir esta última modalidade como sendo de competência federal.
14. Os contratos firmados para o financiamento de um bem móvel possuem a
nítida natureza de contrato de caráter privado, cabendo ao Poder Público,
tão-somente, a fiscalização e a adequação normativa, uma atividade
de regulação que visa à proteção e defesa do consumidor, evitando que
haja práticas abusivas por parte de instituições bancárias. Inserem-se no
campo das relações de consumo, o que força as instituições financeiras a
evitarem a imposição de obrigações excessivamente onerosas, reconhecendo-se
a vulnerabilidade do consumidor.
15. Não caberia proteção desnecessária às instituições financeiras,
com a inclusão de tal modalidade de contratação na definição do tipo de
colarinho branco, até pelo fato de, em várias hipóteses, elas próprias
concederem, por interpostas pessoas (um terceiro, uma concessionária ou
empresa comercial), tais financiamentos a pessoas sem condições financeiras
para honrar suas dívidas, ou que comprometam significativamente os vencimentos
percebidos, ou mesmo a indivíduos desconhecidos ou sequer objeto de uma
verificação da capacidade econômica mais detida, tamanha é a certeza
do ganho com a atividade desenvolvida, que encontra lastro nas próprias e
extensas garantias previstas, cujas eventuais inadimplências, normalmente,
são compensadas apenas com as taxas elevadas de remuneração do crédito
concedido.
16. Está-se diante de uma atividade de caráter essencialmente privado,
um serviço prestado por instituição financeira ao mercado de consumo,
mediante remuneração, com cobertura mais que suficientemente garantida,
o que faz incidir a regra do artigo 3º, parágrafo 2º, da Lei n.º 8.078,
de 11.09.1990 (Código de Defesa do Consumidor), considerado constitucional
pelo Supremo Tribunal Federal (ADIN n.º 2591, em 07.06.2006).
17. Parece que não seria defensável que um mero ato jurídico básico
que retrate com fidelidade as relações entre a moeda e o crédito,
típico contrato de empréstimo de coisa fungível, ainda que vinculado
a um determinado bem, fosse atingir o Sistema Financeiro Nacional em sua
integralidade. Não se vislumbra sequer risco potencial a este.
18. O artigo 19 da Lei nº. 7.492/1986 somente pode possuir efetividade quando
a fraude ao contrato de financiamento implicar numa orquestração relevante,
atingindo ou não mais de uma instituição financeira, ou na hipótese de
financiamento de vários bens visando à atividade de fomento mercantil.
19. Por não se verificar ofensa, nem mesmo potencial, ao Sistema Financeiro
Nacional em sua integralidade, porquanto a natureza de tal modalidade de
concessão de crédito volta-se ao interesse privado de forma preponderante,
risco calculado, digerido pelo mercado e pouco consistente (quantidade e
grau de garantias previstas e interveniência de terceiros no controle do
preenchimento das condições econômicas devidas), não há que se falar no
crime previsto no artigo 19 da Lei n.º 7.492/1986, porquanto, em verdade, toca
e releva apenas a interesses de cunho exclusivamente patrimonial e privado.
20. Fatos que configuram, em tese, delito de estelionato (artigo 171 do
Código Penal), mas não crime contra o Sistema Financeiro Nacional, de modo
que não se justifica o julgamento da causa perante a Justiça Federal.
21. Apelação da ré a que se dá parcial provimento, a fim de se declinar
da competência. Determinação de que o feito seja encaminhado à Justiça
Estadual. Prejudicada a Apelação do MPF.Decisão
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,
decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal
da 3ª Região, por maioria, DAR PARCIAL PROVIMENTO à Apelação da ré
para declinar da competência e encaminhar o feito à Justiça Estadual,
nos termos do parágrafo 2º do artigo 383 e primeira parte do artigo 70,
ambos do Código de Processo Penal, bem como JULGAR PREJUDICADA a Apelação
do MPF, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante
do presente julgado.
Data do Julgamento
:
03/07/2018
Data da Publicação
:
09/08/2018
Classe/Assunto
:
Ap. - APELAÇÃO CRIMINAL - 63118
Órgão Julgador
:
DÉCIMA PRIMEIRA TURMA
Relator(a)
:
DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS
Comarca
:
TRIBUNAL - TERCEIRA REGIÃO
Tipo
:
Acórdão
Referência
legislativa
:
***** LCCSF-86 LEI DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL
LEG-FED LEI-7492 ANO-1986 ART-19 ART-1
***** CPP-41 CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
LEG-FED DEL-3689 ANO-1941 ART-383 PAR-2 ART-70
***** CDC-90 CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
LEG-FED LEI-8078 ANO-1990 ART-3 PAR-2
***** CP-40 CÓDIGO PENAL DE 1940
LEG-FED DEL-2848 ANO-1940 ART-171
LEG-FED CIR-1273 ANO-1987
BACEN - BANCO CENTRAL DO BRASIL
Fonte da publicação
:
e-DJF3 Judicial 1 DATA:09/08/2018
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