TRF3 0038209-47.2003.4.03.6100 00382094720034036100
CIVIL E PROCESSO CIVIL. SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. RESCISÃO DE
CONTRATO COMPLEXO. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO E UNITÁRIO ENTRE
TODOS OS CONTRATANTES. SENTENÇA ANULADA. APELAÇÃO DA CEF PARCIALMENTE
PROVIDA. APELAÇÃO DOS AUTORES PREJUDICADA.
1. Inicialmente, a partir da leitura da exordial, verifica-se que o pedido
principal da parte autora consiste na rescisão do contrato de financiamento
imobiliário (aquisição de imóvel em construção) firmado no âmbito
do Sistema Financeiro Imobiliário - SFI (Lei nº 9.514/1997), em razão
do atraso e da não conclusão do empreendimento habitacional, além da
existência de vícios de construção, e, consequentemente, na condenação
da ré à devolução dos valores pagos por força do contrato (prestações
do financiamento), corrigidos monetariamente, bem como dos valores despendidos
com impostos, taxas e emolumentos, também em decorrência do contrato. Além
disso, há pedido cumulado de condenação da ré por perdas e danos, o qual
ao que parece consiste no ressarcimento dos valores gastos com a locação de
outro imóvel (indenização por dano material), conforme se depreende das
razões de fls. 19/22. E a causa de pedir é o descumprimento do contrato,
evidenciado: (i) no atraso e não conclusão do empreendimento habitacional
pela construtora, que iniciou processo de concordata; (ii) na ausência
de contratação de seguradora para o empreendimento pela CEF, conforme
o contrato, o que teria evitado os prejuízos decorrentes do abandono pela
construtora; (iii) na não substituição da construtora pela CEF, o que teria
garantido a entrega e o cumprimento dos prazos; (iv) além da existência
de vícios de construção, por descumprimento do projeto original.
2. Em casos como o dos autos, entende-se que a relação entre a CEF, a
construtora e os mutuários deve ser entendida como um negócio jurídico
uno. Isso porque o negócio deve ser considerado no todo, em face da
circunstância de ser viabilizado com recursos públicos, em projeto concebido
sistematicamente e gerido pela CEF, de modo que não é possível cindir o
contrato em diversos subcontratos para fins de rescisão.
3. Basta verificar que o contrato de compra e venda de unidade habitacional
na planta/em construção com financiamento e alienação fiduciária em
garantia de fls. 29/62 foi assinado pelas três partes e cada uma delas assumiu
obrigações e direitos distintos. Depreende-se do contrato que: a) a empresa
MARTINS PEREIRA COMERCIAL E INCORPORADORA IMOBILIÁRIA LTDA., inscrita sob
o CNPJ nº 55.087.688/0001-80, figurou no contrato como vendedora (fls. 29 e
61); b) a empresa PEREIRA CONSTRUTORA E INCORPORADORA LTDA., inscrita sob o
CNPJ nº 03.078.401/0001-52, figurou no contrato como construtora (fl. 29);
c) os autores, CARLOS GITYN HOCHBERG e JACQUELINE RESENDE BERRIEL HOCHBERG,
figuraram no contrato como devedores, compradores e fiduciantes (fl. 29); d)
a CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - CEF figurou no contrato como credora e fiduciária
(fl. 29). Também se verifica que a CEF financiou a construção de algumas
unidades habitacionais do empreendimento denominado "MIRANTE ALTO DA LAPA"
(e a aquisição dos respectivos terrenos), dentre as quais a unidade que
os autores compraram da imobiliária e entregaram à CEF em alienação
fiduciária em garantia. A instituição financeira obrigou-se a acompanhar as
obras por meio de engenheiro por ela designado e fiscalizar a evolução das
obras, bem como condicionou o levantamento das parcelas (pela construtora)
ao andamento das obras de acordo com o cronograma por ela aprovado e ao
cumprimento das exigências específicas para a liberação de cada parcela
(fls. 48/50). Por sua vez, a construtora assumiu a obrigação de construir,
com os recursos provenientes do financiamento concedido pela CEF segundo as
regras do Sistema Financeiro Imobiliário - SFI e com recursos próprios, o
empreendimento denominado "MIRANTE ALTO DA LAPA", composto por 152 unidades
isoladas, conforme as especificações de fls. 30/43, bem como de elaborar
relatórios acerca da evolução das obras e cumprimento do cronograma aprovado
pela CEF. E os autores compraram da construtora um terreno e uma unidade
isolada na planta, por meio de financiamento junto à CEF, e, ato contínuo,
entregaram este imóvel à instituição bancária em alienação fiduciária
em garantia, segundo as regras do Sistema Financeiro Imobiliário - SFI,
comprometendo-se a efetuar o pagamento das prestações do financiamento
imobiliário no forma do contrato. Além disso, consta no contrato que o
terreno utilizado para construção do empreendimento "MIRANTE ALTO DA LAPA"
é proveniente de incorporação imobiliária, sendo que 18,9867% da área
era de titularidade de PEREIRA CONSTRUTORA E INCORPORADORA LTDA., ao passo
que 81,192% da área era de titularidade da compromissária compradora
COOPERATIVA HABITACIONAL PRÓCASA.
4. Como se vê, trata-se de espécie de contrato complexo, isto é, aqueles
provenientes da combinação de elementos de diversos contratos típicos,
reunidos em novas figuras não previstas na norma jurídica - no caso,
vê-se, ao menos, financiamento da compra de imóvel na planta com alienação
fiduciária e empreitada -, o qual, ademais, envolve vários contratantes e
diversas obrigações contrapostas. Pois bem. Considerando que a pretensão
principal da parte autora é a rescisão deste contrato complexo, que deve
ser concebido de forma una, conclui-se que é imprescindível que todos os
contratantes integrem o polo passivo da presente ação, isto é, que tanto a
CEF quanto a construtora integrem o polo passivo da presente ação. Trata-se,
portanto, de litisconsórcio passivo necessário entre os demais contratantes,
pois, em razão da natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia
da sentença depende da citação de todos que devam ser litisconsortes,
conforme dispõe o art. 114 do Código de Processo Civil de 2015, que corrigiu
a imprecisão do códex anterior quanto à definição do instituto, acolhendo
o conceito há muito adotado pela doutrina.
5. E a apreciação do mérito deste processo (direito ou não à rescisão
do contrato e suas consequências) inevitavelmente afetará a construtora,
pois ela foi uma das contratantes. Ademais, o art. 472 do Código de Processo
Civil de 1973 veda que a sentença atinja terceiros que não participaram
do processo. Assim, não é possível analisar o pedido da parte autora sem
que a construtora seja incluída no polo passivo da ação.
6. Aliás, no caso, o litisconsórcio passivo não é apenas necessário,
mas também é unitário, porquanto, em razão da natureza da relação
jurídica, o juiz tem de decidir o mérito de modo uniforme para todos os
litisconsortes, conforme dispõe o art. 116 do Código de Processo Civil de
2015, que corrigiu a imprecisão do códex anterior quanto à definição
do instituto, acolhendo o conceito há muito adotado pela doutrina. Isso
porque, ou, se preenchidos os requisitos para a rescisão, determina-se a
rescisão do contrato em relação a todos os contratantes e, consequentemente,
determina-se o retorno ao status quo anterior à realização do contrato, como
já entendeu esta E. Quinta Turma nos autos nº 0010401-56.2006.4.03.6102. Ou,
se não preenchidos os requisitos para a rescisão, não se rescinde o
contrato em relação a nenhum dos contratantes. O que não é possível é
a rescisão do contrato em relação a uma parte dos contratantes, deixando
de rescindi-lo em relação aos demais contratantes. Vale dizer, em razão
da natureza da relação jurídica, o julgamento deve, necessariamente,
ser uniforme para todos os litisconsortes.
7. Quanto a este ponto, cabe destacar que o MM. Magistrado a quo, ao
determinar a rescisão do contrato tão-somente em relação aos autores e
à CEF, deparou-se com uma situação de difícil - quiçá impossível -
solução, pois, sem a presença de todos os contratantes no polo passivo,
não era possível determinar o retorno ao status quo ante. E, na tentativa
de solucionar a questão, acabou por incorrer em grave injustiça, eis
que, por exemplo, em relação aos autores, desconstituiu o financiamento
do imóvel, determinando que a CEF devolva aos autores todos os valores
recebidos a título de prestações do financiamento, e, concomitantemente,
sem causa jurídica alguma (vez que o contrato de financiamento do imóvel
foi rescindido/extinto), manteve-os na posse e titularidade do imóvel,
o que, a meu ver, gera enriquecimento sem causa.
8. No mais, o fato de se tratar de litisconsórcio passivo unitário afasta
qualquer possibilidade de apreciação do mérito, sem a presença de todos os
litisconsortes no polo passivo. Isto pois, conforme entendimento há muito
adotado pela doutrina e pela jurisprudência e agora também positivado
no art. 115 do Código de Processo Civil de 2015, a sentença de mérito
proferida sem a participação do litisconsorte passivo necessário é
ineficaz em relação aos litisconsortes que não foram citados. Entretanto,
a sentença de mérito proferida sem a participação do litisconsorte passivo
necessário e unitário é nula. Isto é, nas hipóteses em que a decisão
deve ser, necessariamente, uniforme em relação a todas as pessoas que
deveriam ter integrado o processo, a sentença eventualmente proferida, sem
a presença de um dos litisconsortes, é nula. E é exatamente este o caso
dos autos. A construtora é litisconsorte passiva necessária e unitária
em relação à pretensão de rescisão do contrato e a sua ausência torna
nula a sentença proferida nestes autos.
9. Ainda, apenas para afastar quaisquer dúvidas quanto ao tema, consigno que
o caso dos autos (pedido principal) é diverso daqueles em que a pretensão
do mutuário consiste no recebimento de indenização (ressarcimento de danos
materiais e/ou reparação de danos morais), em decorrência de descumprimento
do contrato de financiamento, de vícios de construção ou de cobertura
securitária, dentre outros, pois, nestes casos, em regra, há solidariedade
entre as rés (CEF, seguradora, construtora e eventualmente outras pessoas,
a depender a situação fática). E, quando há solidariedade, a parte
"credora" pode escolher litigar contra apenas um dos corresponsáveis e este
é obrigado a arcar com o valor integral da obrigação, sendo-lhe facultado
cobrar a parcela devida por cada um dos corresponsáveis em ação de regresso,
nos termos dos arts. 275 e 283 do Código Civil de 2002. É por esta razão
que nestes casos não há litisconsórcio passivo necessário. Distinto é
o caso dos autos (pedido principal) em que a pretensão da parte autora é
a rescisão do próprio contrato de compra e venda com financiamento. Neste
caso, todas as pessoas que figuraram como contratantes tem que estar no
polo passivo desta ação. Não se desconhece que, no caso, há pedido
indenizatório cumulado (para o qual não há litisconsórcio necessário),
porém, exatamente por estarem cumulados em uma mesma ação, é que não se
mostra possível analisar o segundo pedido, antes que se resolva o impasse
oriundo da ausência de litisconsorte necessário e unitário em relação
ao pedido principal.
10. Cabe consignar ainda que o fato da denunciação da lide promovida pela
CEF à construtora já ter sido rejeitada pelo Judiciário (em razão da
inércia da CEF em promover a citação da construtora), de modo que essa
questão encontra-se acobertada pela preclusão, não impede o reconhecimento
do litisconsórcio passivo necessário, porquanto são questões absolutamente
distintas. E é evidente que não era caso de denunciação da lide, pois este
instituto se presta a formar uma lide secundária entre o réu denunciante
e a parte denunciada. No caso, a construtora é necessariamente ré para a
própria pretensão da parte autora. Além disso, a ausência de litisconsorte
passivo necessário é questão que pode ser apreciada a qualquer tempo e
em qualquer grau de jurisdição, pois se relaciona às condições da ação.
11. Ainda, anoto que, por se tratar de litisconsórcio passivo necessário
e unitário, cabe à parte autora tomar as providências para efetivar a
citação da construtora, seja real ou ficta, sob pena de extinção da
ação sem resolução do mérito.
12. Por todas as razões expostas, a sentença deve ser anulada.
13. Inaplicável à hipótese sub judice o artigo 1.013, §3º, do
Código de Processo Civil de 2015 (correspondente ao artigo 515, § 3º,
do Código de Processo Civil de 1973), porquanto não aperfeiçoada a
relação processual. Ausente litisconsorte passivo necessário e unitário,
encontra-se incompleta a triangulação processual. Portanto, os autos devem
retornar à Vara de Origem para intimação da parte autora para que promova
a inclusão, no polo passivo da ação, de todas as pessoas que figuraram
como contratantes no instrumento que se pretende rescindir, na qualidade de
litisconsortes passivos necessários e unitários, sob pena de extinção do
processo, sem resolução do mérito, em relação ao pedido de rescisão,
e posterior regular prosseguimento do feito.
14. Resta prejudicada a apelação interposta pelos autores.
15. Recurso de apelação da CEF parcialmente provido para anular a sentença
de fls. 576/579-vº, 589/590 e 604/604-vº e determinar o retorno dos
autos à Vara de Origem para intimação da parte autora para que promova
a inclusão, no polo passivo da ação, de todas as pessoas que figuraram
como contratantes no instrumento que se pretende rescindir, na qualidade de
litisconsortes passivos necessários e unitários, sob pena de extinção do
processo, sem resolução do mérito, em relação ao pedido de rescisão,
e posterior regular prosseguimento do feito, nos termos do voto.
Ementa
CIVIL E PROCESSO CIVIL. SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. RESCISÃO DE
CONTRATO COMPLEXO. LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO E UNITÁRIO ENTRE
TODOS OS CONTRATANTES. SENTENÇA ANULADA. APELAÇÃO DA CEF PARCIALMENTE
PROVIDA. APELAÇÃO DOS AUTORES PREJUDICADA.
1. Inicialmente, a partir da leitura da exordial, verifica-se que o pedido
principal da parte autora consiste na rescisão do contrato de financiamento
imobiliário (aquisição de imóvel em construção) firmado no âmbito
do Sistema Financeiro Imobiliário - SFI (Lei nº 9.514/1997), em razão
do atraso e da não conclusão do empreendimento habitacional,...
Data do Julgamento
:
23/04/2018
Data da Publicação
:
02/05/2018
Classe/Assunto
:
Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 1895168
Órgão Julgador
:
QUINTA TURMA
Relator(a)
:
DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO FONTES
Comarca
:
TRIBUNAL - TERCEIRA REGIÃO
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