TRF5 200183000196014
CIVIL. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO - SFH. CONTRATO DE MÚTUO HABITACIONAL. REVISÃO.
1. Apelações interpostas pela mutuária e pela CEF contra sentença de parcial procedência do pedido, proferida nos autos de ação ordinária de revisão de contrato de mútuo habitacional, firmado no âmbito do SFH.
2. O SFH foi criado com vistas a estimular a construção de habitações de interesse social e a possibilitar a aquisição da casa própria pelas classes da população que percebiam menor renda e que, portanto, não tinham condições de recorrer à iniciativa privada.
3. O SFH foi fundado no direito à moradia, agasalhado esse pela Constituição Federal como direito social, necessidade premente do trabalhador. Trata-se de reconhecer a habitação como direito inerente à condição humana, habitação como refúgio e como permissivo da inserção do indivíduo no convívio social. Consoante se apreende da evolução normativa da matéria, ao SFH se confere conotação nitidamente social (decorrente de sua finalidade), sendo a ele inerente o equilíbrio que deve permear a relação entre a renda do mutuário e as prestações do financiamento.
4. O princípio do pacta sunt servanda deve ser interpretado de forma harmônica com as outras normas jurídicas que integram o ordenamento, impondo-se o seu sopeso, inclusive e especialmente, diante do escopo do negócio jurídico ajustado.
5. "Consoante entendimento jurisprudencial é aplicável o CDC aos contratos de mútuo hipotecário pelo SFH" (STJ, Quarta Turma, RESP 838372/RS, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. em 06.12.2007).
6. A sentença determinou a revisão das prestações do mútuo habitacional, com a aplicação exclusiva dos índices de reajuste salarial obtidos pela categoria profissional da mutuária. A CEF assevera que está cumprindo o PES/CP. Conforme se depreende dos autos a mutuária se enquadrava, no início da relação contratual (1991), na categoria profissional de "Profissional Liberal Sem Vínculo Empregatício", e, logo após, passou à categoria profissional de secretária de "Estabelecimentos em Serviços de Saúde" (1992). Confrontando as declarações do sindicato e a planilha de evolução do financiamento, permite-se constatar que a CEF vem descumprindo a política de reajuste adotada no contrato, corrigindo as prestações em descompasso com o PES, descumprimento esse, inclusive, constatado pela perícia judicial e refletido pelos vários pedidos formulados, administrativamente, pela mutuária, acatados pela CEF, para fins de retificação dos índices de correção. Apelação da CEF não provida nesse ponto.
7. Na sentença, não se acolheu a alegação de que, na transição do cruzeiro para a URV, teria havido reajuste das prestações, não condizente com a evolução salarial do mutuário paradigma, à medida que ele não teria tido aumento salarial. A mutuária insiste na tese. Segundo o STJ, "a aplicação da URV [...] não significou reajuste de prestação, mas critério de transição para que fosse efetuada a correção para o real" (Terceira Turma, RESP 645126/PE, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. em 03.04.2007), bem como "a incidência da URV nas prestações do contrato não rendem ensejo a ilegalidade, porquanto, na época em que vigente, era quase que uma moeda de curso forçado, funcionando como indexador geral da economia, inclusive dos salários, sendo certo, nesse contexto, que a sua aplicação, antes de causar prejuízos, mantém, na verdade, o equilíbrio entre as parcelas do mútuo e a renda, escopo maior do PES" (Quarta Turma, RESP 576638/RS, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. em 03.05.2005). O fato, entretanto, é que, de acordo com a declaração do sindicato - documento não contraditado pela parte ré -, no período de março a junho de 1994, não houve aumento salarial da categoria profissional, de modo que não se pode admitir o reajustamento das prestações nesse período. Nesse sentido: "Como se sabe, nos meses de março, abril, maio e junho de 1994, após a conversão, a atualização diária da URV - Unidade Real de Valor - representou tão-só a correção da moeda, não significando ganho real no salário do empregado, em face do que, descabido se afigura a majoração das prestações em tal período" (TRF5, Segunda Turma, AC 352891/PE, Rel. Des. Federal Petrucio Ferreira, j. em 03.10.2006). Ademais: "Aos mutuários cujo reajuste da prestação, em cruzeiros reais, eventualmente for superior ao aumento salarial efetivamente percebido, permanece facultada a solicitação de revisão da prestação, na forma da legislação vigente" (art. 4o, da Resolução BACEN nº 2.059, de 23.03.94). Apelação da mutuária provida nesse ponto.
8. A sentença entendeu que o valor do seguro deverá ser reajustado pelos mesmos índices que corrigem as prestações do financiamento. No respeitante ao seguro, as parcelas a ele referentes, mercê de sua natureza acessória, devem obedecer aos mesmos critérios de reajuste das prestações. Apelação da CEF a que se nega provimento, nesse tocante.
9. A sentença entendeu ser ilegal a cobrança do CES. A CEF insiste na regularidade da sua cobrança. O CES - Coeficiente de Equiparação Salarial, instituído pela Resolução nº 36/69, do extinto BNH, e referido no art. 8o, da Lei nº 8.692/93, deve ter a sua aplicação mantida, in casu, por estar expressamente previsto no contrato, consoante se observa da entrevista de proposta subscrita pela própria mutuária. Precedente do STJ: "Não havendo previsão contratual não há como determinar aplicação do CES - Coeficiente de Equiparação Salarial, presente a circunstância de ser o contrato anterior à lei que o criou" (Terceira Turma, RESP 703907/SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. em 15.08.2006). Apelação da CEF a que se dá provimento nesse ponto.
10. A sentença entendeu ser indevida a utilização da Tabela Price, por geração de anatocismo. A CEF alega a inocorrência de juros capitalizados nesse sistema. Caracterizada, in casu, a injurídica incidência de juros sobre juros, tanto em razão da amortização negativa, quanto pelo fato de que as prestações vencidas, não pagas, serão incorporadas ao saldo devedor, para nova incidência de juros, quando já são constituídas de uma parte de juros e outra de amortização. "A jurisprudência dos tribunais pátrios vem firmando o entendimento de que há capitalização dos juros na forma utilizada pela Tabela Price para amortização das prestações. 'A capitalização dos juros é proibida (Súmula 121/STJ), somente aceitável quando expressamente permitida em lei (Súmula 93/STJ), o que não acontece no SFH'. Precedente do STJ" (TRF5, Primeira Turma, AC nº 400982/CE, Rel. Des. Federal Francisco Wildo, j. em 14.12.2006). Apelação da CEF não provida nessa parte.
11. A mutuária pediu a modificação da sistemática de amortização/reajuste do saldo devedor. "A fórmula, segundo a qual corrige-se o saldo devedor majorando-o, para, após avultá-lo, deduzir a prestação devidamente quitada pelo mutuário, apresenta-se imprópria por não permitir zerar o saldo devedor e por transgredir ao escopo perseguido pelo Sistema Financeiro de Habitação, sob cuja égide se acha o contrato em tela. A operação razoável deve ser expressa inicialmente abatendo-se a prestação quitada, para depois corrigir o saldo devedor, conforme art. 6º, c, da lei 4380/64" (TRF5, Primeira Turma, AC 402054/PE, Rel. Des. Federal Francisco Wildo, j. em 01.03.2007, por maioria). Apelação da mutuária provida nessa parte.
12. A mutuária requer a limitação dos juros contratuais, aos nominais, não superiores a 10%, conforme determina a Lei 4.380/64, expurgando-se os juros efetivos. Juros nominais correspondem à taxa de juros contratada numa determinada operação financeira (encontrada, a sua expressão mensal, a partir da divisão do percentual por 12, ou seja, pelo número de meses do ano), e juros efetivos, à taxa de rendimento que a operação financeira proporciona efetivamente (já que a incidência de juros em cada mês acarreta percentual, no final do ano, não coincidente com a taxa nominal). A existência das taxas nominal e efetiva deriva da própria mecânica da matemática financeira. De se observar que a taxa nominal é fixada para um período de um ano, ao passo que a freqüência da amortização é mensal (períodos diferentes, portanto). A ré estaria a agir ilegitimamente se omitisse o percentual da taxa de juros efetiva, o que não ocorreu. As duas espécies restaram expressamente consignadas no instrumento contratual, sendo definidas em 10,5% (nominal) e 11,0203% (efetiva), estando, ambas, acima do limite de 10% estabelecido pela Lei nº 4.380/64 (devendo ser corrigidas), vigorante, quanto a esse limite, até o advento da Lei nº 8.692/93, que, em seu art. 25, estabeleceu o teto de 12% (o contrato é de 30.04.1991). Apelação da mutuária a que se dá provimento nesse tocante, para definir o máximo dos juros em 10%.
13. Propugnou, a mutuária, pela devolução dos valores atinentes ao pagamento do FUNDHAB - Fundo de Assistência Habitacional. A sentença indeferiu o pedido, ante a falta de comprovação de pagamento pela mutuária. Nos termos da redação conferida pelo Decreto-Lei nº 2.240, de 31.01.1985, constituem recursos do FUNDHAB "as contribuições ao FUNDHAB, a partir do mês de fevereiro de 1984, dos vendedores, pessoas físicas ou jurídicas, de imóveis objeto de financiamento concedido por sua Carteira de Habitação a mutuário final" (inciso II, do art. 7o, do Decreto-Lei nº 2.164/84). Por conseguinte, trata-se de parcela cujo ônus não pode ser imputado ao devedor (mutuário), mas sim ao vendedor, do que decorre a ilegalidade da cláusula contratual em sentido inverso. In casu, não tendo, a mutuária, comprovado que pagou a referida contribuição, não há como determinar qualquer restituição, mormente quando na réplica à contestação a mutuária mostra incerteza quanto ao pagamento da parcela. Apelação da mutuária não provida, quanto a esse ponto.
14. A mutuária se insurgiu contra a correção do saldo devedor pela TR, pedindo a substituição da TR pelo INPC. A questão relativa à incidência da TR para fins de correção do saldo devedor dos contratos de mútuo habitacional encontra-se já, de certo modo - pelo menos no respeitante aos contratos celebrados anteriormente à Lei nº 8.177, de 01.03.1991, ou, a dizer, anteriores à Medida Provisória nº 294, de 31.01.1991, e sem cláusula de correção pelos índices praticados quanto à poupança -, pacificada, em face da decisão do Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADIN 493-0/DF (j. em 25.06.1992, p. em DJ de 04.09.1992, Rel. Min. Moreira Alves). O STJ tem entendido que, para os contratos posteriores à lei mencionada ou com cláusula de correção pelos índices da poupança, a TR é aplicável (Terceira Turma, AgReg no AgReg no RESP 937435/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 21.02.2008). Cuida-se, contudo, a TR, de índice de remuneração de capital e não de fator de correção monetária, não refletindo a variação do poder aquisitivo da moeda. Não se olvide, ademais, que a TR não se mostra compatível com a sistemática dos contratos de mútuo habitacional inseridos no contexto do SFH, a teor da regra mater representada pela Lei nº 4.380/64. A despeito disso, é menos prejudicial à mutuária, consideradas as variações acumuladas da TR e do INPC, a persistência da TR. Apelação da mutuária a que se nega provimento, nesse tocante.
15. A mutuária afirma o caráter abusivo da multa constante do contrato em 10% (cláusula 27a), de modo que ela deveria ser reduzida para 2%. Segundo posição pacificada pelo STJ, "a redução da multa moratória de 10% para 2%, tal como definida na Lei nº 9.298/96, que modificou o CDC, aplica-se apenas aos contratos celebrados após a sua vigência" (STJ, 3T, AgRg no RESP 650849/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, p. em DJ de 09.10.2006). Não é o caso dos autos, em que o contrato foi celebrado em 1991. Apelação da mutuária não provida nesse ponto.
16. Busca, a mutuária, a repetição do que teria pago a maior à instituição financeira. Não há que se falar em repetição de quantias pagas a maior, se não houve a extinção do contrato de mútuo, devendo, o montante pago a maior, ser dirigido à quitação das prestações em atraso, se houver, e, se ainda assim houver sobra, ao pagamento das prestações vincendas e à amortização do saldo devedor, nessa ordem. Apelação da mutuária também não provida nesse aspecto.
17. Sucumbência recíproca que se reconhece.
18.Apelação da CEF parcialmente provida.
19. Apelação da mutuária parcialmente provida.
(PROCESSO: 200183000196014, AC422078/PE, DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO CAVALCANTI, Primeira Turma, JULGAMENTO: 12/06/2008, PUBLICAÇÃO: DJ 18/08/2008 - Página 794)
Ementa
CIVIL. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO - SFH. CONTRATO DE MÚTUO HABITACIONAL. REVISÃO.
1. Apelações interpostas pela mutuária e pela CEF contra sentença de parcial procedência do pedido, proferida nos autos de ação ordinária de revisão de contrato de mútuo habitacional, firmado no âmbito do SFH.
2. O SFH foi criado com vistas a estimular a construção de habitações de interesse social e a possibilitar a aquisição da casa própria pelas classes da população que percebiam menor renda e que, portanto, não tinham condições de recorrer à iniciativa privada.
3. O SFH foi fundado no direito à moradia,...
Data do Julgamento
:
12/06/2008
Classe/Assunto
:
Apelação Civel - AC422078/PE
Órgão Julgador
:
Primeira Turma
Relator(a)
:
Desembargador Federal Francisco Cavalcanti
Comarca
:
Tribunal Regional Federal - 5ª Região
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