TJPI 2013.0001.006477-0
PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DA JUSTIÇA GRATUITA.OMISSÃO DO JUIZ DA CAUSA. POSSIBILIDADE DE DEFERIMENTO PELO TRIBUNAL. AÇÃO REDIBITÓRIA CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. COMPRA E VENDA DE AUTOMÓVEL. CONSUMIDOR. PRELIMINAR. CERCEAMENTO DE DEFESA. PROVA PERICIAL. FEITO SUBSTANCIALMENTE INSTRUÍDO. DESNECESSIDADE. DECADÊNCIA. CRITÉRIO DA VIDA ÚTIL. REITERADAS RECLAMAÇÕES QUE OBSTARAM O TRANSCURSO DO PRAZO DECADENCIAL. EXISTÊNCIA DE GARANTIA LEGAL E CONTRATUAL. DECADÊNCIA NÃO OPERADA. DANO MORAL. PRAZO PRESCRICIONAL. PRESCRIÇÃO NÃO OPERADA. RESCISÃO DO CONTRATO. POSSIBILIDADE. DANO MORAL CONFIGURADO. REDUÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. DESNECESSIDADE. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.
1. Não tendo sido o pedido de benefício da justiça gratuita apreciado na sentença a quo, mas sido reiterado em sede de contrarrazões, faz-se possível ao tribunal enfrentá-lo no julgamento da apelação, considerando a omissão do provimento de primeira instância. Para seu deferimento, basta que a alegação de pobreza não tenha sido elidida por prova em contrário.
2.As partes controvertem em torno da compra e venda de veículo usado que se revela inadequado aos fins a que se destina. O magistrado a quo deferiu o pedido de desistência da prova pericial, acolhendo a alegação de existência de farta prova nos autos. Contra esta decisão se opôs a empresa Apelante ao argumento de ofensa ao direito ao contraditório e à ampla defesa. Reconhece a própria Ré, ora Apelante, em sede de contestação, que o veículo objeto da lide, no exíguo prazo de menos de 4 (quatro) meses, retornou à concessionária para conserto por 3 (três) vezes. A Apelante não refutou o fato aduzido pelo Apelado,na inicial, que o veículo permaneceu para os devidos reparos com a Apelante, inicialmente, por 13 (treze) dias, e, posteriormente, por 28 (vinte e oito) dias. O réu, à luz do art. 302, parágrafo único , do CPC, tem o ônus da impugnação específica dos fatos narrados na inicial da causa, ou seja, os fatos devem ser impugnados , um a um, encontrando-se dispensado desse ônus apenas o advogado dativo, o curador especial e o ministério público. Ademais, a existência de reiterados problemas no veículo foi corroborada pelo depoimento de testemunhas, durante audiência de instrução.
4.Um carro usado, vendido por concessionária, com 4 (quatro) anos de uso, embora presente o desgaste natural de suas peças, em regra, deve servir para sua finalidade. Se apresenta diversos problemas, logo após a aquisição, dentre eles, defeito que o torna inservível para sua finalidade, evidente a existência de vício do produto. Mesmo que o veículo seja usado, subsiste a garantia legal em afiançar o perfeito funcionamento do veículo adquirido pelo consumidor, até porque ninguém compra um bem que não possa ser utilizado a seu contento, para as finalidades práticas do seu cotidiano profissional ou familiar.
5.Torna-se desnecessária a perícia para verificar o mau uso do veículo, posto que exíguo o prazo entre a aquisição, o uso e o retorno à concessionária, que justificasse, naquele espaço de tempo, a necessidade de encaminhar veículo à oficina mecânica para realizar revisão. Ao ofertar um veículo automotor usado, de valor considerável, como no caso dos autos, a concessionária deve tomar as devidas cautelas. Ofende a boa-fé objetiva entregar ao adquirente um carro sem a devida manutenção. Se a manutenção não for capaz de afastar os vícios que tornam o veículo improprio para o uso, não deve sequer o bem ser ofertado. Além disso, a culpa não pode ser deslocada para o adquirente de veículo que,logo após verificar o vício do produto, procura a concessionária fornecedora para reparar os referidos defeitos.
6.Dispõe o art. 130 do Código de Processo Civil, que ao juiz cabe determinar as provas necessárias à instrução processual. A questão do deferimento, ou não, da prova depende da avaliação do juiz, dentro do quadro probatório existente, da necessidade dessa prova. E assim deve ser, pois o magistrado, no processo judicial, é o destinatário da prova. Possui liberdade de convencimento, nos limites impostos pela lei, podendo sobrepesar livremente o conjunto fático e probatório que lhe for posto à percuciência do exame judicial . Isto se justifica pela adoção, pelo ordenamento jurídico pátrio, do princípio do livre convencimento motivado, consagrado no art. 131 do Código de Processo Civil .Ainda acerca da prova pericial, o art. 420, do Código de Processo Civil, especifica as hipóteses que autorizam o magistrado a indeferir a prova pericial, dentre elas, quando a espécie se revela inservível para a formação do convencimento do julgador. Essa norma “não enceta mera faculdade, mas verdadeira obrigação, evitando a prática de atos desnecessários, em manifesta afronta ao princípio da razoável duração do processo (inciso LXXVIII do art. 5º da CF)(V. MISAEL MONTENGRO FILHO, Código de Processo Civil ,comentado e interpretado, 2008, p. 466).Em total sintonia com as normas citadas, dispõe o art. 427 do Código de Processo Civil que o juiz poderá dispensar a prova pericial diante de documentos elucidativos existentes nos autos do processo.
7.Na linha de precedentes do STJ, "não configura cerceamento de defesa o julgamento da causa, sem a produção de prova pericial, quando o Tribunal de origem entender substancialmente instruído o feito, declarando a existência de provas suficientes para seu convencimento" (STJ AgRg no AREsp 592.202/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 23/10/2014, DJe 29/10/2014).
8. As partes argumentam, ao longo do processo, acerca de vício de inadequação , numa clara demonstração que se está diante de uma relação consumerista, submetida ao CDC. No âmbito das relações de consumo, os vícios juridicamente relevantes, que devem ser reparados pelos fornecedores, são aqueles que tornam o produto inadequado ao fim que se destinam. Assim, no caso dos autos, as provas devem ser suficientes para constatar a existência de vício no veículo adquirido, que o torna inadequado para o fim que se destina. Desnecessárias, para o convencimento do julgador, provas que constatem vícios graves ou contemporâneos à celebração do contrato, pois o vício do produto estará caracterizado sempre que o bem adquirido não corresponder à legitima expectativa do consumidor. O vício do produto em automóveis não necessita de prova pericial para sua demonstração,de forma que o magistrado pode utilizar provas documentais e testemunhais para formar seu convencimento. Além disso, a produção da prova pericial, considerando o tempo decorrido e o contexto dos fatos, não propiciaria qualquer utilidade para a realização do julgamento, e por todas essas razões não se pode identificar cerceamento de defesa pela falta de sua realização.
9.O CDC prevê prazo decadencial para o exercício, pelo consumidor, do seu direito de reclamar pelos vícios relacionados aos produtos fornecidos ou aos serviços prestados. Trata-se da norma do art.26 do CDC,segundo a qual o direito de reclamar os vícios aparentes caducam em: a)30(trinta) dias, tratando-se de produtos ou serviços não duráveis e b) 90 (noventa) dias, tratando-se de produtos duráveis. A contagem do referido prazo decadencial inicia-se “ a partir da entrega do produto ou término da execução dos serviços”. Já para os vícios ocultos “o prazo decadencial inicia-se no momento que evidenciado o defeito”, mas em todo o caso, a reclamação do consumidor perante o fornecedor, obsta o prazo decadencial.
10.O Código de Defesa do Consumidor adotou o critério da vida útil, para determinar o termo inicial do prazo de garantia dos produtos com vício ocultos.O prazo, no caso de vício oculto, relativo à inadequação do produto, somente começa a correr depois que o produto não se mostrou adequado ao uso consumidor. Isto é, antes do produto não se manifestar inadequado ao uso do consumidor, o tempo inicial de garantia, seja a legal (art. 24 do CDC) ou a contratual (art. 50 do CDC), fica em aberto, porquanto o vício oculto só se manifesta após o uso do produto.
11.No que tange à previsão do art. 26, §2º, do CDC, de que a reclamação formulada ao fornecedor tem o condão de obstar o prazo decadencial, é preciso definir o que se entende por obstar,isto é, se é hipótese de suspender ou interromper o prazo decadencial. "As causas suspensiva independem da vontade das partes, são fatos objetivos que ocorrem sem que essas tenham para isso cooperado. As causas interruptivas, pelo contrário, dependem de vontade das partes, são fatos subjetivos, provocados e determinados, diretamente por elas." (GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Vícios do produto e do serviço por qualidade, quantidade e insegurança: cumprimento imperfeito do contrato. 2.ed.rev.atual. e ampl.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 pg.311). A reclamação , tratando-se de ato de vontade do consumidor, interrompe o prazo decadencial. Nesse mesmo sentido, precedentes dos tribunais pátrios. In casu,o prazo decadencial estava interrompido, ou na linguagem do art.26, §2º,I, do CDC, estava obstado de correr, em razão das reiteradas reclamações comprovadas pelo Apelado.
12.A par disso, não se pode deixar de considerar que o carro em questão gozava, à época, de uma dupla garantia: a garantia legal de adequação do produto (art.24 do CDC) e a garantia contratual que é complementar à legal (art.50 do CDC). "O início da contagem do prazo de decadência para a reclamação de vícios do produto (art. 26 do CDC) se dá após o encerramento da garantia contratual. " (STJ - REsp 1021261/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/04/2010, DJe 06/05/2010).
13.Qualquer que seja o ângulo pelo qual se examine a questão da interrupção do prazo decadencial, seja pelas reclamações do Apelado, seja pela existência de garantias legal e contratual, ou critério da vida útil do produto - tem-se que não se operou a decadência do direito.
14.Não há que se falar em decadência do direito de reparação dos danos morais, deduzido pelo Autor, que, em razão de sua natureza, não se submete a prazo decadencial, mas a prazo prescricional do art. 27,do CDC.
15.O art. 18, § 1º, do Código de Defesa do Consumidor apresentou hipóteses em que é possível a composição do vício, quais sejam: "1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço."A norma citada tem por objetivo que o vício seja sanado de modo amigável, como forma de proteger a própria expectativa do consumidor e evitar demanda judiciais. Entretanto, este prazo de 30 dias, previsto no art. 18, §1º, do CDC, só será utilizado nas situações em que seja possível a substituição das partes viciadas do produto. In casu, o automóvel retornou por diversas vezes à oficina da concessionária, permanecendo com a Apelante por vários dias, e, nesse período, não foi possível sanar todos os vícios, demonstrando que o produto padece de problemas graves de tamanha extensão, que não permite a substituição das partes viciadas.
16.A Apelante se insurge contra o reconhecimento da ocorrência de danos morais. Todavia, os transtornos de adquirir um veículo e não poder usufruir do bem sem defeitos, logo após adquiri-lo, causam abalos de ordem moral ao consumidor adquirente de bem, que se mostra impróprio ou inadequado ao fim ou ao consumo a que se destina. Ademais, o Apelado necessita do veículo para sua manutenção e sustento, uma vez que trabalha como representante de livros. Os danos morais também restaram evidenciados, pois claro o aborrecimento, constrangimento e frustração que passou o adquirente do veículo, ante a impossibilidade de exercer sua atividade comercial, meio de subsistência, em decorrência da venda de produto inadequado para o consumo pela empresa Apelante.
17.É pacífica a jurisprudência do STJ que o valor arbitrado a título de dano moral só pode ser reduzido na hipótese em que a condenação se revela exorbitante, distanciando-se dos padrões de razoabilidade.
18.O valor de R$12.000,00 (doze mil reais), arbitrado pelo juiz a quo, não se distanciou dos parâmetros fixados pela doutrina e pela jurisprudência, não merecendo, portanto, ser reduzido. Além disso, considerando as peculiaridades do caso concreto, a quantia é suficiente para reparar o dano moral suportada pelo Apelado.
19. Pedido de condenação de litigância de má-fé indeferido, em virtude do Apelado não se enquadrar nas hipóteses autorizadoras elencadas no art. 17 do CPC.
20. Recurso conhecido e improvido.
(TJPI | Apelação Cível Nº 2013.0001.006477-0 | Relator: Des. Francisco Antônio Paes Landim Filho | 3ª Câmara Especializada Cível | Data de Julgamento: 11/03/2015 )
Ementa
PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. CONCESSÃO DO BENEFÍCIO DA JUSTIÇA GRATUITA.OMISSÃO DO JUIZ DA CAUSA. POSSIBILIDADE DE DEFERIMENTO PELO TRIBUNAL. AÇÃO REDIBITÓRIA CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. COMPRA E VENDA DE AUTOMÓVEL. CONSUMIDOR. PRELIMINAR. CERCEAMENTO DE DEFESA. PROVA PERICIAL. FEITO SUBSTANCIALMENTE INSTRUÍDO. DESNECESSIDADE. DECADÊNCIA. CRITÉRIO DA VIDA ÚTIL. REITERADAS RECLAMAÇÕES QUE OBSTARAM O TRANSCURSO DO PRAZO DECADENCIAL. EXISTÊNCIA DE GARANTIA LEGAL E CONTRATUAL. DECADÊNCIA NÃO OPERADA. DANO MORAL. PRAZO PRESCRICIONAL. PRESCRIÇÃO NÃO OPERADA. RESCIS...
Data do Julgamento
:
11/03/2015
Classe/Assunto
:
Apelação Cível
Órgão Julgador
:
3ª Câmara Especializada Cível
Relator(a)
:
Des. Francisco Antônio Paes Landim Filho
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