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Jurisprudência


TRF5 0002690-41.2012.4.05.8201 00026904120124058201

Ementa
ADMINISTRATIVO. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. TRANSNORDESTINA. MALHA FERROVIÁRIA INATIVA HÁ MAIS DE 3 ANOS E SEM PERSPECTIVA DE FUNCIONAMENTO. IMÓVEIS RESIDENCIAIS CONSTRUÍDOS HÁ MAIS DE 25 ANOS. PREVALÊNCIA DO DIREITO À MORADIA. APELAÇÃO IMPROVIDA. 1. O caso dos autos refere-se a ação cujo objeto consiste em pedido de reintegração de posse e de demolição de imóveis particulares construídos sobre área non aedificandi ao longo de ferrovia, proposta pela TRANSNORDESTINA LOGISTICA S/A. 2. A área non aedificandi corresponde, em regra, a um espaço de 15 (quinze) metros do limite da ferrovia, na qual não podem ser erguidas construções, consoante a regulamentação dada pelo inciso III do art. 4º da Lei n. 6.766/79. 3. A limitação imposta pela supracitada Lei tem como finalidade assegurar a segurança de pessoas e bens que trafegam nas e margeiam as ferrovias/rodovias, e, ainda, propiciar ao Poder Público (ou à concessionária do serviço) condições de realizar obras de conservação das vias. 4. Assim, é pacífico o entendimento jurisprudencial no sentido de que as construções em área non aedificandi ensejam a demolição, bem como a reintegração de posse, ressaltando-se que a Administração Pública tem a prerrogativa de retomar o bem público a qualquer tempo, independentemente de qualquer indenização, sob pena de pôr em prevalência o interesse privado em detrimento do interesse público. 5. Nessa esteira, em casos semelhantes a este, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região possui julgados favoráveis à pretensão reintegratória da TRANSNORDESTINA LOGÍSTICA S/A, como no seguinte julgado: PROCESSO: 00007234520134058000, AC572856, Relator: Desembargador Federal Geraldo Apoliano, Terceira Turma, DJE: 14/10/2014. 6. Todavia, no caso sub judice, observam-se as seguintes particularidades: a) de acordo com o laudo pericial, os imóveis construídos à margem da malha ferroviária, nas ruas 24 de Maio, Guilhermino Barbosa, Rua Nova e Rua Juá somam cerca de 335 - ou seja, trata-se da moradia de pelo menos 335 famílias (fl. 423); b) embora, de fato, as construções estejam (parcialmente) dentro da área non aedificandi (fl. 421, quesito "E"), a linha ferroviária encontra-se desativada e em situação de abandono há muitos anos (fl. 423); c) inclusive, a deterioração da linha férrea deu-se em razão da ausência ou insuficiência de manutenção corretiva ou preventiva, o que demonstra a situação de abandono (fl. 420, quesito "4"); d) não existe previsão de reativação dos trilhos. 7. Destarte, a partir dos fatos constatados na perícia produzida nestes autos, entende-se que, a despeito da proibição de construções a menos de 15m do limite da ferrovia, as peculiaridades deste caso autorizam a manutenção das casas tratadas nos autos no local em que elas foram construídas. 8. Não se mostra razoável determinar a demolição de tais imóveis, quando o perito judicial constatou que o trânsito de trens na linha próxima às casas encontra-se desativado e sem indícios de reativação em razão da falta de manutenção dos trilhos e equipamentos. Assim, ante a inexistência de trânsito de trens no local - também não havendo perspectiva de reativação da estação ferroviária - a utilidade de uma área non aedificandi perde sua razão de ser. 9. As modernas concepções doutrinárias não asseguram ao interesse público uma supremacia absoluta que sempre deva prevalecer em face do interesse privado. Inclusive, há quem defenda que, no confronto entre direitos fundamentais - notadamente aqueles que digam respeito ao mínimo existencial e que corporifiquem o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, um dos pilares sobre os quais se assenta o ordenamento jurídico brasileiro - e a supremacia do interesse público, possa, ou até mesmo deva, este ceder. 10. E aqui estamos diante de um confronto existente entre o direito fundamental à moradia e o interesse público na prestação de serviços de transporte ferroviário. Entretanto, a nosso ver, esse confronto é meramente aparente. Diz-se isso, porque, como bem atestado pelo perito judicial, não há qualquer sinal de atividade na linha férrea nem previsão de que nos próximos anos esta volte a funcionar. Por essa razão, entendemos que desse conflito aparente de interesses deve preponderar, neste caso concreto, o direito constitucional à moradia. 11. Do mesmo modo, cabe aqui fazer menção às muito bem lançadas considerações trazidas pela Defensoria Pública da União. Não é possível se desconsiderar que o descaso administrativo com a área foi o grande responsável pela proliferação de construções supostamente irregulares, o que induz à conclusão de que a parte autora não exerceu a posse direta sobre a área nos últimos anos. Não bastasse isso, o Poder Público foi além: permitiu a prestação dos serviços básicos à população local (energia elétrica, fornecimento de água, coleta domiciliar de lixo, telefonia), conferindo aspectos de regularidade à ocupação efetivada. Agora, por intermédio da concessionária promovente, vem a juízo tentar consertar, à força, anos de omissão no exercício do poder de polícia. 12. Não se desconhecem as posições jurisprudenciais no sentido de que não há que se falar em posse de bens públicos, haja vista tratar-se de mera ocupação/detenção irregular (arts. 183, parágrafo 3º, e 191, parágrafo único, CF/88). Entretanto, mesmo que esse seja o rótulo jurídico que se dê a essa situação de fato, é inegável que dela surtem efeitos jurídicos, a exemplo do respeito à legítima confiança que os administrados depositaram na conduta estatal. 13. Ora, ao não somente permitir construções de residências naquela área abandonada, mas também posteriormente fornecer os mais básicos serviços à comunidade, a Administração, ainda que tenha operado de forma indevida, gerou na população local a legítima expectativa de que as edificações erigidas ostentavam caráter regular. E não vislumbro qualquer traço de má-fé por parte dos ocupantes, principalmente em razão de, em grande parte, serem pessoas com baixo grau de instrução e alijadas dos mais basilares processos de inserção social. 14. Se ao primeiro sinal de construção na área não-edificável, o Poder Público se mostrasse diligente, informando aos ocupantes a impossibilidade de construir naquelas áreas, sem sombra de dúvidas, não estaríamos diante do grave conflito social com o qual nos deparamos. Nesses termos, a omissão estatal é um fato. E, a nosso ver, condutas omissivas consolidadas no tempo não podem ser supridas com medidas pretensamente céleres e sem quaisquer providências alternativas de mitigação das consequências negativas. 15. Veja-se: segundo visualizamos, o caso seria muito mais difícil de apreciar se estivéssemos diante de uma iminente reativação das linhas férreas em cujas margens as edificações estivessem construídas. Afinal, o risco de acidentes com as composições férreas não seria um elemento desconsiderável. Deparar-nos-íamos com um conflito entre o direito à moradia e o próprio direito à vida dos ocupantes da área. Acontece que, no presente caso, como já multirreferido, esse risco sequer existe diante do abandono da ferrovia e da ausência de previsão de reativação da linha em um futuro imediato. Mas, por amor ao debate, prendamo-nos à análise inicial deste parágrafo: ainda que se estivesse diante de um concreto risco de retorno à atividade das ferrovias, seria o caso de incontinenti desalojar as famílias que ali vivem? Entendemos que não. 16. Como afirmado acima, não se corrigem anos de descaso público com medidas açodadas. A procedência do pedido de reintegração e de demolição acarretaria, indubitavelmente, consequências nefastas: a retirada do local de mais de 300 (trezentas) famílias que não teriam para onde ir. Ganharíamos um inegável benefício econômico com a reativação das linhas férreas, mas, em contrapartida, contrairíamos um gravíssimo problema social: o desalojamento de um número considerável de pessoas, incluindo crianças, idosos e enfermos. 17. Medidas dessa natureza precisam ser acompanhadas de estudos técnicos paralelos, de medidas alternativas que visem a eliminar, ou pelo menos minorar, as consequências negativas dos atos do Poder Público. Em outras palavras, queremos dizer que uma falha administrativa não pode ser consertada à força e às pressas, de forma absolutamente inconsequente. É necessário que a correção de erros seja bem pensada, sob pena de se gerarem efeitos piores do que a manutenção do ato maculado originário. E, se a correção desses erros se revelar mais prejudicial do que a perpetuação do status quo, a nosso ver, é preferível que se mantenha a irregularidade menos danosa. É o que entendemos por consolidação de uma situação de fato excepcional. 18. E cabe aqui destacar que o próprio Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de consagrar a tese de que os fatos também possuem força normativa, de forma que uma situação fática excepcional possa merecer igual proteção destinada a uma situação jurídica: ADI 2240, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2007, DJe-072 DIVULG 02-08-2007 PUBLIC 03-08-2007 DJ 03-08-2007 PP-00029 EMENT VOL-02283-02 PP-00279. 19. Ainda dentro da perspectiva da dignidade da pessoa humana e da faceta subjetiva do princípio da boa-fé, enquanto proteção à legítima confiança, temos que essas pessoas, além de construírem suas moradias nesses terrenos em que imperava limitação administrativa, também procederam a reformas nessas edificações. Investiram suas vidas, sonhos na construção da casa própria. O Poder Público assentiu que essas pessoas sonhassem com a casa própria durante anos, permitiu que elas dedicassem tempo e escassos recursos financeiros na construção e ampliação desse sonho. E, agora - depois de anos, quiçá décadas, de absoluta indiferença - intenta destruir tudo o que foi construído, sem oferecer qualquer contrapartida capaz de, ao menos, atenuar o sofrimento dessas pessoas. 20. Corroborando o entendimento acima esposado, veja-se julgado Eg. TRF da 5ª Região, abaixo ementado: PROCESSO: 200883030004304, AC555744/PE, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO CAVALCANTI, Primeira Turma, JULGAMENTO: 23/05/2013, PUBLICAÇÃO: DJE 31/05/2013 - Página 102. 21. Ganhos econômicos não podem ser acompanhados de desastres sociais. O próprio artigo 170, CF/88 dispõe que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos uma existência digna. E ao Judiciário cabe o papel de buscar fazer preponderar os valores consagrados na Lex Mater, ainda que, para tanto, seja necessário realizar um "controle de consequencialidade" da própria decisão judicial. Ou seja, é legítimo ao julgador, diante de decisões igualmente possíveis para a solução de determinado caso, valer-se daquela que produzirá os melhores resultados, que trará as melhores consequências práticas. Vale salientar, inclusive, que tal preocupação encontra assento legal, diante do comando normativo inserto no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, in verbis: "Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum" (grifo nosso). 22. É bem verdade que existem várias correntes que criticam a existência de um chamado consequencialismo jurídico, principalmente por, em determinadas hipóteses, implicar a mitigação - ou até mesmo a rejeição - das regras de direito positivo, bem como por ser, de certa forma, impossível ao aplicador prever todas as consequências futuras de um ato a ser praticado. Todavia, comungamos, aqui, da visão de Neil MacCormick, segundo a qual, no âmbito do consequencialismo, não seriam aceitáveis os seguintes extremos: a) a adoção de argumento consequencialista como único fundamento para uma decisão, já que desta retiraria elementos de racionalidade em face da incerteza do futuro; b) a desconsideração de qualquer consequência prática que a decisão possa acarretar. A saída argumentativa estaria em uma posição intermediária entre esses extremos. Em outras palavras, o consequencialismo seria admissível, ao possibilitar a extração da melhor interpretação possível com base nos elementos normativos postos e nas consequências decorrentes da escolha de uma determinada posição, sem descurar da efetivação dos valores constitucionalmente consagrados. 23. Dito isso e à luz do direito fundamental à moradia, dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, da proteção à legítima confiança, sem olvidar as consequências práticas nefastas que uma decisão de procedência do pedido acarretaria, entendemos que outra posição não pode ser adotada senão a de que deve preponderar, neste caso, o direito à moradia da população local envolvida. 24. Entretanto, que fique bem claro: a tese ora firmada não impede que a parte autora, em conjunto com o Poder Público, busque alternativas para, diante de uma futura e efetiva reativação da malha ferroviária, conciliar o interesse econômico na exploração desse empreendimento com a proteção do direito à moradia dessas comunidades, de forma a evitar que, para um ganho econômico, se tenha que concretizar uma catástrofe social. Afinal, benefícios econômicos não podem ser auferidos a qualquer preço. 25. Apelação cível improvida.
Decisão
UNÂNIME

Data do Julgamento : 10/03/2016
Data da Publicação : 18/03/2016
Classe/Assunto : AC - Apelação Civel - 585727
Órgão Julgador : Primeira Turma
Relator(a) : Desembargador Federal Manoel Erhardt
Comarca : TRIBUNAL - QUINTA REGIAO
Tipo : Acórdão
Referência legislativa : ***** LINDB-10 Lei de Introdução às Normas do Direito Brasiliero LEG-FED LEI-12376 ANO-2010 ART-5 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - LEG-FED EMC-15 ANO-1996 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - LEG-FED LEI-7619 ANO-2000 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - LEG-FED LEI-6766 ANO-1979 ART-4 INC-3 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ***** CF-88 Constituição Federal de 1988 ART-183 PAR-3 ART-191 PAR-ÚNICO ART-18 PAR-4 ART-170
Fonte da publicação : DJE - Data::18/03/2016 - Página::148
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