TRF5 200183000223303
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. FILHA DE SERVIDOR PÚBLICO MILITAR DA AERONÁUTICA. AUTISMO SECUNDÁRIO À DEFICIÊNCIA MENTAL. NEGATIVA DE TRATAMENTO EM INSTITUIÇÃO ESPECIALIZADA. INADMISSIBILIDADE. DIREITO À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA.
1. Remessa necessária e apelação interposta contra sentença de procedência do pedido de condenação do ente público ao pagamento de todas as despesas pelo tratamento de saúde da autora, filha interdita de militar, na instituição especializada por ela indicada.
2. Nos termos da Norma Constitucional (arts. 5o, 6o e 196), o direito à saúde é marcado por sua "fundamentalidade", considerando-se mesmo que sua garantia é expressão de resguardo da própria vida, maior bem de todos, do qual os demais direitos extraem sentido. Analisando o conceito de "fundamentalidade", J J Gomes Canotilho concebe-o sob duas perspectivas: a "fundamentalidade formal", correspondente à constitucionalização, à localização de direitos reputados fundamentais no ápice da pirâmide normativa, com as conseqüências, desse fato, derivadas - demarcação das possibilidades do ordenamento jurídico e vinculatividade dos poderes públicos -, e a "fundamentalidade material", identificadora dos direitos fundamentais a partir do seu conteúdo "constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade", permissiva do reconhecimento de outros direitos não expressamente tipificados no rol constitucional, mas equiparáveis em dignidade e relevância aos direitos formalmente constitucionais ("norma de fattispecie aberta"). Em ambas as visões, exsurge a magnitude da essencialidade, embora seja patente a maior significância compreensiva da segunda. "No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados" (José Afonso da Silva). Os direitos fundamentais cumprem, nessa contextura, determinadas funções: exigem prestações do Estado, protegem diante do poder público e de terceiros, fomentam a paridade entre os indivíduos, designam os alicerces sobre os quais se constrói e se orienta o ordenamento jurídico ("eficácia irradiante"). Têm força, ao mesmo tempo, por assim dizer, de princípio e de regra.
3. Dos autos (especialmente da perícia médica) se extrai que a autora apresenta quadro de autismo secundário à deficiência mental, estando inválida definitivamente para o trabalho e para as atividades da vida diária, dependendo inteiramente do cuidado de terceiros e necessitando de tratamento especializado consistente em amplo programa de atendimento multidisciplinar (médico, fisioterápico, fonoaudiológico, terapêutico-ocupacional, psicológico e psiquiátrico), além da administração de psicofármacos e do ministério de educação especial.
4. É razoável a pretensão da autora de permanecer na instituição especializada, em que se trata desde 1993 (há quinze anos), mormente quando, em sua defesa, o ente público se limita a afirmar que a postulante teria que, primeiramente, submeter-se à inspeção de saúde no Hospital da Aeronáutica (providência desnecessária face à perícia e aos laudos médicos constantes dos autos oriundos de profissionais do próprio Ministério da Aeronáutica e do Departamento de Neuropsiquiatra da UFPE), que, se não tivesse condições de oferecer o tratamento adequado, a encaminharia à instituição conveniada habilitada. Caberia à União comprovar que o hospital militar ou outra instituição conveniada, expressamente indicada (não houve qualquer indicação), teria condições de dar continuidade ao tratamento da autora, ônus do qual não se desincumbiu.
5. Norma administrativa transcrita pela própria União permite reconhecer o direito da autora: "Mesmo existindo OSA [Organização de Saúde da Aeronáutica] na localidade, os beneficiários da AMH [Assistência Médico-Hospitalar] ou da AMHC poderão ter assistência médico-hospitalar em OS [Organização de Saúde] estranha ao Ministério da Aeronáutica, obedecida a prioridade estabelecida no item anterior [OS dos demais Ministérios Militares e OS civis] e nas seguintes condições: a) em casos especiais, pela carência de recursos técnico-especializados [...]" (item 9.5, da Portaria nº 696/GM6/93).
6. Segundo o art. 50, da Lei nº 6.880/80, os militares e seus dependentes têm direito à assistência médico-hospitalar, "assim entendida como o conjunto de atividades relacionadas com a prevenção, conservação ou recuperação da saúde, abrangendo serviços profissionais médicos, farmacêuticos e odontológicos, bem como o fornecimento, a aplicação de meios e os cuidados e demais atos médicos e paramédicos necessários".
7. Na sentença, possibilitou-se à União a indicação de outra instituição especializada, desde que preste os mesmo serviços da clínica em que tratada a autora, a um custo menor.
8. Não cria, este julgamento, um "precedente perigoso", porquanto demandas deste jaez exigem análise casuística, o que torna a solução dada apropriada apenas ao caso concreto e dependendo, outros feitos, de exame das especificidades que o tornam único.
9. Pelo não provimento da remessa necessária e da apelação.
(PROCESSO: 200183000223303, AC400535/PE, DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO CAVALCANTI, Primeira Turma, JULGAMENTO: 27/03/2008, PUBLICAÇÃO: DJ 14/05/2008 - Página 308)
Ementa
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. FILHA DE SERVIDOR PÚBLICO MILITAR DA AERONÁUTICA. AUTISMO SECUNDÁRIO À DEFICIÊNCIA MENTAL. NEGATIVA DE TRATAMENTO EM INSTITUIÇÃO ESPECIALIZADA. INADMISSIBILIDADE. DIREITO À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA.
1. Remessa necessária e apelação interposta contra sentença de procedência do pedido de condenação do ente público ao pagamento de todas as despesas pelo tratamento de saúde da autora, filha interdita de militar, na instituição especializada por ela indicada.
2. Nos termos da Norma Constitucional (arts. 5o, 6o e 196), o direito à saúde é marcado por sua "fundamentalidade", considerando-se mesmo que sua garantia é expressão de resguardo da própria vida, maior bem de todos, do qual os demais direitos extraem sentido. Analisando o conceito de "fundamentalidade", J J Gomes Canotilho concebe-o sob duas perspectivas: a "fundamentalidade formal", correspondente à constitucionalização, à localização de direitos reputados fundamentais no ápice da pirâmide normativa, com as conseqüências, desse fato, derivadas - demarcação das possibilidades do ordenamento jurídico e vinculatividade dos poderes públicos -, e a "fundamentalidade material", identificadora dos direitos fundamentais a partir do seu conteúdo "constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade", permissiva do reconhecimento de outros direitos não expressamente tipificados no rol constitucional, mas equiparáveis em dignidade e relevância aos direitos formalmente constitucionais ("norma de fattispecie aberta"). Em ambas as visões, exsurge a magnitude da essencialidade, embora seja patente a maior significância compreensiva da segunda. "No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados" (José Afonso da Silva). Os direitos fundamentais cumprem, nessa contextura, determinadas funções: exigem prestações do Estado, protegem diante do poder público e de terceiros, fomentam a paridade entre os indivíduos, designam os alicerces sobre os quais se constrói e se orienta o ordenamento jurídico ("eficácia irradiante"). Têm força, ao mesmo tempo, por assim dizer, de princípio e de regra.
3. Dos autos (especialmente da perícia médica) se extrai que a autora apresenta quadro de autismo secundário à deficiência mental, estando inválida definitivamente para o trabalho e para as atividades da vida diária, dependendo inteiramente do cuidado de terceiros e necessitando de tratamento especializado consistente em amplo programa de atendimento multidisciplinar (médico, fisioterápico, fonoaudiológico, terapêutico-ocupacional, psicológico e psiquiátrico), além da administração de psicofármacos e do ministério de educação especial.
4. É razoável a pretensão da autora de permanecer na instituição especializada, em que se trata desde 1993 (há quinze anos), mormente quando, em sua defesa, o ente público se limita a afirmar que a postulante teria que, primeiramente, submeter-se à inspeção de saúde no Hospital da Aeronáutica (providência desnecessária face à perícia e aos laudos médicos constantes dos autos oriundos de profissionais do próprio Ministério da Aeronáutica e do Departamento de Neuropsiquiatra da UFPE), que, se não tivesse condições de oferecer o tratamento adequado, a encaminharia à instituição conveniada habilitada. Caberia à União comprovar que o hospital militar ou outra instituição conveniada, expressamente indicada (não houve qualquer indicação), teria condições de dar continuidade ao tratamento da autora, ônus do qual não se desincumbiu.
5. Norma administrativa transcrita pela própria União permite reconhecer o direito da autora: "Mesmo existindo OSA [Organização de Saúde da Aeronáutica] na localidade, os beneficiários da AMH [Assistência Médico-Hospitalar] ou da AMHC poderão ter assistência médico-hospitalar em OS [Organização de Saúde] estranha ao Ministério da Aeronáutica, obedecida a prioridade estabelecida no item anterior [OS dos demais Ministérios Militares e OS civis] e nas seguintes condições: a) em casos especiais, pela carência de recursos técnico-especializados [...]" (item 9.5, da Portaria nº 696/GM6/93).
6. Segundo o art. 50, da Lei nº 6.880/80, os militares e seus dependentes têm direito à assistência médico-hospitalar, "assim entendida como o conjunto de atividades relacionadas com a prevenção, conservação ou recuperação da saúde, abrangendo serviços profissionais médicos, farmacêuticos e odontológicos, bem como o fornecimento, a aplicação de meios e os cuidados e demais atos médicos e paramédicos necessários".
7. Na sentença, possibilitou-se à União a indicação de outra instituição especializada, desde que preste os mesmo serviços da clínica em que tratada a autora, a um custo menor.
8. Não cria, este julgamento, um "precedente perigoso", porquanto demandas deste jaez exigem análise casuística, o que torna a solução dada apropriada apenas ao caso concreto e dependendo, outros feitos, de exame das especificidades que o tornam único.
9. Pelo não provimento da remessa necessária e da apelação.
(PROCESSO: 200183000223303, AC400535/PE, DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO CAVALCANTI, Primeira Turma, JULGAMENTO: 27/03/2008, PUBLICAÇÃO: DJ 14/05/2008 - Página 308)
Data do Julgamento
:
27/03/2008
Classe/Assunto
:
Apelação Civel - AC400535/PE
Órgão Julgador
:
Primeira Turma
Relator(a)
:
Desembargador Federal Francisco Cavalcanti
Comarca
:
Tribunal Regional Federal - 5ª Região
Código do documento
:
158234
PublicaÇÕes
:
Diário da Justiça (DJ) - 14/05/2008 - Página 308
DecisÃo
:
UNÂNIME
Doutrinas
:
Obra: DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DA CONSTITUIÇÃO
Autor: J.J. GOMES CANOTILHO
Obraautor:
:
JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS
JOSÉ ADÉRCIO LEITE SAMPAIO
ReferÊncias legislativas
:
CF-88 Constituição Federal de 1988 ART-6 ART-196 ART-5 INC-36 ART-227 INC-2
LEG-FED PRT-696 ANO-1993 (GM6)
LEG-FED LEI-6880 ANO-1980 ART-50
LEG-FED LEI-7853 ANO-1989
LEG-FED DEC-3298 ANO-1999
Votantes
:
Desembargador Federal José Maria Lucena
Desembargador Federal Francisco Cavalcanti
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