TRF5 200781000129369
ADMINISTRATIVO, CONSTITUCIONAL E PROCESSO CIVIL. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS). FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO E/OU TRATAMENTO MÉDICO. UNIÃO E ESTADO DO CEARÁ. LEGITIMIDADE PASSIVA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. SENTENÇA PARCIALMENTE "EXTRA PETITA". NULIDADE PARCIAL. DIREITO À SAÚDE. DIREITO FUNDAMENTAL. NATUREZA PRESTACIONAL POSITIVA CONCRETA. NÃO CARACTERIZAÇÃO COMO MERA NORMA PROGRAMÁTICA. LIMITAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS E RESERVA DO POSSÍVEL. ALEGAÇÕES GENÉRICAS. INSUFICIÊNCIA COMO ÓBICE À CONCRETIZAÇÃO DO REFERIDO DIREITO FUNDAMENTAL. HIPOSSUFICIÊNCIA. PRESUNÇÃO. DOENÇA GRAVE. TRATAMENTO MÉDICO NÃO EXPERIMENTAL. ESSENCIALIDADE. DIREITO AO FORNECIMENTO.
1. A jurisprudência do STJ encontra-se pacificada no sentido de que as ações relativas à assistência à saúde pelo SUS (fornecimento de medicamentos ou de tratamento médico, inclusive, no exterior) podem ser propostas em face de qualquer dos entes componentes da Federação Brasileira (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), sendo todos legitimados passivos para responderem a elas, individualmente ou em conjunto.
2. São, portanto, tanto a UNIÃO como o Estado do Ceará legitimados passivos para a causa, não podendo a divisão administrativa de atribuições estabelecida pela legislação decorrente da Lei n.º 8.080/90 restringir essa responsabilidade, servindo ela, apenas, como parâmetro da repartição do ônus financeiro final dessa atuação, o qual, no entanto, deve ser resolvido pelos entes federativos administrativamente ou em ação judicial própria, não podendo ser oposto como óbice à pretensão da população a seus direitos constitucionalmente garantidos como exigíveis deles de forma solidária.
3. Em face da legitimidade passiva da UNIÃO nesta causa, resta evidenciada a competência da Justiça Federal para seu processamento, afastando-se a preliminar de incompetência deduzida pela UNIÃO.
4. A sentença apelada, na parte em que determinou o custeio do tratamento do Apelado com verbas destinadas à publicidade institucional, é "extra petita", pois esta pretensão não foi deduzida na petição inicial, devendo, portanto, ser declarada sua nulidade nessa parte.
5. A saúde está expressamente prevista no art.196, cabeça, da CF, como direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, bem como através do acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, sendo uma responsabilidade comum da União, dos Estados, do DF e dos Municípios a concretização de tal direito.
6. Enquanto direito essencialmente vinculado à vida e à proteção da integridade físico-psíquica do ser humano, a saúde não pode ser interpretada apenas como um enunciado meramente programático, mas, sim, como um direito fundamental cuja efetivação é dever do Poder Público, pois a sua não concretização consiste em evidente afronta à dignidade da pessoa humana. Ainda que tal direito não estivesse expressamente previsto na CF/88, a sua estreita vinculação com o direito à vida, bem supremo do ser humano, o conduziria à situação de direito fundamental implícito, de modo que a sua efetivação também seria um dever do Estado, vez que a ação deste está vinculada pela imediata aplicabilidade das normas dos direitos fundamentais.
7. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios são solidariamente responsáveis pela efetivação do direito à saúde (art.23, inciso II, da CF), o que implica não apenas na elaboração de políticas públicas e em uma consistente programação orçamentária para tal área, como também em uma atuação integrada entre tais entes, que não se encerra com o mero repasse de verbas. O Poder Público não se exime de tal responsabilidade quando investe ou repassa recursos para serem aplicados na área da saúde. Em sendo investida verba pública para tais fins e não havendo a efetivação do direito que se quer garantir, é notório que a política adotada não se coaduna com a realidade a ser enfrentada ou que tal política não foi concretizada como programada, sendo dever de todos os entes federados atentarem para tal fato e atuarem de modo a cumprir com as suas responsabilidades constitucionais.
8. A jurisprudência nacional possui reiteradas decisões no sentido de que o direito à saúde é líquido e certo, bem como de que a saúde é direito público subjetivo, não podendo ser reduzido a mera promessa constitucional vazia, sendo tal direito exigível em Juízo por não ser um mero enunciado programático. Dessa forma, vigora o entendimento de que é dever do Poder Público disponibilizar tratamento médico-hospitalar à população que dele necessitar, ou seja, oferecer o serviço essencial na esfera médica, o que inclui o fornecimento de medicamentos, sob pena de incidência em grave comportamento inconstitucional, ainda que por omissão, pelo não fornecimento de condições materiais de efetivação de tal direito fundamental.
9. Nesse sentido: STF (AI-AgR n.º 648.971/RS e RE n.º 195.192/RS) e STJ (RMS n.º 11.183/PR).
10. A alegação genérica de limitações orçamentárias vinculadas à reserva do possível, além de não provada concretamente quanto à eventual indisponibilidade de fundos para o atendimento da pretensão inicial, não é suficiente para obstar a concretização do direito constitucional em exame, sobretudo quando notório o fato de que o Poder Público possui verbas de grande vulto destinadas a gastos vinculados a interesses bem menos importantes do que a saúde da população (por exemplo, publicidade, eventos festivos etc), os quais podem e devem ser, se for necessário, redirecionados para a satisfação de direitos essenciais da população.
11. Não se está, ressalte-se, diante de intromissão indevida do Poder Judiciário em esfera de atuação reservada aos demais Poderes, mas, ao contrário, de atuação judicial de natureza prestacional positiva calcada em relevante fundamento constitucional e na omissão ilegal do Poder Público em seu atendimento, sem que este tenha, concretamente, apresentado qualquer fundamento minimamente oponível à sua concretização.
12. A hipossuficiência financeira do Apelado, por ser ele beneficiário da assistência judiciária gratuita, é, ademais, presumida, não tendo os entes públicos componentes do pólo passivo da lide demonstrado que ele tivesse condições de arcar com o alto custo do tratamento postulado judicialmente.
13. No caso presente, a gravidade da condição de saúde do Apelado (portador de Síndrome de Hunter - mucopolissacaridose de tipo II - doença genética rara) e a essencialidade do tratamento medicamentoso por ela necessitado (idulsurfase - Elaprase), vez que é o único medicamento conhecido para tratamento de sua doença, tendo já recebido aprovação da FDA americana e da EMEA européia, agências responsáveis pela aprovação de medicamentos nos Estados Unidos da América e na União Européia, servem de base fática suficiente para o direito postulado judicialmente.
14. As aprovações desse medicamento para tratamento da síndrome de Hunter pela FDA e EMEA, acima referidas, afastam a alegação do Estado do Ceará de que se cuidaria de tratamento experimental, não sendo, ademais, seu alto custo elemento inviabilizador de seu fornecimento, pois, inclusive a raridade da doença genética do Autor indica que a repercussão financeira global desse tratamento sobre o orçamento público não terá conseqüências inviabilizadoras do atendimento das necessidades de saúde da população, alegação, ademais, sem qualquer prova concreta pelos Apelantes.
15. Ressalte-se, por fim, que não está o Apelado buscando em juízo tratamento privilegiado, mas o único tratamento eficaz existentes para sua grave doença, sem o qual não pode ter uma existência minimamente digna.
16. Não provimento da apelação da UNIÃO e provimento, em parte, da apelação do Estado do Ceará e da remessa oficial para declarar a nulidade da sentença apelada na parte em que determinou o custeio do tratamento do Apelado com verbas destinadas à publicidade institucional.
(PROCESSO: 200781000129369, APELREEX8212/CE, DESEMBARGADOR FEDERAL EMILIANO ZAPATA LEITÃO (CONVOCADO), Primeira Turma, JULGAMENTO: 14/01/2010, PUBLICAÇÃO: DJE 28/01/2010 - Página 82)
Ementa
ADMINISTRATIVO, CONSTITUCIONAL E PROCESSO CIVIL. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS). FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO E/OU TRATAMENTO MÉDICO. UNIÃO E ESTADO DO CEARÁ. LEGITIMIDADE PASSIVA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. SENTENÇA PARCIALMENTE "EXTRA PETITA". NULIDADE PARCIAL. DIREITO À SAÚDE. DIREITO FUNDAMENTAL. NATUREZA PRESTACIONAL POSITIVA CONCRETA. NÃO CARACTERIZAÇÃO COMO MERA NORMA PROGRAMÁTICA. LIMITAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS E RESERVA DO POSSÍVEL. ALEGAÇÕES GENÉRICAS. INSUFICIÊNCIA COMO ÓBICE À CONCRETIZAÇÃO DO REFERIDO DIREITO FUNDAMENTAL. HIPOSSUFICIÊNCIA. PRESUNÇÃO. DOENÇA GRAVE. TRATAMENTO MÉDICO NÃO EXPERIMENTAL. ESSENCIALIDADE. DIREITO AO FORNECIMENTO.
1. A jurisprudência do STJ encontra-se pacificada no sentido de que as ações relativas à assistência à saúde pelo SUS (fornecimento de medicamentos ou de tratamento médico, inclusive, no exterior) podem ser propostas em face de qualquer dos entes componentes da Federação Brasileira (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), sendo todos legitimados passivos para responderem a elas, individualmente ou em conjunto.
2. São, portanto, tanto a UNIÃO como o Estado do Ceará legitimados passivos para a causa, não podendo a divisão administrativa de atribuições estabelecida pela legislação decorrente da Lei n.º 8.080/90 restringir essa responsabilidade, servindo ela, apenas, como parâmetro da repartição do ônus financeiro final dessa atuação, o qual, no entanto, deve ser resolvido pelos entes federativos administrativamente ou em ação judicial própria, não podendo ser oposto como óbice à pretensão da população a seus direitos constitucionalmente garantidos como exigíveis deles de forma solidária.
3. Em face da legitimidade passiva da UNIÃO nesta causa, resta evidenciada a competência da Justiça Federal para seu processamento, afastando-se a preliminar de incompetência deduzida pela UNIÃO.
4. A sentença apelada, na parte em que determinou o custeio do tratamento do Apelado com verbas destinadas à publicidade institucional, é "extra petita", pois esta pretensão não foi deduzida na petição inicial, devendo, portanto, ser declarada sua nulidade nessa parte.
5. A saúde está expressamente prevista no art.196, cabeça, da CF, como direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, bem como através do acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, sendo uma responsabilidade comum da União, dos Estados, do DF e dos Municípios a concretização de tal direito.
6. Enquanto direito essencialmente vinculado à vida e à proteção da integridade físico-psíquica do ser humano, a saúde não pode ser interpretada apenas como um enunciado meramente programático, mas, sim, como um direito fundamental cuja efetivação é dever do Poder Público, pois a sua não concretização consiste em evidente afronta à dignidade da pessoa humana. Ainda que tal direito não estivesse expressamente previsto na CF/88, a sua estreita vinculação com o direito à vida, bem supremo do ser humano, o conduziria à situação de direito fundamental implícito, de modo que a sua efetivação também seria um dever do Estado, vez que a ação deste está vinculada pela imediata aplicabilidade das normas dos direitos fundamentais.
7. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios são solidariamente responsáveis pela efetivação do direito à saúde (art.23, inciso II, da CF), o que implica não apenas na elaboração de políticas públicas e em uma consistente programação orçamentária para tal área, como também em uma atuação integrada entre tais entes, que não se encerra com o mero repasse de verbas. O Poder Público não se exime de tal responsabilidade quando investe ou repassa recursos para serem aplicados na área da saúde. Em sendo investida verba pública para tais fins e não havendo a efetivação do direito que se quer garantir, é notório que a política adotada não se coaduna com a realidade a ser enfrentada ou que tal política não foi concretizada como programada, sendo dever de todos os entes federados atentarem para tal fato e atuarem de modo a cumprir com as suas responsabilidades constitucionais.
8. A jurisprudência nacional possui reiteradas decisões no sentido de que o direito à saúde é líquido e certo, bem como de que a saúde é direito público subjetivo, não podendo ser reduzido a mera promessa constitucional vazia, sendo tal direito exigível em Juízo por não ser um mero enunciado programático. Dessa forma, vigora o entendimento de que é dever do Poder Público disponibilizar tratamento médico-hospitalar à população que dele necessitar, ou seja, oferecer o serviço essencial na esfera médica, o que inclui o fornecimento de medicamentos, sob pena de incidência em grave comportamento inconstitucional, ainda que por omissão, pelo não fornecimento de condições materiais de efetivação de tal direito fundamental.
9. Nesse sentido: STF (AI-AgR n.º 648.971/RS e RE n.º 195.192/RS) e STJ (RMS n.º 11.183/PR).
10. A alegação genérica de limitações orçamentárias vinculadas à reserva do possível, além de não provada concretamente quanto à eventual indisponibilidade de fundos para o atendimento da pretensão inicial, não é suficiente para obstar a concretização do direito constitucional em exame, sobretudo quando notório o fato de que o Poder Público possui verbas de grande vulto destinadas a gastos vinculados a interesses bem menos importantes do que a saúde da população (por exemplo, publicidade, eventos festivos etc), os quais podem e devem ser, se for necessário, redirecionados para a satisfação de direitos essenciais da população.
11. Não se está, ressalte-se, diante de intromissão indevida do Poder Judiciário em esfera de atuação reservada aos demais Poderes, mas, ao contrário, de atuação judicial de natureza prestacional positiva calcada em relevante fundamento constitucional e na omissão ilegal do Poder Público em seu atendimento, sem que este tenha, concretamente, apresentado qualquer fundamento minimamente oponível à sua concretização.
12. A hipossuficiência financeira do Apelado, por ser ele beneficiário da assistência judiciária gratuita, é, ademais, presumida, não tendo os entes públicos componentes do pólo passivo da lide demonstrado que ele tivesse condições de arcar com o alto custo do tratamento postulado judicialmente.
13. No caso presente, a gravidade da condição de saúde do Apelado (portador de Síndrome de Hunter - mucopolissacaridose de tipo II - doença genética rara) e a essencialidade do tratamento medicamentoso por ela necessitado (idulsurfase - Elaprase), vez que é o único medicamento conhecido para tratamento de sua doença, tendo já recebido aprovação da FDA americana e da EMEA européia, agências responsáveis pela aprovação de medicamentos nos Estados Unidos da América e na União Européia, servem de base fática suficiente para o direito postulado judicialmente.
14. As aprovações desse medicamento para tratamento da síndrome de Hunter pela FDA e EMEA, acima referidas, afastam a alegação do Estado do Ceará de que se cuidaria de tratamento experimental, não sendo, ademais, seu alto custo elemento inviabilizador de seu fornecimento, pois, inclusive a raridade da doença genética do Autor indica que a repercussão financeira global desse tratamento sobre o orçamento público não terá conseqüências inviabilizadoras do atendimento das necessidades de saúde da população, alegação, ademais, sem qualquer prova concreta pelos Apelantes.
15. Ressalte-se, por fim, que não está o Apelado buscando em juízo tratamento privilegiado, mas o único tratamento eficaz existentes para sua grave doença, sem o qual não pode ter uma existência minimamente digna.
16. Não provimento da apelação da UNIÃO e provimento, em parte, da apelação do Estado do Ceará e da remessa oficial para declarar a nulidade da sentença apelada na parte em que determinou o custeio do tratamento do Apelado com verbas destinadas à publicidade institucional.
(PROCESSO: 200781000129369, APELREEX8212/CE, DESEMBARGADOR FEDERAL EMILIANO ZAPATA LEITÃO (CONVOCADO), Primeira Turma, JULGAMENTO: 14/01/2010, PUBLICAÇÃO: DJE 28/01/2010 - Página 82)
Data do Julgamento
:
14/01/2010
Classe/Assunto
:
Apelação / Reexame Necessário - APELREEX8212/CE
Órgão Julgador
:
Primeira Turma
Relator(a)
:
Desembargador Federal Emiliano Zapata Leitão (Convocado)
Comarca
:
Tribunal Regional Federal - 5ª Região
Código do documento
:
212412
PublicaÇÕes
:
Diário da Justiça Eletrônico TRF5 (DJE) - 28/01/2010 - Página 82
DecisÃo
:
UNÂNIME
Veja tambÉm
:
RESP 878080/SC (STJ)RESP 772264/RJ (STJ)RESP 656979/RS (STJ)AgRg no RESP 1028835/DF (STJ)AI-AgR 648971/RS (STF)RE 195192/RS (STJ)
ReferÊncias legislativas
:
CF-88 Constituição Federal de 1988 ART-196 ART-23 INC-2
LEG-FED LEI-8080 ANO-1990
Votantes
:
Desembargador Federal Francisco Cavalcanti
Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira
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