TRF5 0005332-57.2016.4.05.8100 00053325720164058100
PENAL E PROCESSUAL PENAL. PECULATO-FURTO (ART. 312, PARÁGRAFO 1º, DO CP). FRAUDE EM FOLHA DE PAGAMENTO MUNICIPAL. VERBAS DO FUNDEB. AUTORIA, MATERIALIDADE E DOLO COMPROVADOS. ERRO DE TIPO. INOCORRÊNCIA. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO COMPROVADO. CONDENAÇÃO
MANTIDA. DOSIMETRIA. DOLO INTENSO. CONSEQUÊNCIAS NEGATIVAS. MANUTENÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS DO DELITO. BIS IN IDEM. OCORRÊNCIA. REFORMA DA PENA-BASE. CAUSA DE AUMENTO REFERENTE À CONTINUIDADE DELITIVA (ART. 71 DO CP). MANUTENÇÃO. VALOR UNITÁRIO DA PENA
PECUNIÁRIA. REDUÇÃO. PROVIMENTO PARCIAL.
01. Apelação interposta por A.F.N. e S.A.O. contra sentença que, julgando procedente a pretensão punitiva estatal, condenou: 1) A.F.N. à pena privativa de liberdade de 6 (seis) anos de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime semiaberto, além de
135 (cento e trinta e cinco) dias-multa no valor de 1 (um) salário mínimo vigente à época dos fatos, pela prática do crime previsto no art. 312 c/c art. 71, ambos do CP; 2) S.A.O. à pena privativa de liberdade de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de
reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime semiaberto, além de 300 (trezentos) dias-multa no valor de 1 (um) salário mínimo vigente à época dos fatos, pela prática do crime previsto no art. 312 c/c art. 71, ambos do CP; fixando, ainda, para ambos
os réus, a reparação mínima pelos danos causados, no montante de R$ 98.469,08 (noventa e oito mil, quatrocentos e sessenta e nove reais e oito centavos), nos termos do art. 387, IV, do CPP.
02. Consoante narrou o parquet federal na denúncia: a) em razão do aparente repasse em duplicidade de verbas do FUNDEB a professores da rede municipal de ensino pela Prefeitura de Itaitinga/CE, sem desconto ao INSS, no exercício de 2012, o próprio MPF
instaurou procedimentos investigativos, a fim de apurar supostos delitos contra a administração previdenciária; b) ao longo da investigação, comprovou-se que nenhum dos professores supostamente beneficiados recebeu quaisquer desses valores; c) em
seguida, os investigadores descobriram que todos os repasses duplos eram depositados na mesma conta bancária, cuja titularidade era do acusado A.F.N.; d) todavia, como o próprio réu teria admitido, na fase inquisitiva, ele jamais integrou o quadro de
funcionários da Prefeitura, restando caracterizada, portanto, a malversação; e) o desvio só foi possível graças à participação do corréu S.A.O., diretor do Departamento de Recursos Humanos e responsável, à época, pela folha de pagamento do Município, o
qual forneceu a documentação ideologicamente falsa ao corréu, necessária para a abertura da conta-salário utilizada para as fraudes.
03. É irreprochável o juízo condenatório adotado na decisão recorrida. Com efeito, a materialidade e autoria delitivas restaram fartamente documentadas no PIC nº 1.15.000.002793/2014-27, no qual se verifica: a) que o Ofício de Folha de Pagamento do
Município Itaitinga/CE, sob a responsabilidade de S.A.O., efetivamente procedeu à liberação em duplicidade de numerários em nome de vários professores da rede municipal de ensino, no exercício financeiro de 2012, os quais tinham como destino, porém, a
conta corrente nº 12.852-x, agência nº 3880-6, do Banco do Brasil (cf. fls. 247, 249, 308 e ss. do vol. II do PIC); b) que a referida conta pertencia, de fato, ao réu A.F.N. (cf. ofício do BB às fls. 717/718 do vol. III do PIC); c) que, para a abertura
da conta, o réu S.A.O. assinou documento, falso, no qual afirmava que A.F.N. exercia o cargo de "Diretor de Divisão de Vigilância à Saúde" à época (fl. 27 do anexo I do PIC). Tais provas documentais, colhidas na fase investigatória, são de tal forma
candentes que poderiam, por si sós, incutir juízo de certeza no julgador quanto à efetiva prática do delito de peculato-furto por parte dos réus.
04. Nada obstante, também a prova testemunhal é uníssona nesse sentido. Com efeito, o então secretário da prefeitura de Itaitinga, Hiderval da Silva Souza, relatou em Juízo que a comissão do PAD levantara, junto ao Banco do Brasil, o relatório acostado
às fls. 642/666 do PIC, o qual constatou a existência de mais de um servidor recebendo proventos sob o mesmo número de conta (arq. 00.00.00.00000 - tempo: 3'00'' da mídia digital de fl. 88). Outrossim, a mesma testemunha esclareceu que, para proceder à
abertura de conta-salário, os servidores deveriam levar uma declaração de vínculo ao Banco do Brasil, sendo atribuição das secretarias o envio das indicações de contratação com as fichas funcionais. Perguntado sobre quem seria o responsável por assinar
essas declarações, a mesma testemunha afirmou ser S.A.O., diretor do RH, um dos responsáveis por assiná-las (tempo 5'35'' da mídia digital de fl. 88), corroborando, destarte, a prova documental. Já a testemunha Francisco Fábio Pereira de Oliveira (que
trabalhava como chefe de gabinete interino na Secretaria de Educação à época), asseverou que em cada secretaria havia um responsável pelo RH, que levava as "ocorrências" (como descreveu a folha de ponto e a frequência dos funcionários) ao réu S.A.O., a
fim de consolidar a folha de pagamento, sendo os valores depositados nas contas-salários pela Secretaria de Finanças do município (arq. 00.25.03.363000.wmv - tempo 7'14'). Mais contundente ainda é o testemunho de Francisco Fábio Pereira Oliveira,
secretário de educação interino à época dos fatos, o qual afirmou não conhecer A.F.N., relato que demonstra que o réu jamais atuou nas escolas daquela Prefeitura, considerando que se tratava do responsável direto por homologar os contratos dos
profissionais que exerciam as atividades docentes. É mister ressaltar, ainda, que o município em questão alberga um número reduzido de escolas, de modo que os professores eram conhecidos publicamente - inclusive pela indigitada testemunha que, contudo,
reforçou não saber da existência de vínculo do réu, nem se recordar de tê-lo visto no exercício de atribuições inerentes ao cargo de instrutor de informática.
05. Não fosse o bastante, depreende-se do extrato bancário da conta corrente utilizada por A.F.N. a realização de inúmeros saques, com valor relativo elevado, cuja destinação era incerta, além de duas transferências para a conta nº 311.079, de
titularidade da esposa do corréu S.A.O. (fl. 442 do vol. III do PIC), o que reforça ainda mais a comprovação de desvio e apropriação de verbas do erário público por parte dos apelantes.
06. É carente de verossimilhança a versão dos fatos apresentada por A.F.N. (segundo o qual foi contratado diretamente por S.A.O. para atuar como instrutor de informática do Município, devolvendo em seguida o cartão e a respectiva senha da conta-salário
a um funcionário da prefeitura), porquanto, como o próprio acusado S.A.O. afirmou em Juízo, a guarda de cartões bancários particulares por qualquer funcionário da prefeitura não era procedimento padrão. Outrossim, o ato de criar uma conta, sem que
houvesse confirmação de sua suposta contratação, e depois entregar os respectivos cartão e senha a um terceiro desconhecido - e não ao próprio banco, responsável por encerrá-la - são condutas que não se podem esperar da prudência de um homem médio.
Ademais, Francisco Fábio Pereira de Oliveira ressaltou que, apesar de a folha de pagamento ser feita pelo réu S.A.O. (tempo 9'50''), ele não tinha competência para realizar a contratação de novos funcionários, sendo apenas o chefe da Secretaria de
Educação o responsável por fazê-lo (tempo 12'30'').
07. Tampouco merece acolhida a alegação de ausência de dolo nas condutas dos réus, ou de incidência de erro de tipo. O acusado S.A.O., perquirido pela magistrada acerca de depósitos realizados na conta de sua esposa, afirmou não terem sido percebidos
significativamente pelo casal, de modo que acreditaram apenas serem referentes à atividade de correções de texto exercidas por seu cônjuge. Tal narrativa contrasta com as ações ora depreendidas dos autos, uma vez que o réu demonstrou ter ciência da sua
assinatura na declaração de vínculo da prefeitura que permitiu a abertura da conta utilizada como meio para subtração das verbas públicas. Ressalte-se que, mês a mês, o referido réu, responsável pela consolidação da folha de pagamento, permitiu haver a
duplicidade de pagamentos na mesma conta, aberta pelo corréu. Não há que se cogitar, portanto, da hipótese de erro de tipo.
08. Noutro giro, o réu A.F.N. evidentemente sabia não fazer parte do quadro de funcionários da prefeitura quando da abertura da conta. Ainda que tenha feito, como alegou, a entrega do cartão e senhas respectivas para terceira pessoa indeterminada,
evidencia-se, em verdade, a intenção de assegurar a apropriação de valores públicos por meio do instrumento bancário. Tais expedientes empreendidos por parte do apelante afastam, completamente, a alegação da ocorrência de erro de tipo. Condenações
mantidas.
09. Dosimetria. Primeira Fase. Relativamente ao cálculo da pena-base (art. 59 do CP), nota-se, de início, que as circunstâncias judiciais dos antecedentes, conduta social, personalidade, motivos do crime e comportamento da vítima já foram julgadas
favoravelmente aos réus, restando prejudicada a análise da dosimetria nesse ponto.
10. A culpabilidade foi valorada adequadamente. Com efeito, o dolo dos acusados é intenso, porquanto se utilizaram de diversos ardis (uso de declaração falsa, suposta duplicidade de pagamentos, etc) para induzir a Administração Pública e o Banco do
Brasil em erro, sobrelevando-se, portanto, o caráter insidioso das condutas perpetradas. Todavia, com dolo mais intenso ainda agiu o réu S.A.O., tendo em vista que tinha pleno domínio do fato delitivo, na qualidade de funcionário que consolidava a folha
de pagamento do município, esperando-se mais dele, portanto, uma conduta em conformidade ao direito.
11. As consequências do delito foram igualmente desfavoráveis aos réus; a uma, porque a conduta implicou em mácula à dignidade da gestão pública, como bem ressaltou a magistrada a quo, além de comprometer a honra dos funcionários que supostamente
receberiam verbas indevidas; a duas, porque o valor apropriado do erário, na ordem de R$ 98.469,08 (noventa e oito mil, quatrocentos e sessenta e nove reais e oito centavos), é fundamento suficiente para o juízo de valor negativo da conduta, conforme já
decidiu o STJ em caso análogo: "não há como se falar em ausência de individualização da reprimenda, tendo em vista que a apreciação negativa das consequências do delito revela que a conduta praticada ultrapassou as características ínsitas
ao tipo, em razão da vultuosa quantia efetivamente desviada" (AgRg no REsp 1657832/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, STJ - Quinta Turma, DJE: 17/10/2018). Nesse mesmo sentido já decidiu este TRF5: "as consequências do crime foram desfavoráveis tendo em
vista que os valores indevidamente percebidos pela segunda acusada (absolvida), que percebeu indevidamente um benefício previdenciário de trabalhadora rural, causou prejuízo ao erário no valor de R$ 16.212,54 (dezesseis mil, duzentos e doze reais e
cinquenta e quatro centavos)" (ACR nº 12534/CE, Rel. Des. CARLOS REBÊLO JÚNIOR, Terceira Turma, DJE 31/01/2017).
12. Razão assiste à defesa quanto à revaloração das circunstâncias do delito, vez que os fundamentos utilizados na sentença (a "intensidade do dolo" em razão da duplicidade de pagamento da burla à administração) já integram o julgamento negativo da
culpabilidade, representando, destarte, bis in idem. Portanto, em obediência aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, e que S.A.O. agiu com dolo mais intenso do que o normal à espécie (justificando-se, portanto, uma exasperação em maior
monta), fixa-se a pena-base para o réu A.F.N. em 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de reclusão e 56 (cinquenta e seis) dias-multas; e para S.A.O. em 4 (quatro) anos de reclusão e 70 (setenta) dias-multa.
13. Terceira fase. É de inteira razoabilidade a aplicação da causa de aumento relativa ao crime continuado (art. 71 do CP), tendo em vista à dilação no tempo, manutenção de lugar e do modo de execução. In casu, a sentença aplicou a causa de aumento no
percentual de 1/2 (um meio), considerando que as condutas foram reiteradas por 14 (quatorze) vezes - interpretação, aliás, mais benéfica em relação ao entendimento do STJ sobre a matéria, in verbis: "consoante a jurisprudência desta Corte Superior de
Justiça, o aumento da pena pela continuidade delitiva, dentro do intervalo de 1/6 a 2/3, previsto no art. 71 do Código Penal, deve adotar o critério da quantidade de infrações praticadas. Assim, aplica-se o aumento de 1/6 pela prática de duas infrações;
1/5, para três infrações; 1/4, para quatro infrações; 1/3, para cinco infrações; 1/2, para seis infrações; e 2/3, para sete ou mais infrações" (HC 388165/MS, Ministro Sebastião Reis Júnior, STJ - Sexta Turma, DJe: 22/09/2017). Mantida a causa de aumento
à razão de 1/2 (um meio).
14. Ausentes provas de boas condições financeiras dos apelantes, deve-se diminuir o valor unitário da multa, fixado na sentença em 01 (um) salário mínimo vigente à época dos fatos, para o mínimo legal de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à
época dos fatos, para ambos os réus.
15. Fixam-se as penas definitivas para: a) A.F.N. em 5 (cinco) anos de reclusão e 84 (oitenta e quatro) dias-multa, nas mesmas condições fixadas na sentença, pela prática do crime previsto no art. 312 c/c art. 71, ambos do CP; e b) S.A.O. em 6 (seis)
anos de reclusão e 105 (cento e cinco) dias-multa, nas mesmas condições fixadas na sentença, pela prática do crime previsto no art. 312 c/c art. 71, ambos do CP.
16. Apelação parcialmente provida.
Ementa
PENAL E PROCESSUAL PENAL. PECULATO-FURTO (ART. 312, PARÁGRAFO 1º, DO CP). FRAUDE EM FOLHA DE PAGAMENTO MUNICIPAL. VERBAS DO FUNDEB. AUTORIA, MATERIALIDADE E DOLO COMPROVADOS. ERRO DE TIPO. INOCORRÊNCIA. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO COMPROVADO. CONDENAÇÃO
MANTIDA. DOSIMETRIA. DOLO INTENSO. CONSEQUÊNCIAS NEGATIVAS. MANUTENÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS DO DELITO. BIS IN IDEM. OCORRÊNCIA. REFORMA DA PENA-BASE. CAUSA DE AUMENTO REFERENTE À CONTINUIDADE DELITIVA (ART. 71 DO CP). MANUTENÇÃO. VALOR UNITÁRIO DA PENA
PECUNIÁRIA. REDUÇÃO. PROVIMENTO PARCIAL.
01. Apelação interposta por A.F.N. e S.A.O. contra sentença que, julgando procedente a pretensão punitiva estatal, condenou: 1) A.F.N. à pena privativa de liberdade de 6 (seis) anos de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime semiaberto, além de
135 (cento e trinta e cinco) dias-multa no valor de 1 (um) salário mínimo vigente à época dos fatos, pela prática do crime previsto no art. 312 c/c art. 71, ambos do CP; 2) S.A.O. à pena privativa de liberdade de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de
reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime semiaberto, além de 300 (trezentos) dias-multa no valor de 1 (um) salário mínimo vigente à época dos fatos, pela prática do crime previsto no art. 312 c/c art. 71, ambos do CP; fixando, ainda, para ambos
os réus, a reparação mínima pelos danos causados, no montante de R$ 98.469,08 (noventa e oito mil, quatrocentos e sessenta e nove reais e oito centavos), nos termos do art. 387, IV, do CPP.
02. Consoante narrou o parquet federal na denúncia: a) em razão do aparente repasse em duplicidade de verbas do FUNDEB a professores da rede municipal de ensino pela Prefeitura de Itaitinga/CE, sem desconto ao INSS, no exercício de 2012, o próprio MPF
instaurou procedimentos investigativos, a fim de apurar supostos delitos contra a administração previdenciária; b) ao longo da investigação, comprovou-se que nenhum dos professores supostamente beneficiados recebeu quaisquer desses valores; c) em
seguida, os investigadores descobriram que todos os repasses duplos eram depositados na mesma conta bancária, cuja titularidade era do acusado A.F.N.; d) todavia, como o próprio réu teria admitido, na fase inquisitiva, ele jamais integrou o quadro de
funcionários da Prefeitura, restando caracterizada, portanto, a malversação; e) o desvio só foi possível graças à participação do corréu S.A.O., diretor do Departamento de Recursos Humanos e responsável, à época, pela folha de pagamento do Município, o
qual forneceu a documentação ideologicamente falsa ao corréu, necessária para a abertura da conta-salário utilizada para as fraudes.
03. É irreprochável o juízo condenatório adotado na decisão recorrida. Com efeito, a materialidade e autoria delitivas restaram fartamente documentadas no PIC nº 1.15.000.002793/2014-27, no qual se verifica: a) que o Ofício de Folha de Pagamento do
Município Itaitinga/CE, sob a responsabilidade de S.A.O., efetivamente procedeu à liberação em duplicidade de numerários em nome de vários professores da rede municipal de ensino, no exercício financeiro de 2012, os quais tinham como destino, porém, a
conta corrente nº 12.852-x, agência nº 3880-6, do Banco do Brasil (cf. fls. 247, 249, 308 e ss. do vol. II do PIC); b) que a referida conta pertencia, de fato, ao réu A.F.N. (cf. ofício do BB às fls. 717/718 do vol. III do PIC); c) que, para a abertura
da conta, o réu S.A.O. assinou documento, falso, no qual afirmava que A.F.N. exercia o cargo de "Diretor de Divisão de Vigilância à Saúde" à época (fl. 27 do anexo I do PIC). Tais provas documentais, colhidas na fase investigatória, são de tal forma
candentes que poderiam, por si sós, incutir juízo de certeza no julgador quanto à efetiva prática do delito de peculato-furto por parte dos réus.
04. Nada obstante, também a prova testemunhal é uníssona nesse sentido. Com efeito, o então secretário da prefeitura de Itaitinga, Hiderval da Silva Souza, relatou em Juízo que a comissão do PAD levantara, junto ao Banco do Brasil, o relatório acostado
às fls. 642/666 do PIC, o qual constatou a existência de mais de um servidor recebendo proventos sob o mesmo número de conta (arq. 00.00.00.00000 - tempo: 3'00'' da mídia digital de fl. 88). Outrossim, a mesma testemunha esclareceu que, para proceder à
abertura de conta-salário, os servidores deveriam levar uma declaração de vínculo ao Banco do Brasil, sendo atribuição das secretarias o envio das indicações de contratação com as fichas funcionais. Perguntado sobre quem seria o responsável por assinar
essas declarações, a mesma testemunha afirmou ser S.A.O., diretor do RH, um dos responsáveis por assiná-las (tempo 5'35'' da mídia digital de fl. 88), corroborando, destarte, a prova documental. Já a testemunha Francisco Fábio Pereira de Oliveira (que
trabalhava como chefe de gabinete interino na Secretaria de Educação à época), asseverou que em cada secretaria havia um responsável pelo RH, que levava as "ocorrências" (como descreveu a folha de ponto e a frequência dos funcionários) ao réu S.A.O., a
fim de consolidar a folha de pagamento, sendo os valores depositados nas contas-salários pela Secretaria de Finanças do município (arq. 00.25.03.363000.wmv - tempo 7'14'). Mais contundente ainda é o testemunho de Francisco Fábio Pereira Oliveira,
secretário de educação interino à época dos fatos, o qual afirmou não conhecer A.F.N., relato que demonstra que o réu jamais atuou nas escolas daquela Prefeitura, considerando que se tratava do responsável direto por homologar os contratos dos
profissionais que exerciam as atividades docentes. É mister ressaltar, ainda, que o município em questão alberga um número reduzido de escolas, de modo que os professores eram conhecidos publicamente - inclusive pela indigitada testemunha que, contudo,
reforçou não saber da existência de vínculo do réu, nem se recordar de tê-lo visto no exercício de atribuições inerentes ao cargo de instrutor de informática.
05. Não fosse o bastante, depreende-se do extrato bancário da conta corrente utilizada por A.F.N. a realização de inúmeros saques, com valor relativo elevado, cuja destinação era incerta, além de duas transferências para a conta nº 311.079, de
titularidade da esposa do corréu S.A.O. (fl. 442 do vol. III do PIC), o que reforça ainda mais a comprovação de desvio e apropriação de verbas do erário público por parte dos apelantes.
06. É carente de verossimilhança a versão dos fatos apresentada por A.F.N. (segundo o qual foi contratado diretamente por S.A.O. para atuar como instrutor de informática do Município, devolvendo em seguida o cartão e a respectiva senha da conta-salário
a um funcionário da prefeitura), porquanto, como o próprio acusado S.A.O. afirmou em Juízo, a guarda de cartões bancários particulares por qualquer funcionário da prefeitura não era procedimento padrão. Outrossim, o ato de criar uma conta, sem que
houvesse confirmação de sua suposta contratação, e depois entregar os respectivos cartão e senha a um terceiro desconhecido - e não ao próprio banco, responsável por encerrá-la - são condutas que não se podem esperar da prudência de um homem médio.
Ademais, Francisco Fábio Pereira de Oliveira ressaltou que, apesar de a folha de pagamento ser feita pelo réu S.A.O. (tempo 9'50''), ele não tinha competência para realizar a contratação de novos funcionários, sendo apenas o chefe da Secretaria de
Educação o responsável por fazê-lo (tempo 12'30'').
07. Tampouco merece acolhida a alegação de ausência de dolo nas condutas dos réus, ou de incidência de erro de tipo. O acusado S.A.O., perquirido pela magistrada acerca de depósitos realizados na conta de sua esposa, afirmou não terem sido percebidos
significativamente pelo casal, de modo que acreditaram apenas serem referentes à atividade de correções de texto exercidas por seu cônjuge. Tal narrativa contrasta com as ações ora depreendidas dos autos, uma vez que o réu demonstrou ter ciência da sua
assinatura na declaração de vínculo da prefeitura que permitiu a abertura da conta utilizada como meio para subtração das verbas públicas. Ressalte-se que, mês a mês, o referido réu, responsável pela consolidação da folha de pagamento, permitiu haver a
duplicidade de pagamentos na mesma conta, aberta pelo corréu. Não há que se cogitar, portanto, da hipótese de erro de tipo.
08. Noutro giro, o réu A.F.N. evidentemente sabia não fazer parte do quadro de funcionários da prefeitura quando da abertura da conta. Ainda que tenha feito, como alegou, a entrega do cartão e senhas respectivas para terceira pessoa indeterminada,
evidencia-se, em verdade, a intenção de assegurar a apropriação de valores públicos por meio do instrumento bancário. Tais expedientes empreendidos por parte do apelante afastam, completamente, a alegação da ocorrência de erro de tipo. Condenações
mantidas.
09. Dosimetria. Primeira Fase. Relativamente ao cálculo da pena-base (art. 59 do CP), nota-se, de início, que as circunstâncias judiciais dos antecedentes, conduta social, personalidade, motivos do crime e comportamento da vítima já foram julgadas
favoravelmente aos réus, restando prejudicada a análise da dosimetria nesse ponto.
10. A culpabilidade foi valorada adequadamente. Com efeito, o dolo dos acusados é intenso, porquanto se utilizaram de diversos ardis (uso de declaração falsa, suposta duplicidade de pagamentos, etc) para induzir a Administração Pública e o Banco do
Brasil em erro, sobrelevando-se, portanto, o caráter insidioso das condutas perpetradas. Todavia, com dolo mais intenso ainda agiu o réu S.A.O., tendo em vista que tinha pleno domínio do fato delitivo, na qualidade de funcionário que consolidava a folha
de pagamento do município, esperando-se mais dele, portanto, uma conduta em conformidade ao direito.
11. As consequências do delito foram igualmente desfavoráveis aos réus; a uma, porque a conduta implicou em mácula à dignidade da gestão pública, como bem ressaltou a magistrada a quo, além de comprometer a honra dos funcionários que supostamente
receberiam verbas indevidas; a duas, porque o valor apropriado do erário, na ordem de R$ 98.469,08 (noventa e oito mil, quatrocentos e sessenta e nove reais e oito centavos), é fundamento suficiente para o juízo de valor negativo da conduta, conforme já
decidiu o STJ em caso análogo: "não há como se falar em ausência de individualização da reprimenda, tendo em vista que a apreciação negativa das consequências do delito revela que a conduta praticada ultrapassou as características ínsitas
ao tipo, em razão da vultuosa quantia efetivamente desviada" (AgRg no REsp 1657832/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, STJ - Quinta Turma, DJE: 17/10/2018). Nesse mesmo sentido já decidiu este TRF5: "as consequências do crime foram desfavoráveis tendo em
vista que os valores indevidamente percebidos pela segunda acusada (absolvida), que percebeu indevidamente um benefício previdenciário de trabalhadora rural, causou prejuízo ao erário no valor de R$ 16.212,54 (dezesseis mil, duzentos e doze reais e
cinquenta e quatro centavos)" (ACR nº 12534/CE, Rel. Des. CARLOS REBÊLO JÚNIOR, Terceira Turma, DJE 31/01/2017).
12. Razão assiste à defesa quanto à revaloração das circunstâncias do delito, vez que os fundamentos utilizados na sentença (a "intensidade do dolo" em razão da duplicidade de pagamento da burla à administração) já integram o julgamento negativo da
culpabilidade, representando, destarte, bis in idem. Portanto, em obediência aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, e que S.A.O. agiu com dolo mais intenso do que o normal à espécie (justificando-se, portanto, uma exasperação em maior
monta), fixa-se a pena-base para o réu A.F.N. em 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de reclusão e 56 (cinquenta e seis) dias-multas; e para S.A.O. em 4 (quatro) anos de reclusão e 70 (setenta) dias-multa.
13. Terceira fase. É de inteira razoabilidade a aplicação da causa de aumento relativa ao crime continuado (art. 71 do CP), tendo em vista à dilação no tempo, manutenção de lugar e do modo de execução. In casu, a sentença aplicou a causa de aumento no
percentual de 1/2 (um meio), considerando que as condutas foram reiteradas por 14 (quatorze) vezes - interpretação, aliás, mais benéfica em relação ao entendimento do STJ sobre a matéria, in verbis: "consoante a jurisprudência desta Corte Superior de
Justiça, o aumento da pena pela continuidade delitiva, dentro do intervalo de 1/6 a 2/3, previsto no art. 71 do Código Penal, deve adotar o critério da quantidade de infrações praticadas. Assim, aplica-se o aumento de 1/6 pela prática de duas infrações;
1/5, para três infrações; 1/4, para quatro infrações; 1/3, para cinco infrações; 1/2, para seis infrações; e 2/3, para sete ou mais infrações" (HC 388165/MS, Ministro Sebastião Reis Júnior, STJ - Sexta Turma, DJe: 22/09/2017). Mantida a causa de aumento
à razão de 1/2 (um meio).
14. Ausentes provas de boas condições financeiras dos apelantes, deve-se diminuir o valor unitário da multa, fixado na sentença em 01 (um) salário mínimo vigente à época dos fatos, para o mínimo legal de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à
época dos fatos, para ambos os réus.
15. Fixam-se as penas definitivas para: a) A.F.N. em 5 (cinco) anos de reclusão e 84 (oitenta e quatro) dias-multa, nas mesmas condições fixadas na sentença, pela prática do crime previsto no art. 312 c/c art. 71, ambos do CP; e b) S.A.O. em 6 (seis)
anos de reclusão e 105 (cento e cinco) dias-multa, nas mesmas condições fixadas na sentença, pela prática do crime previsto no art. 312 c/c art. 71, ambos do CP.
16. Apelação parcialmente provida.Decisão
UNÂNIME
Data do Julgamento
:
13/12/2018
Data da Publicação
:
09/01/2019
Classe/Assunto
:
ACR - Apelação Criminal - 15317
Órgão Julgador
:
Primeira Turma
Relator(a)
:
Desembargador Federal Leonardo Resende Martins
Comarca
:
TRIBUNAL - QUINTA REGIAO
Tipo
:
Acórdão
Referência
legislativa
:
LEG-FED SUM-497 (STF)
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
LEG-FED SUM-443 (STJ)
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
***** CP-40 Codigo Penal
LEG-FED DEL-2848 ANO-1940 ART-71 ART-312 ART-107 INC-4 ART-109 INC-4 ART-59 ART-327 PAR-2
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***** CPP-41 Codigo de Processo Penal
LEG-FED DEL-3689 ANO-1941 ART-387 INC-4
Fonte da publicação
:
DJE - Data::09/01/2019 - Página::49
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